Para uma teoria da montagem

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PARA UMA TEORIA DA MONTAGEM 1. Definição: A montagem é a operação em que se juntam as imagens e os sons registados para dar ao filme a sua forma definitiva. 2. Função: É na etapa da montagem que se define o ritmo do filme. O ritmo final depende do ritmo dos movimentos filmados (encenação) e da continuidade narrativa previamente estabelecida. («découpage» ou planificação). Em certa medida, a montagem pode corrigir, remendar, apagar certos erros cometidos nestas duas outras etapas. A montagem e a mistura das pistas sonoras gozam duma autonomia mais ampla (a maioria das vezes deixada por explorar) para sublinhar ou produzir efeitos de emoção e de sentido. 3. Todo o filme é montado: A capacidade limitada duma bobine de película (inferior à duração dum filme) implica que a dado momento as imagens terão de ser encadeadas com as da bobine seguinte. Esta necessidade condiciona tanto a elaboração inicial (découpage) como a própria rodagem (encenação). 3.1. Numa dada época, por razões ideológicas, o conceito de montagem foi combatido pela crítica. Esta posição era consolidada pela constatação de um aumento da duração média dos «planos» e de uma deslocação do peso relativo das unidades significantes, do movimento para o tempo (cf. G. Deleuze) (1). Contudo, a atitude desfavorável à montagem era na mesma altura denunciada pelos próprios realizadores: «Não creio que a soma de trabalho na montagem dependa da brevidade dos planos. É um erro pensar que os russos trabalhavam muito na montagem porque filmavam planos curtos. Podemos consagrar muito tempo à montagem dum filme com planos longos porque não nos limitamos a colar uma cena após uma outra» (2). 3.2. Exemplos: Existem exemplos extremos em que a montagem poderá parecer reduzida à sua expressão mais simples, ora porque cada «plano» aparece formalmente separado do seguinte e logo relativamente isolado — PARA ALÉM DO PARAÍSO de J. Jarmush, ONCE MORE de P. Vecchiali — ora que o filme dissimule os raccords e simule um plano único para a sua totalidade — A CORDA de A. Hitchcock. No primeiro caso, apesar de desaparecer uma das componentes da montagem — o encadeamento de um plano para outro —, permanece a sucessão dos planos que obedece a uma geometria calculada, a sua duração variável, a adequação do ritmo interno dos planos ao do filme no seu conjunto, a continuidade narrativa, etc. O filme de Hitchcock também está construído em função da montagem: por um lado, os movimentos da câmara tentam compensar a ausência de ruptura na continuidade-imagem; por outro, a encenação está submetida à necessidade da passagem em «cortina» duma personagem no momento do raccord entre duas bobines — uma dessas «cortinas» é, aliás, particularmente mal conseguida porque, ao tirar partido duma


personagem que se aproxima do telefone sem a menor intenção de o utilizar, tornando demasiado ostensivo o «truque» de encenação, acaba por abolir a pretensa invisibilidade do raccord (cf. o nosso artigo «Impostos e percepção» in «A Grande Ilusão», nº 4). De facto, os únicos filmes não-montados da história do cinema são filmes experimentais em que um plano fixo dum objecto imóbil passa em pescadinha; é fácil calcular a que ponto, neste caso, o filme perde meios narrativos e semânticos ao desdenhar as possibilidades da montagem. 4. Nascimento: A partir do momento em que os filmes deixaram de consistir unicamente em colocar a câmara perante a cena e filmá-la em plano fixo, i. e., a partir do momento em que a câmara adoptou um ponto de vista que não corresponde ao do espectador de teatro, nasceu a montagem. Este ponto de vista não foi imediatamente assumido como tal, mas escolhido em função do enquadramento, do objecto filmado, do efeito a produzir. Mas, seja qual for o motivo que a justifique, qualquer deslocação da câmara implica montagem. I

II

I e II: campo-contracampo, com marcada diferenciação das personagens — direcção do olhar para a esquerda de J. Stewart, ligeiramente para a direita de D. Gélin; mas também chapéu contra cabelo, tez branca contra tez morena. fundo de céu contra fundo de areia. Stewart está debruçado sobre Gélin estendido no chão. Eixo das cabeças ligeiramente oblíquo cimo esquerdo baixo direito.

III

IV

III Falso raccord aparente: a lógica do campo-contracampo prevê a alternância das personagens e "das direcções; ora, Stewart está ligeiramente inclinado para a direita. Stewart perdeu os sinais de identificação à excepção do tom da pele. Ruptura: inversão da oblíqua. IV Segundo falso raccord aparente: os elementos identificáveis de cada personagem no plano anterior (boca e olhos contra orelha) são invertidos. Ruptura também entre os dois planos: o eixo de orientação é perpendicular ao anterior. Em contrapartida este plano está em continuidade lógica com o campo-contracampo inicial — direcção dos rostos respectivos (aliás, volta a surgir o chapéu como elemento de diferenciação). A ruptura é totalmente causada pelo plano III em que o rosto de Stewart está no lugar onde deveria estar o de Gélin. Ora aí reside o sentido da cena: Stewart vai substituir Gélin e acabar a missão dele.

5. História: Desenvolveram-se duas grandes tendências — em traços largos, a primeira consistiu em avaliar a diferença entre duas imagens, montar em sucessão e apostar numa produção de sentido a partir da própria falha que o espectador tem de preencher intelectualmente para perceber o encadeamento das imagens; a outra, em garantir a continuidade narrativa mantendo um número suficiente de elementos comuns de um plano para o seguinte. A primeira tendência engendrou uma teorização do cinema para a qual a


