Pólo pólo

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pólo-pólo Um igloo de dez metros de diâmetro. À sua volta, uma paisagem polar, completamente dominada pela cor branca. A representação terá lugar dentro do igloo. Os espectadores serão, no entanto, convidados a deter-se no cenário exterior, onde podem apreciar várias figuras de animais polares — como se vistassem um pequeno zoo de circo ambulante. O interior do igloo é ofuscantemente branco. Todavia, toda a iluminação vem de fora. Quando o público já se encontra instalado, em círculo como num mini-anfiteatro, entram dois manipuladores, com orelhas e focinho de huskies. CENA 1 O ABOMINÁVEL HOMEM DAS NEVES com muito catarro - O Inverno vai ser longo-longo. Maismais. Muito mais-mais do que é costume. A gente até vai pensar assim-assim: este Inverno não tem fim. Fim-fim. SUNIA matrona de Dinur, o chefe da família esquimó Olhe, em vez de gastar as palavras todas, as que são para dizer e as que não, venha mas é ajudar-me a arrancar um bloco de gelo transparente. Eu não entro no igloo se não lhe puserem uma janela... A noite vai cair e eu preciso de luz para fazer os filetes de foca. ABV - A noite não cai-cai, sua fêmea. Ela desce-desce com muito jeitinho. Já viu alguém com o nariznariz esmurrado pela noite? SUNIA - Que velho abominável!!! Não se lembra que ainda ontem ela caiu num abrir e fechar de olhos? ABV para si, entre dentes - Morena burra-burra, esta minha nora. Para Sunia. És mais casmurra que o sol-sol da meia-noite... SUNIA - O que você quer é trela. Mas não se esqueça que eu ponho os velhos de castigo, quando eles não se portam bem. Fica a dormir ao relento e de barriga vazia. Percebeu? ABV - No meu tempo-tempo, eram os meninos que ficavam de castigo-castigo. SUNIA agastada - O seu tempo já era, já fora, já foi... Não foi? ABV - Mas fui eu-eu que pesquei a foca-foca. Sunia olha o velho de cima a baixo, com ar de poucos amigos. POCHQUENTE o filho mais novo e lingrinhas de Sunia, off - Avô! Avô Abominável! Vamos brincar aos icebergs? ABV - A tua mãe-mãe disse que eu ficava a dormir cá fora-fora sem jantar. POCHQUENTE - Deixe lá isso avô. Cadela velha ladra muito mas não ferra.


Sunia desata a ladrar, dando mostras de estar muito sentida. ESCURO. CENA DOIS Pochquente e ABV brincam aos icebergs. POCHQUENTE excitado - Eu sou o iceberg. Tu és o navio. Chamas-te Titanic. E flutuas. Trauteando. Flutuas. Nem imaginas o que te vai acontecer. Podes assobiar para fazer de conta que estás muito feliz. E depois: BUMBA! Glup! Glup! Glup! Glup! ABV amuado - Estou farto-farto de ser o navio. Depois eu salto para cima das tuas costas-costas e, como tu és pequeno-pequeno e fraco-fraco, deixas-me logo-logo ir ao fundo. POCHQUENTE - Isso foi ontem porque ainda não tinha tomado um super-pequeno-almoço. Hoje a mãe Sunia obrigou-me a comer três gelados até ao fim. Estou aqui rijo que nem dente de morsa. ABV maldoso - Mentira-mentira. Eu bem vi-vi o gelado todo derretido na gamela dos cães-cães. Se não comes-comes, nunca-nunca vais crescer... POCHQUENTE - E quem te disse que eu queria crescer, avô Abominável? ABV - Crescer-crescer para caçares focas-focas como eu. POCHQUENTE - E quando eu caçar focas, o que é que o avô Abominável vai fazer? O seu trabalho é caçar focas, o trabalho da mãe Sunia é cortar filetes, o trabalho do pai Dinur é tratar dos cães e conduzir o trenó. Eu não quero tirar trabalho a ninguém... ABV - Quando tu caçares focas-focas, eu posso dormir para sempre-sempre no coração duro-duro do iceberg. POCHQUENTE - E quem brinca comigo? ABV depois de coçar cabeça para reflectir - Tens razão-razão... Clareando a voz. Vamos lá entãoentão brincar. Tu és o iceberg e eu sou-sou... POCHQUENTE generoso Pronto, desta vez deixo-te ser o iceberg. Mas é só desta vez, avô Abominável... Pochquente salta alegremente para cima da espinha de ABV que o sacode. Seguem-se uns segundos de excitada brincadeira. ESCURO. CENA 3


