Pã pã pã panórama

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PÃ PÃ PÃ PANÓRAMA ESCURO Ouve-se o ruído muito ampliado de um moinho em plena laboração. À medida que a luz sobe, o som baixa. A luz atinge uma intensidade máxima quando se faz silêncio. O palco está vazio mas forrado a palha densamente amarela. Uma figura montada sobre andas (A) entra em cena e varre escrupulosamente o palco. Ouve-se em off, uma cantora lírica entoar, com acentos operáticos, uma cantiga popular. Ai que lindos olhos tem ai a filha da moleirinha Bem mal empregada é ela andar ao pó da farinha. Andar ao pó da farinha ao andar ao pó da geada Bem mal empregada é ela há-de ser a minha amada. Com o palco já varrido, a figura de andas (A) sai, e entra então , empurrado por uma segunda figura (B), vestida de uma cor ferruginosa e uniforme, que carrega com um elemento (pequena mesa) que é o primeiro que, juntamente com outros, formará posteriormente uma grande mesa. A figura B dança com a pequena mesa. Depois coloca-a num local pré-determinado. A figura A, agora sem andas, vem trazer-lhe uma enorme bola de argila que é pousada sobre a mesa. A figura B trabalha, ora terna, ora selvaticamente a argila, contando o seguinte: O Menino Trigo estava enamorado da Menina Argila. Não tirava os olhos daquela nuca perfeita, daqueles ombros tão tímidos, daquelas ancas rasas de bicho mineral um pouco esquivo. O Menino Trigo queria muito desfazer-se grão a grão e repousar na barriga da Menina Argila que crescia a olhos vistos e não tardaria a transformar-se em talha. Como a mãe e a avó e a bisavó. A Menina Argila estava enamorada do Menino Trigo. Trazia um silêncio muito antigo na garganta seca e por isso a palavra amor não lhe escorria do bojo. O Menino Trigo baloiçava ao vento. A Menina Argila sentia tormentos de água nos rins. O Menino Trigo embebedava-se de cheiros no ar tórrido. A Menina Argila corava e tisnava, ganhava cor de música e, por vezes, dir-se-ia que suava gotas de esmeralda, rubi, safira, ametista e topázio. O Menino Trigo e a Menina Argila eram feitos para cair nos braços um do outro. Pão para a Boca. Boca para Pão. No fim da narrativa, após ter tomado várias formas, o grande pedaço de argila volta a ser bola e é empurrado com o pé para fora de cena. ESCURO A figura A e a figura B voltam a entrar em cena. De braço dado. A usa um chapéu de palha com abas muitíssimo grandes. B continua a envergar a sua indumentária ferruginosa, cor de argila molhada. A figura A coloca lentamente o chapéu sobre a mesinha. Ambas as figuras dançam em volta da mesinha-chapelão uma ronda de amor, durante a qual, apesar de girarem estão sempre frente a frente. Ouve-se o seguinte texto, repetido uma dezena de vezes: - Repara, amor, como eu sou muitas vezes redondinho e esguio de uma vez só, dizia o Trigo à Argila. - Repara, amor como eu sou plana e muitas vezes feita de mim mesma.


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