montagem se apresenta como a operação mais específica. A segunda estabeleceu um conjunto de «regras» de sucessão de planos e de cálculo de raccords no movimento com vista a ocultar o processo da montagem — e paralelamente a automatizá-la, posto que esta tendência se inscreve no processo geral de industrialização do cinema e tenta dar resposta a uma necessidade de rapidez de produção, i. e., de rentabilidade. 5.1. A estética é sempre condicionada pelos meios técnicos. Convenhamos que a reflexão teórica sobre a montagem, elaborada em grande parte no tempo do mudo, precisa manifestamente de actualização, mas a maioria das chamadas «regras» de montagem (com particular incidência na encenação — lei dos 180° — e no découpage — lei do afastamento mínimo a fim de eliminar o efeito de «salto») essas foram, na prática, ultrapassadas a partir do momento em que as técnicas de televisão, em especial no âmbito de rodagens com várias câmaras síncronas, modificaram os hábitos de leitura do espectador. 6. Teorias: As teorias existentes foram elaboradas no tempo do mudo por realizadores soviéticos — Kulechov, Poudovkine, Eisenstein e Vertov — para os quais a reflexão teórica decorria das exigências da profissão: todos eles, enquanto realizadores, assumiam a tarefa de formadores na escola de cinema de Moscovo. Eisenstein foi o único a conceber uma teoria do cinema que tomava em consideração diversas componentes que só mais tarde se vieram a desenvolver — o som, a cor, etc. Desde então a teoria passou a ser essencialmente produzida pelos críticos e a seguir uma orientação descritiva que não se rege pela aplicabilidade. A adopção generalizada do modelo de produção industrial, com a sua separação de tarefas, torna quase impossível, hoje em dia, a reflexão teórica global por parte dos próprios técnicos, na medida em que cada um só tem acesso a uma parte limitada do processo de fabricação. A ausência do montador ao nível das fases de preparação e de rodagem não só é sintomática da desvalorização do seu trabalho como simultaneamente lhe veda as vias da reflexão — as últimas contribuições teóricas são obra de realizadores que ocupam uma posição marginal, que assumem eles mesmos a montagem dos filmes e que, em geral, trabalham num esquema de produção semi-artesanal. 7. Especificidade: Qualquer teoria do filme — distinta duma teoria do cinema, segundo uma óptica do consumo e da produção, ou dentro duma teoria geral da comunicação em que o cinema não passa então de um média no meio de vários outros — passa por uma teoria da montagem. Implica que o filme possa, por si só, ser objecto de militância — as únicas teorias existentes encontram-se ligadas a uma posição ideológica de combate —, cuja estética deve estar em permanente evolução. Trata-se pois necessariamente duma teoria formalista — na qual a forma cria o sentido sem se submeter ao discurso verbal (diálogos e ficção narrativa) — que visa a criação de efeitos ou emoções intraduzíveis, caracterizados por uma relação rítmica entre os «analogons» (3) registados. Estará pois mais próxima duma teoria musical ou prosódica do que duma semiótica. É possível verificar que


a renovação da estética cinematográfica em diversos momentos da história do cinema resulta sempre de uma inovação ao nível da montagem: supressão do contracampo por Godard já em A BOUT DE SOUFFLE, descontinuidade temporal em Resnais, dilatação da duração em Antonioni, etc. Os filmes em questão são sempre, à partida, recebidos como «ilegíveis» ou «incompreensíveis», mas o cinema estandardizado acaba por adoptar as possibilidades expressivas neles descobertas tanto mais que provam ser eficazes. O atraso nesta integração é contudo enorme: Coppola retoma a montagem paralela em contraponto na última sequência de O PADRINHO e tem vindo a explorá-la sistematicamente desde então; este modo de montagem foi inicialmente descrito e experimentado por Poudovkine... 8. Situação da montagem: Hoje em dia, o montador só intervém uma vez registadas as imagens e acabada a recolha de sons. A sua actividade de juntar imagens e sons, em especial no modelo dominante do filme de ficção regido pela continuidade de acção, só incide sobre uma das operações da montagem: os raccords. A duração de cada plano está dependente da acção que nela se desenrola e o montador só pode intervir doseando os inserts, cujo ritmo, desligado da acção, representa apenas o grau zero da montagem — aquilo que Eisenstein definia como «montagem métrica» (4). Com efeito a montagem é préordenada na rodagem — escolha do ângulo ou do enquadramento, velocidade dos movimentos, etc. — e frequentemente prevista já na fase de escrita. Donde a importância cada vez mais notória dos argumentistas e autores do découpage — a chamada «peça cinematográfica» que aparece nos genéricos — que efectuam uma previsão da montagem que, num processo de produção industrial, muito raramente será posta em causa. Desta especialização resulta também a estandardização da montagem: se é certo que um realizador trabalha, em geral, durante mais de dois anos num filme, em contrapartida, um argumentista trabalha em vários filmes por ano, com diversos realizadores. Uma teoria da montagem, cujo objectivo seja integrar o mais pequeno raccord numa concepção global do ritmo fílmico, supõe que o montador intervenha em todas as fases determinantes para a montagem: só alguns realizadores concebem montagem e encenação como um todo; este tipo de apropriação talvez constitua um critério aceitável para identificar os «autores». 9. Princípios: O cinema americano emprega, para designar a montagem, o termo de continuidade. Esta noção opõe-se à de montagem, na medida em que o sentido deixa de resultar da aproximação de imagens passando a decorrer duma acção em si portadora do seu próprio significado (princípio da ficção) e na qual o raccord deve tender para a invisibilidade. A continuidade baseia-se num princípio de permanência da personagem através do conjunto da sucessão dos planos. O modo de «leitura» do filme funciona por antecipação da imagem (ou até da cena) seguinte — daí que para os filmes produzidos em série (westerns, filmes de guerra, etc.) tenha sido elaborada uma gramática de sucessão dos planos. Actualmente, a utilização nas rodagens da quase totalidade dos filmes americanos