Dinur trata da matilha de cães. DINUR - Fuk-Fuk, hoje não comes. Quantas vezes já te disse que não tens nada que lamber o gelado do Pochquente? Será que eu ando a lamber os ossos dos teus filhos? Passa carinhosamente a mão pelo pêlo de Fuk-Fuk. O cão solta ganidos, como se sentisse triste e culpado. DINUR - Rila, tu és uma praga. Se o trenó volta a descarrilar por tua causa, eu ponho-te a arrastar as focas do avô Abominável... Onde é que já se viu uma cadela da tua idade a querer enfiar-se em todas as poças de água? Passa carinhosamente a mão pelo pêlo de Rila. A cadela solta latidos infantis. DINUR olhos nos olhos, para o cão Sanjo - Homem é homem. Cão é cão. Foca é foca. Homem não casa com foca. Foca não puxa trenó. Cão não acende fogueira. Homem não come cão. Foca não caça homem. Cão não dorme aos pés de filho de homem. Porque filho de homem precisa de crescer. Percebeste Sanjo? Se o Pochquente tem frio nos pés, é porque não os esfrega bem com óleo de foca. Homem mata foca para ter óleo de foca. E vem-me um fedelho queixar-se de que o óleo de foca cheira mal!!! Pochquente filho de Dinur. Dinur educa Pochquente. Sanjo educa cachorro de Sanjo. Dinur passa carinhosamente a mão pelo pêlo do cão. Sanjo uiva. DINUR fala lenta e pausadamente como se estivesse a dar uma lição - Amanhã vamos procurar morsa. Morsa tem medo de cão. Cão não ladra quando sente cheiro de morsa, senão espantar presa e barriga vazia. Portanto cão avança sem tugir nem mugir. Abana cauda para Dinur compreender que morsa na costa. Morsa gordinha, família de homem come filete, família de cão tem osso com muita chicha. Conto com a compreensão da família cão. Cão mais velho dar exemplo a cão mais novo. Cadela vigia cachorro maluco. Dinur vigia avô Abominável que é maluco, certo? Concerto de alegres e concordantes latidos. DINUR - Agora Dinur vai jantar. Dinur quer paz. Se cão ladra muito, urso branco vem cheirar igloo. Urso branco adora comida de cão. Caludinha cães. Calminha e caludinha. Osso vem a caminho. Homem jantar primeiro, cão jantar depois. Dinur não mente. A matilha observa um silêncio religioso. Um cachorro atreve-se a latir. A mãe cadela ladra-lhe. ESCURO. CENA 4 Pochquente, com voz ensonada e sussurrante, fala com avô Abominável. Pela noite dentro. POCHQUENTE - Avô!


ABV - Hummm... POCHQUENTE - Avô? Já estás a dormir no coração duro do iceberg, avô Abominável? ABV - Por enquanto durmo no coração mole-mole do igloo. Boceja. Dorme-dorme, Pochquente. POCHQUENTE - Não tenho sono. Boceja. Não tenho sono e só tenho medo. ABV - Medo-medo de quê? POCHQUENTE - Tenho medo da foca vermelha que me persegue nos meus sonhos. Ela é vermelha como o sangue e corre muito depressa. ABV - Tu sonhas-sonhas a cores? POCHQUENTE - Claro. ABV - Essa agora-agora!!! POCHQUENTE - Avô... ABV - Rrrrrrrr... POCHQUENTE - Avô!!! ABV - Que mais queres-queres? POCHQUENTE - Avô Abominável... A partir de amanhã, só como sashimi. ABV - Que vem ser isso-isso de sashimi? É uma marca-marca de gelados? POCHQUENTE - Até parece que nunca saíste deste igloo, avô. Só pensas em animais começados por f e só comes comida começada por f. Queres que eu coma gelado de sangue de foca, mas depois dizes que "foca-foca come-se em filete-filete".Nunca falaste com o japonês que nos compra as peles de foca? Ele só come sashimi. E diz que vai viver até aos setenta mais trinta anos. Sashimi é peixe cru. Filete de peixe cru é melhor do que filete de foca. Por isso é que ele só nos compra a pele da foca. Bocejando. Além disso, peixe vermelho não corre atrás de mim nos sonhos. E, mesmo que corresse, eu não tinha medo. ABV - Ai que rica prenda-prenda me saíste. És mesmo filho daquela morena burra-burra. POCHQUENTE - Prenda não sai de barriga de mãe. Prenda é não comer gelados, não comer foca, não comer nunca. Bocejando várias vezes. Mas eu gosto de si, avô Abominável...