de várias câmaras síncronas (técnica esta desenvolvida pela televisão) reforça esta gramaticalidade rígida da continuidade. A continuidade serve uma ficção baseada sobre oposições nítidas — o bom e o mau, o polícia e o ladrão, etc. —; a figura do campo contracampo, que materializa o conflito e a oposição, pertence a esta gramática e joga no contraste: a identidade de lugar não corresponde a uma identidade do cenário do campo e do contracampo, a identidade de enquadramento baseia-se numa inversão lateral das posições do primeiro plano e do segundo plano. A montagem, muito pelo contrário, privilegia os efeitos de ruptura. 10. Ritmologia: A partir do campo musical, P. Lusson (5) desenvolveu uma «Teoria do Ritmo Abstracto», aplicável a qualquer objecto e na qual o ritmo é definido como «a combinatória sequencial hierarquizada de acontecimentos discretos considerados unicamente sob a perspectiva do mesmo e do diferente». Sequencial porque orientada, no caso do cinema, na sequência temporal; hierarquizada, porque nem todos os acontecimentos têm a mesma carga (um objecto num cenário, uma superfície ocupada num enquadramento, um plano numa sequência, etc.). A dificuldade em adaptar esta teoria à montagem cinematográfica prende-se com a complexidade dos elementos que compõem cada imagem (incluindo o som) e com a variabilidade da hierarquia. É pois necessário distinguir vários níveis cujas unidades respectivas coincidam suficientemente para delas destacarmos unidades superiores — «grupos» — cuja orientação e carga correspondam à soma vectorial das suas componentes; serão essas unidades superiores que constituirão os «planos» propriamente ditos ou unidades de montagem. 10.1. A T.R.A. é completada por uma T.R.A.m. (Teoria do Ritmo Abstracto matematizado) na qual, a partir da atribuição de pares numéricos a cada acontecimento — (01) para o mesmo, (001) para o diferente — é possível quantificar cada «plano», estabelecer relações de proporção mais ou menos variável entre cada plano, etc. Porém, este trabalho só poderia ser levado a cabo no computador; convém certamente que as proposições desenvolvidas neste artigo sejam objectivamente verificadas, mas o cálculo em questão não constitui o objecto do presente estudo. 11. Continuidade: Em termos absolutos, o ritmo pode oscilar entre duas tendências, uma contínua outra caótica, que correspondem a uma orientação exclusiva para um ou outro pólo — respectivamente, o mesmo e o diferente. Na prática, o mesmo revela-se sempre mais forte porque o espírito engendra ligações onde percebe que elas faltam. O efeito «Kulechov» surge como a verificação experimental da predominância do princípio de continuidade: primeira experiência, a continuidade do cenário é induzida a partir da do movimento e da permanência da personagem; segunda experiência, a identidade do espaço é induzida a partir da alternância repetida de planos (rosto de Mosjoukine, objecto em suposto contracampo) e da diferença à partida das superfícies respectivamente ocupadas em


cada plano (indução de um processo de «câmara subjectiva»). Esta segunda experiência é de longe a mais reveladora, uma vez que permite demonstrar a influência recorrente de um plano em nítida posição de ruptura — constituído exclusivamente por elementos diferentes, tanto ao nível do enquadramento como dos analogons —; a expressão de Mosjoukine muda (i. e., é percebida como diferente) quando o contracampo muda. O «efeito Kulechov», contudo, comprova mais a codificação da leitura do que permite tirar conclusões no domínio da montagem; com efeito, conviria avaliar a partir de que número de repetições a figura do contracampo se impõe, determinar se uma diferença mínima ao nível da ocupação da superfície pode originar uma outra leitura (por exemplo, o objecto do 2º plano como metáfora do rosto no 1º plano) e fixar as proporções consoante o código de leitura desencadeado, mas sobretudo fazer intervir a dimensão temporal — duração respectiva de cada plano. Acrescente-se que realizada com uma base mínima de elementos — 2 planos — é evidente que aumentando o grau de complexidade dos dados da experiência, criando um contexto variável a partir doutros planos, a leitura dos dois planos iniciais varia. A descodificação, uma vez efectuada, não se modifica; portanto, a experiência passa a só ser válida para um raccord logo que a repetição deixa de intervir. Esta unidade, o raccord entre dois planos, terá por sua vez de ser situada num contexto determinante, a unidadesequência. I

II

Retomada do primeiro plano em que o verdadeiro culpado apareceu —«plano americano largo» — não tem algemas e mantém o seu ar impassível; mesmo fato. Durante esse primeiro plano, o seu rosto substituía gradualmente o de H. Fonda. O corpo, sobreposto à cara de H. Fonda em grande plano, avança até a mancha do primeiro rosto coincidir com a mancha do segundo rosto.

I e II: campo-contracampo — mesma superfície ocupada por cada um dos rostos; orientação oposta dos olhares e ligeira descentragem — que permite ao espectador apreciar a diferença de traços e a semelhança geral na base de toda a intriga.

III

IV

De II a IV: continuidade — orientação do rosto e zona ocupada — e progressão — redução da superfície ocupada. De III a IV: ruptura — deslocação considerável para a zona esquerda; passagem de frente para perfil (alteração da forma oval = a agressividade condena a personagem). De II e III a IV: a zona central a princípio ocupada pelos rostos — realçada enquanto mancha branca — é depois ocupada por um espaço neutro que traduz a separação/distância entre o culpado e o inocente.