ABV - Neto-neto de Abominável tem-tem de ser caçador. Tem de comer foca-foca. Tem de ser-ser bravo e malcriado. Voz dura. Senão renego-te-te. Nunca mais-mais brinco contigo. Ficas nas saias-saias da tua mãe-mãe. Ficas a afiar a faca-faca de cortar filetes. Pochquente não responde. Dorme a sono solto, ressonando ao de leve. ABV tom de ameaça Foca-foca vermelha. Foca-foca vermelha!!!!! Eu sei-sei que me estás a ouvirouvir. Se voltas-voltas a perseguir o meu neto-neto, eu dou cabo-cabo de ti e não há-de restar sobre a terra-terra nem uma foca vermelha para-para amostra. ESCURO. CENA 5 Luz cinzenta de madrugada gélida. Dinur, ABV e a matilha dão caça à morsa. Os cães rosnam, de mansinho, mas não se atrevem a ladrar. DINUR - A Rila está a dar à cauda... Linda cadela, que farejas a morsa antes de ela mostrar a dentuça. ABV - Não me cheira a morsa-morsa. A morsa-morsa deita um cheirete que tresanda-tresanda. DINUR - O senhor percebe de focas, não percebe de morsas. Cada um percebe do que entende. E cada um entende do que pretende. E cada um pretende o que aprende. ABV furioso - Eu, com a idade-idade do teu Pochquente, já tinha saltado para espinha de muitas morsas-morsas. Não me venhas-venhas com pensamentos esquimós, porque fui eu-eu que te ensinei tudo-tudo. Farejando. Vai por mim-mim. Cheira-me a faca-faca. DINUR empunhando o arpão Fale mais baixo que ainda espanta o bicho. Silêncio. Ouve-se um silvo e um barulho de chapa. ABV - Cheira a faca-faca. Anda por aí uma faca-faca enorme. E, se a gente não dá à sola-sola, ainda acabamos em filetes-filetes. DINUR - Ó avô Abominável, o senhor afinal saiu-me um cagarolas. Esse cagaço nem parece seu. Sempre com tanta cagança, a dizer a quem quer ouvir e a quem não quer, que não tem caguefes de nada e agora está para aí todo acagaçado... ABV - Dobra a língua, filho-filho... isto não é medo-medo, nem susto-susto, nem temor-temor. Isto-isto é prudência... Dinur avança, de arpão em riste. Os cães agitam-se. ABV segue o filho a contra-gosto. ABV - Se nos acontece alguma coisa-coisa, a Sunia fica-fica viúva e o Pochquente fica-fica órfão... DINUR murmurando Cales-se que eu vou espetar o arpão.


Com mil cuidados, Dinur estica o braço e espeta o arpão. Ruído estrondoso de chapa. O gelo treme. Treme. Treme. De súbito, emerge um periscópio de submarino, cujo olho redondo gira nervosamente em todas as direcções. Dinur e ABV, estarrecidos, estatelam-se no chão, tentam esconder-se, tremem como varas verdes. ABV com uma voz sumida Já viste alguma morsa-morsa com um nariz-nariz deste tamanho? Já viste alguma morsa-morsa com um olho-olho deste tamanho? O olho-periscópio desencanta os esquimós que se desatam a fugir. O olho-periscópio persegue-os e eles tentam desesperadamente escapar-lhe. ESCURO. CENA 6 Dinur e Pochquente foram vender peles ao mercador japonês.


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