11.1. O princípio de continuidade implica pois que uma mão em grande plano seja a priori identificada como a da personagem do plano anterior, salvo indicação contrária específica dada pelo contexto. Da mesma maneira, duas personagens a correr (movimento rápido) em sentido contrário (deslocação na superfície do ecrã) serão percebidas como tendo «fatalmente» que se encontrar, etc.. Na medida em que, em parte, a continuidade transcende a ruptura, a montagem só tem sentido se jogar na variabilidade dos efeitos de ruptura. A aplicação exclusiva do princípio de continuidade — à luz do qual a mão pertence efectivamente à personagem, e o encontro de duas personagens a correr acontece efectivamente — faz da montagem uma operação quase mecânica, reduzida à mera execução do raccord. Conquanto o cinema americano, que numa dada época atingiu o grau mais elevado de industrialização, seja bem representativo do cinema-padrão — improdutivo como referência no quadro da nossa reflexão — não é, de longe, o único (apesar de servir de modelo a grande parte do cinema dos outros países) e é dotado de uma dinâmica suficiente para assimilar e reciclar os processos de montagem baseados na descontinuidade. 11.2. O princípio de continuidade obedece a uma orientação estritamente sintagmática própria da ficção literária. A narração cinematográfica é dominada por este modo ficcional praticamente desde as suas origens. Esta opção aparece ligada ao estatuto dos actores e condicionou todo o desenvolvimento do esquema de produção dos filmes. 11.3. O «falso raccord» não é um problema de montagem mas sim de continuidade. Convém porém sublinhar que a maioria dos montadores conseguem escamotear o falso raccord: este consiste num salto ao nível do movimento ou numa deslocação (que pode incluir aparição ou desaparecimento) de acessórios — ruptura ao nível da permanência —, ou ainda numa brusca mudança de luz — ruptura ao nível da composição plástica. Ora se o manipulador «montar» essas rupturas, em lugar de procurar a todo o custo manter a continuidade, se se criar uma elipse aproximando os gestos ou as palavras — às vezes pode resolver-se a questão com um simples efeito de mistura para destacar uma frase do diálogo — produz-se um efeito de ênfase dos gestos assim aproximados suficiente para que o espectador não se aperceba do salto. O salto pode mesmo ser utilizado para modificar ou reforçar o sentido dum plano — assim, os raccords de luz foram durante muito tempo descuidados pelo cinema hollywoodiano (até aos anos 50): os jogos de sombras, inspirados na estética do expressionismo alemão, intervinham sistematicamente nos grandes planos,


sem por isso respeitarem as respectivas posições nos planos de conjunto; é de notar também que o «falso raccord» enquanto tal pode tornar-se portador de sentido como ruptura da antecipação imaginada pelo espectador: S. Fuller não raro recorre a este artifício, O. Welles fez dele o objecto dos seus últimos filmes (cf. o nosso artigo «História mortal, história mortífera» in «A Grande Ilusão», nº 4). Seja como for, o conceito de «falso raccord» está nitidamente ultrapassado uma vez que a continuidade se obtém apesar da ruptura assumida na montagem. Em contrapartida, o recurso ao insert para camuflar um falso raccord é um processo infantil que mais não faz do que sublinhá-lo — este artifício só se mantém nos filmes de acção porque estes apostam no aspecto espectacular da acção, sem preocupações de lógica de encadeamento nem de continuidade verdadeira. 12. A unidade: A unidade de montagem é o plano. Este não corresponde ao «plano» unidade de rodagem — fácil de definir pragmaticamente entre o arranque e a paragem da câmara —; este último, por um lado, pode ser dividido na altura da montagem, por outro, se a câmara se deslocar, os dados que compõem o enquadramento mudam e esta modificação equivale em teoria a uma mudança de plano — mesmo em plano fixo, a brusca aparição dum rosto em grande plano corresponde a uma mudança de plano; o western «spaghetti» usou e abusou deste efeito. Neste caso, a mudança de plano acontece na encenação e não na montagem, mas nem por isso esta última será facilitada. Em contrapartida, o plano «espacial» definido por Mitry (6) só diz respeito ao real registado e não à imagem; no caso de um travelingue para a frente ou para trás, a passagem do primeiro plano para o fundo ou vice-versa não passa duma modalidade especial de mudança de plano na encenação. Definiremos provisoriamente o plano como sendo uma relação enquadramento/duração, mas teremos de identificar uma unidade «mudança de plano» para a qual a diferença entre dois planos será afectada dum coeficiente de velocidade, variável conforme o tipo de movimento, no enquadramento ou de câmara, conforme a velocidade, e dentro da qual o «raccord» representa apenas a velocidade máxima — 1/50 de segundo. 13. O enquadramento: A imagem cinematográfica, ao contrário do real apresentado, só tem duas dimensões — o espaço é parcialmente restituído pelo som, mas a estética do cinema baseia-se fundamentalmente em duas propriedades: a limitação de um enquadramento e a perda da terceira dimensão. Os elementos que determinam o seu ritmo interno — superfícies ocupadas, tipo e direcção das linhas, repartição das cores, etc. — são estritamente formais e o objecto representado não entra em consideração na descrição do enquadramento enquanto unidade de montagem — porém já irá intervir no enquadramento enquanto unidade cenográfica; aliás, a encenação estabeleceu uma terminologia dos planos consoante a proporção do objecto no enquadramento, sendo o objecto em questão, numa óptica narrativa, necessariamente o corpo ou o rosto humano. Por outro lado, X. de France (7) e C. de France (8) abriram novas perspectivas à reflexão teórica sobre a cenografia ao


estudarem a adequação do enquadramento à acção filmada, que determina um espaço operatório (em função dum dispositivo necessário à acção) ao qual o enquadramento se deve submeter, sob pena de perder o pólo operatório (deixando-o fora de campo ou atribuindo-lhe um lugar demasiado reduzido para que o seu papel se torne perceptível). 13.1. A convencionalização ficcional salda-se pelo desaparecimento de qualquer necessidade de adequação, tanto do enquadramento ao seu objecto como do plano à sua duração, etc., na medida em que as relações de significação são codificadas a ponto do espectador compensar as inadequações. O enquadramento passa a reger-se por uma estética de equilíbrio médio baseada em relações de simetria — a estética do «postal» — e num isolamento máximo — estética publicitária. 14. O enquadramento e o plano: As teorias da montagem, à excepção dos desenvolvimentos de Eisenstein, foram elaboradas tomando como base o plano curto e confundindo, no fim de contas, plano com enquadramento. Posto que os «planos» eram fixos e que os elementos formais que compunham o enquadramento não variavam, a duração padrão era a da decifragem da imagem — identificação do real representado. Certos efeitos de aumento ou diminuição de velocidade eram obtidos a partir da redução ou crescimento gradual de duração — foi isto que Eisenstein denunciou sob a designação de «montagem métrica». Contudo tornou-se rapidamente possível determinar uma relação de equilíbrio entre o enquadramento e a sua duração, variável segundo a hierarquia dos elementos que compõem o primeiro — um plano geral descritivo dum cenário não terá a mesma duração que o mesmo plano geral descritivo do movimento de uma personagem nesse cenário. Intuitivamente descobre-se que a duração está ligada à decifragem sem que no entanto ambas sejam coincidentes. O cálculo da duração de equilíbrio deve, com efeito, fazer intervir o peso hierarquizado dos elementos, o qual depende da ficção em que o plano se insere. Um equilíbrio deste tipo é sempre descritivo, neutro — descritivo de um lugar, de uma acção, etc. —; o sentido é um efeito de tensão produzido por um desequilíbrio, por um desfasamento entre a duração real e a duração de equilíbrio. Este desfasamento pode representar uma redução ou um alargamento em relação à duração de equilíbrio. A criação da tensão é uma das operações da montagem. O papel da ficção é justificar o papel da tensão criada Trata-se do nível a que Eisenstein chamou «montagem rítmica». O cinema estandardizado respeita, em princípio, a duração de equilíbrio, exceptuando nos casos de aceleração convencional para as «cenas de acção», geralmente violentas, ou de afrouxamento em função das palavras pronunciadas. Ora o discurso não passa duma medíocre acção, em termos de movimento, independentemente do seu conteúdo: assim, os diálogos do cinema estandardizado representam, em geral, tempos mortos que só rompem o equilíbrio para destruir o ritmo. Um exemplo ainda mais flagrante é-nos fornecido pelas comédias musicais: as canções são quase invariavelmente enquadradas em grande plano e plano médio alternados. Mas a música não consegue suprir à falta de ritmo da montagem.


14.1. Exemplos: Certos filmes contêm planos cuja duração manifestamente excede o ponto de ruptura de equilíbrio interno. Neste caso, observa-se um deslize de sentido, o objecto ou a acção adquire um valor simbólico que ultrapassa o próprio plano. Toda a montagem do filme terá preparado esse ponto de tensão máxima Assim, no fim de A MÃE E A PUTA (de Eustache) o grande plano em que Françoise Lebrun fala frente à câmara prolonga-se a ponto de revelar que, para além do discurso, fica apenas a vontade de falar, a necessidade de voltar a formular qualquer coisa que o espectador de facto só descobre no plano seguinte quando a tensão se resolve: a «puta» transformou-se em «mãe». Em NOSTALGIA (de Tarkovski), a duração do plano da travessia da piscina, que de modo algum corresponde ao seu conteúdo manifesto (a vela meia escondida pelas costas da mão), leva o espectador a participar no que de indizível e simbólico está em jogo (cf. o nosso artigo «Exílio Crónico» in «A Grande Ilusão», nº 6); neste exemplo, uma vez mais, a tensão é resolvida pelo plano seguinte. Voltaremos a debruçar-nos sobre este ponto. 15. A duração média: Constata-se que, ao longo da história do cinema, a duração de equilíbrio dum plano evoluiu. Com efeito, a estética acompanha um processo histórico — submetido à evolução técnica — no qual as estruturas se mantêm mas o padrão de medida varia. Assim, um filme dos anos 20 contém, em média, um milhar de planos, nos anos 40 aproximadamente quatrocentos e, hoje em dia, entre duzentos e trezentos (cf. o nosso artigo «Defesa da curta-metragem» in «A Grande Ilusão», nº 4). A duração média de um filme, em contrapartida, não parou de aumentar: de 90 para 130 minutos. Isto significa que a duração média, para cada plano, passou de 5 segundos a 30 segundos. Esta evolução corresponde a uma maior fluidez da câmara — o que implica que, do ponto de vista teórico, se verifica que o aumento da duração é bastante menor do que o que os números poderiam levar a supor — mas representa também uma deslocação da carga semântica, da acção para o questionamento. G. Deleuze separa claramente uma estética da «imagem-movimento» e uma estética da «imagem-tempo» (9). Certos realizadores desempenharam um papel importante nesta evolução, imprimindo aos seus filmes um ritmo particularmente lento — em relação à média na mesma época —, atribuindo uma expressividade singular à duração. A produção estandardizada foi-se deixando gradualmente influenciar pelo contributo destes cineastas — mencionamos os principais: Dreyer, Rosselini, Bresson, Antonioni (figura especialmente marcante dado o sucesso que os seus filmes obtiveram) e Godard. Mais recentemente, constatou-se um aprofundamento desta tendência com autores como J. M. Straub, Tarkovski e M. de Oliveira. O afrouxamento do ritmo tem repercussão imediata sobre a encenação e desfaz a «ilusão da realidade», sustentáculo do cinema padrão: para além da ficção, os gestos exprimem a representação, a dicção sublinha o texto, o cinema descobre a essência teatral das suas origens — cf. o nosso artigo «A impureza das origens» in «A Grande Ilusão», nº 7.


I

II

III

I e II: campo-contracampo clássico: identidade do cenário com inversão da linha de fuga do ângulo dos cantos respectivos por detrás de cada personagem; oposição entre as personagens: sexo, fato, lugar no enquadramento e direcção de olhar. Orientação vertical dominante.

De I a III: retomada — mesma superfície ocupada pela personagem — com deslocação — centragem; de facto, estamos quase em câmara «subjectiva». A orientação das linhas secundárias — braços das personagens —opõese às do cenário (verticais e centrípetas) e guia o olhar do espectador para baixo — assegurando a continuidade com o plano seguinte.

IV

De III a IV: continuidade com progressão — alargamento da superfície ocupada pela zona branca central —; a inversão da direcção da lâmina da faca evidencia a presença do objecto e assegura um regresso a uma orientação centrípeta.

V De. IV a V: continuidade — ficcional ao nível da deslocação do enquadramento para baixo; formal ao nível da orientação centrípeta (os sapatos no centro do enquadramento substituem a mão e a faca). O eixo vertical é mantido pelas pernas, enquanto a mudança de tonalidade dominante é compensada pela continuidade do travelingue para trás. Mas passámos de um plano «subjectivo» para um plano simbólico em que o carácter irresistível do élan é mais forte do que o resultado da acção (o importante não é que o bandido seja morto, mas que o movimento em seu favor — que culminou com a detenção do «falso culpado ,» — se inverta).

16. Planos e mudanças de plano: A montagem assenta sobre uma operação de base de mudança de plano, em que a diferença é definida pela relação: (plano 2 - plano 1) x velocidade de mudança em que os planos foram definidos como enquadramento tempo e em que o próprio enquadramento é formalmente identificável pelas coordenadas de tonalidade dominante + tipo de linhas (orientação dos eixos) _______________________________________________________________________________________

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proporção de superfície ocupada pontos fortes aplicáveis a qualquer ícone, mas com um coeficiente de variação próprio da imagem animada — enquadramento = enquadramento inicial x enquadramento final elementos fixos O ângulo de tomada de vista não intervém nesta definição porque as modificações que imprime são analisáveis apenas através das coordenadas tidas em conta no que acima enunciámos. Esta definição é completamente abstracta e independente do objecto representado — o objecto é _________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________


determinado pela ficção à qual a montagem obedece. Todas as variáveis são aleatórias, isto é, determinadas subjectivamente pelo realizador. É no entanto possível analisar estas escolhas em função de uma média de equilíbrio convencional, tanto ao nível da composição (superfície central predominante, respeito pelos pontos fortes determinados em pintura pelo número de ouro nos dois terços do enquadramento, etc.) como da duração. 17. Significado: Qualquer mudança de plano implica uma mudança de imagem do objecto representado, mesmo se esse objecto se mantiver dum plano para o outro. O sentido é produto dessa mudança. Um plano só pode ser significativo em si se reunir numa mesma imagem dois objectos convencionalmente disjuntos na nossa consciência do real — significado de ordem literária correspondente à imagem poética tal como P. Reverdy a definiu — ou se captar o objecto de forma a dar dele uma imagem inédita que não reitere a sua representação convencional. Contudo, neste último caso, a ruptura torna-se significativa enquanto tal; em detrimento de um sentido particular dessa imagem — enquanto a nova imagem não se tornar, por sua vez, convencional: os ângulos inéditos adoptados por Wenders para filmar a máquina de escrever de HAMMETT, que no filme modificam a nossa percepção do acto de escrever em si, são retomados por Almodovar em A LEI DO DESEJO com um objectivo de estrita originalidade estética... A montagem permanece a operação verdadeiramente produtora de sentido. 18. Movimentos de câmara: A variação interna de um plano é analisável em função da fixidez de certos elementos. Convém distinguir dois tipos de movimentos de câmara: os que acompanham um objecto que se mantém no mesmo lugar na imagem — teoricamente semelhantes aos planos fixos, como empiricamente se verifica para os travelingues em que a câmara é colocada no veículo que filma — e aqueles em que o movimento implica uma modificação completa da imagem — uma ligeira deslocação pode bastar. O número de planos de montagem incluídos num «plano» de encenação com movimento de câmara não depende directamente nem da amplitude desse movimento, nem da sua velocidade — do mesmo modo, a «velocidade de mudança», mensurável pelo número de fotogramas entre dois enquadramentos, depende da determinação desses enquadramentos e não da velocidade do movimento de câmara. Assim, o travelingue lateral que acompanha a vela em NOSTALGIA representa um único plano enquanto que o «plano» seguinte — lento travelingue para trás — é composto por três planos posto que cada um deles obriga à reformulação do objecto representado no plano anterior: do quadro do homem com o cão em frente à izba (completado apenas por um estranho reflexo no charco) a «igual» quadro — cujo valor passa de «real» a «simbólico» — integrado no cenário da igreja em ruínas, e finalmente a esta mesma nova imagem — simbólica da reconciliação — num processo de afastamento reforçado pela queda de neve — simbólico da «nostalgia» propriamente dita —; no entanto, o movimento de travelingue para trás é uniforme, conquanto a primeira mudança de plano seja duas vezes mais rápida do que a segunda.


A propósito desta cena, Hitchcock declarou: «Há um grave erro para toda a cena: não devia ter sido o vilão a aparecer suspenso no vazio, mas o herói do filme porque dessa forma a participação do público teria sido dez vezes maior» (Hitchcock/Truffaut, ed. Ramsay, p. 121). Ora toda a cena está construída em função dessa ambivalência do herói positivo mas incapaz de salvar o «sabotador». Este filme é, com efeito, o primeiro filme verdadeiramente americano (e sobre a América) de Hitchcock. O erro descoberto a posteriori corresponde decerto apenas a uma viragem de opinião sobre a América, promovida a pátria definitiva.

I

II

III

I: plano simbólico, visto «subjectivamente» pelo «vilão» (de baixo). Orientação centrípeta duma série de linhas. Eixo secundário cimo esquerdo/baixo direito definido por um relevo da estátua.

De I a II: continuidade: motivo da mão — alargado —; eixo secundário oblíquo retomado pela orientação do polegar da estátua (a orientação centrípeta das linhas assegura a focalização do olhar do espectador sobre o raccord das mãos do plano anterior — manutenção das posições baixo /cimo respectivas). Ruptura: o eixo dominante vertical em que o herói é assimilado ao facho simbólico da estátua.

De I a III: retomada: superfície ocupada pelas mãos no enquadramento — com inversão das posições (desta vez visto dum ponto de vista próximo do do herói). A câmara girou 150° sobre o seu eixo. Enquanto que a linha do relevo da estátua desapareceu, o eixo oblíquo torna-se eixo dominante para todo o resto da sequência. Oposição entre a tonalidade branca e cinzenta que permite antecipar o insucesso da salvação. De I e II a III: apesar de o eixo esquerda/direita poder justificar a posição do herói, esta implica uma alteração da perspectiva: o baixo — direcção da queda — está situado no cimo, fora do campo da imagem.

IV

V

VI

De III a IV: continuidade: eixo oblíquo (do braço). Ruptura: mudança de tonalidade dominante (o cinzento domina o branco) e de tipo de linhas: aparecimento duma oval. (O espectador não tem tempo para identificar a nova deslocação da câmara, desta vez à direita do «vilão» — transgressão da regra dos 180°.

De IV a V: continuidade: oval branca central e manutenção do eixo oblíquo. (Retomada do ponto de vista do plano III). Ruptura: mudança de fundo. aparecimento do cenário desfocado no sopé da estátua que permite antecipar a queda.

De V a VI: continuidade: o eixo oblíquo cimo esquerdo/baixo direito. Mas a inversão de perspectiva adquire aqui um sentido completamente ambíguo na medida em que a queda — antecipada mas não acontecida — é transferida da personagem do vilão para a própria estátua, com todos os valores simbólicos a ela ligados. São de facto esses valores que Hitchcock, chegado aos Estados Unidos em plena paranóia da guerra, põe em causa.


19. Montagem e encenação: A montagem não é pois apenas feita de «raccords» e uma parte das mudanças de plano efectua-se directamente na encenação. Este recorte dos planos determina um certo ritmo que orientará todo o trabalho posterior do montador. O ritmo não se define em função da duração do «plano» de encenação, mas do número de enquadramentos que este compreende: o primeiro plano de A SEDE DO MAL é uma das sequências que apresenta uma das montagens mais rápidas da história do cinema; a mudança de enquadramento é contínua do grande plano ao plano de conjunto, as personagens em primeiro plano são constantemente substituídas, etc.; ao nível da encenação, porém, trata-se dum único e longo travelingue de grua. Neste tipo de «planos», a duração dos planos é inferior à das mudanças de plano e estas últimas adquirem um significado em si enquanto representação de uma variação das relações de força, dos pontos de vista, etc. A montagem em movimento adquire um impacto incomparável quando submete a ficção à sua própria rede de significados interna e abstracta; tal força expressiva é constatável em dois antológicos «planos-sequência» de interrogatórios: o da prova forjada no mesmo filme de Orson Welles e o da prova atirada à cara no fim de VENTO DE INVERNO de M. Jancso. Para planos deste tipo, o significado é fruto do contraste com os planos vizinhos que simultaneamente se opõem ao plano-sequência em questão e se integram no ritmo geral da sequência. 20. Contraste e ruptura: O trabalho de montagem consiste em calcular as rupturas de maneira a torná-las significativas. Consideramos que existe ruptura a partir do momento em que a carga dos acontecimentos diferentes de um plano para o outro é mais pesada do que a carga dos acontecimentos idênticos. Uma ruptura completa determinará uma mudança de sequência. Uma montagem que juntasse unicamente planos em ruptura completa — se tal fosse concebível — seria necessariamente caótica e semanticamente indecifrável. De facto, a simples sucessão basta para assegurar as ligações de um plano para o outro. Mas a ruptura é tanto mais significante quanto os planos mantêm alguma identidade formal. Quando o acontecimento idêntico adquire um valor particular em relação aos acontecimentos diferentes, obter-se-á uma relação de contraste. O exemplo mais característico da utilização do contraste é a montagem paralela simples, tal como Griffith a constrói em INTOLERÂNCIA — em que a mudança de cenário, que corresponde a uma mudança de época, sublinha a permanência histórica da intolerância que o filme denuncia (a ideia de continuidade trans-histórica é materializada pela continuidade de movimento de um plano para outro) — ou por F. Lang em M. MATOU — onde a mudança de cenário e de personagens, a par de uma identidade do discurso, sublinha o profundo parentesco entre as instituições sociais, aparentemente antagónicas, da polícia e do crime organizado. 21. Inserção do plano na sequência: Nos últimos exemplos citados, para adquirir significado, o contraste deve assentar não sobre dois planos mas sobre duas cadeias de


planos — da mesma maneira, os dois planos-sequência mencionados organizam-se em torno da reiteração periódica, durante o movimento, de um enquadramento de base que se vai alterando à medida que as relações de força evoluem. O plano será pois avaliado simultaneamente em função da sua inserção (ruptura-continuidade) e da cadeia em que se integra (repetição-progressão), a qual, por sua vez, se encontra ligada às outras cadeias que compõem a sequência (paralelismo, contraste-contraponto). É possível representar esquematicamente estes tipos de montagem relativamente convencionalizados: — plano 1→plano 2→plano 3 continuidade progressiva (ex.: sequência introdutória de O SOLDADO AZUL)

Montagens sintagmáticas

plano 2…………………plano 4 — plano 1 ………… plano 3 montagem paralela em contraste (ex.: INTOLERÂNCIA) plano 2………→ plano 4 — plano 1………→ plano 3 montagem paralela em contraponto (ex.: sequência final de O PADRINHO)

— plano 1

Montagem paradigmática

plano 2 plano 3 montagem repetitiva (ex.: sequência de genérico de LINHAS TROCADAS)

A ruptura está representada graficamente por uma mudança de nível. 21.1. Os diversos modos de montagem a que aludimos podem aparecer em diferentes momentos do mesmo filme, conforme o sentido que se pretender atribuir às cenas montadas. Assim, em SÃO MIGUEL TINHA UM GALO, dos irmãos Taviani, a primeira sequência — o assalto à cidade — apresenta-se em montagem contínua progressiva, a sequência da prisão assenta numa montagem repetitiva, enquanto a sequência final, na lagoa de Veneza, recorre à montagem paralela em contraste (entre as duas barcas). 21.2. Os esquemas acima reproduzidos representam montagens simples — baseadas em duas cadeias. Um filme como A SEDE DO MAL funciona constantemente com quatro cadeias (cada uma das quais toma a cargo as principais personagens: Quinlan, Vargas, a mulher, os criminosos), que progridem por encruzilhadas e por paralelismos de duas dessas cadeias cuja distribuição binária varia ao longo do filme — no início Vargas e a mulher contra os criminosos, por um lado, contra Quinlan e o adjunto, por outro: Vargas e Quinlan conduzem juntos o inquérito, enquanto a mulher é capturada e drogada pelo gang; por fim,


Vargas contra Quinlan (porém, de facto, Quinlan contra o seu adjunto e paralelamente contra Vargas): mas a montagem paralela complica-se dada a construção em continuidade progressiva de certos planos de Vargas a vencer os obstáculos e, sobretudo dada a concepção de outros planos em que as cadeias se cruzam (Vargas em primeiro plano, Quinlan no fundo com o adjunto). As rupturas no filme são associadas a um novo cruzamento de cadeias — esta adequação das cadeias formais (onde intervém a escolha dos enquadramentos) e das redes ficcionais de relação entre as personagens é o que cabalmente separa, a despeito do argumento, o filme de Welles dos policiais de série B. 21.3. O campo-contracampo clássico representa a forma mais simples de montagem repetitiva paralela por contraste — aliás, a maioria das vezes as personagens estão na mesma posição; o contraste prende-se apenas com a mudança de personagens e com a inversão de orientação dos eixos — atenuado pela continuidade sonora (as relações entre imagem e som serão abordadas mais adiante). Ou seja, o paralelismo reduz-se a uma simples alternância. 22. Tonalidade e harmonia: Para avaliar o grau de ruptura dum plano para outro, a mudança de personagem é secundária, isto é, só intervém na medida em que corresponde à mudança ao nível da dominante, da orientação dos eixos, da superfície ocupada, etc.. São estas características formais que condicionam o sentido — em especial o valor positivo ou negativo conotado — atribuído a cada plano. Eisenstein chamava «tonalidade» a esta «ressonância emocional», mas o cálculo preciso da tonalidade revela antes de tudo o grau de fixação — convencionalização — das conotações, fixação essa que escapa à análise posto que resulta de processos históricos, psicológicos, e visto que o cineasta a pode manipular em função de posições ideológicas e opções no fim de contas intuitivas — entenda-se por intuição um compromisso entre uma cultura individual (considerando o indivíduo como representante duma classe social, duma nação, etc.) e fenómenos de moda determinados a curto prazo por consenso. Em contrapartida, a caracterização dos planos consoante a tonalidade permite descrever a organização de uma sequência como um conflito entre dominantes, direcções, zonas da superfície ocupada, etc. O conflito pode resolver-se dentro dum plano onde as cadeias se cruzam, mas, a maior parte das vezes, resolve-se pela superioridade quantitativa de uma das dominantes que ocupa o enquadramento final. O ponto de tensão máxima obtém-se quando esse plano se impõe contra todos os que o rodeiam — visto que o contraste evidencia esse enquadramento, destacando-o de toda a sequência. É este efeito que Einstein define, por referência à música, como montagem «harmónica» e que retoma duma maneira mais precisa e mais complexa o conceito de «atracção» despojando-o do seu campo espectacular. 22.1. O conflito tonal era relativamente fácil de explorar a preto e branco — assim o cinzento do casaco de Quinlan em A SEDE DO MAL é percebido como branco por contraste com o preto do fato de Vargas; a sequência final, nocturna, resolve-se como uma


vitória irremediável do preto (céu + Vargas) que, por contraste ainda, altera o carácter negativo da personagem de Quinlan. A utilização das cores é mais complexa: uma cor impõe-se mais pelo contraste cromático do que pela superfície ocupada, na medida em que o acréscimo da referência ao real que a cor permite acarreta uma perda dos valores simbólicos. A maior parte dos realizadores submetem-se a esta referência; Godard é certamente aquele que mais tem trabalhado a dimensão cromática — do azul (céu e mar) e rosa de O DESPREZO aos dourados (interiores no hotel) e verde glauco (exteriores) de NOME CARMEM. 22.2. Ao descrever a partir da «montagem tonal» a «montagem harmónica», Eisenstein define a tonalidade como «unidade rítmica», i. e., cujo movimento subordina o valor semântico — Poudovkine confunde ainda nas suas teorizações a imagem com o real representado e considera um sentido do analogon equivalente ao do objecto, sentido esse que só pode ser inflectido através da montagem com outra imagem. A apropriação duma terminologia musical é característica duma preocupação manifesta de só atribuir à ficção um valor semântico e ideológico na medida em que esta optar por um ritmo adaptado ao seu discurso. O desenvolvimento de ficções centradas sobre a psicologia — i. e., cujo sentido seria subjacente à imagem e não produzido por ela — a partir dos anos 40 (principalmente mas não exclusivamente nos Estados Unidos, sendo de notar que os filmes soviéticos acompanharam esta tendência dominante, razão pela qual Eisenstein terá sido alvo de contínuos ataques por parte dos seus colegas compatriotas) representa também uma rejeição das concepções formalistas demasiado comprometidas politicamente — i. e., que implicam uma concepção do discurso como produto dialéctico das relações de força contraditórias e não como uma simples afirmação consensual. 22.3. A hierarquia dos diversos tipos de montagem descritos em 1929 por Eisenstein corresponde apenas ao número de coordenadas tidas em conta. Se do ponto de vista teórico o mais complexo inclui o mais simples — a «montagem harmónica» deve ponderar os dados estritamente «métricos» de duração de cada plano —, Eisenstein esclarece que a escolha dum tipo de montagem para uma sequência — i. e., o número de coordenadas em jogo — depende da complexidade do efeito — e do sentido — a produzir. Efectivamente, Eisenstein admitia uma função pedagógica do cinema, em razão da qual o realizador devia submeter-se à capacidade de leitura do público. Desse público, Eisenstein esperava uma reacção precisa. A estandardização do cinema corresponde à do seu modo de consumo. A ausência total de expectativa no tocante à reacção do espectador, para além da compra do bilhete, torna caduca este preocupação: o cinema evoluiu de uma «arte popular» para uma arte de elite e a tarefa de embrutecimento do público foi sendo desempenhada por outros media. Não nos debruçaremos aqui sobre a ausência de montagem dos produtos televisivos — os folhetins são compostos a 90% de planos aproximados de personagens a falar, i. e., a televisão limitou-se a desenvolver a montagem repetitiva em continuidade (ou em alternância no caso, por exemplo, dos jogos e dos telejornais).


22.4. Descrevemos esquemas de montagem de sequências considerando as relações entre cadeias como homotéticas das relações entre as unidade-planos — sendo a cadeia igual à soma vectorial dos planos que a compõem. Mas estes só podem dar conta de figuras simples, particularmente convencionalizadas. Posto isto, a verdade é que há filmes inteiramente redutíveis a figuras pouco mais complexas: O SOLDADO AZUL assenta todo ele numa montagem «harmónica» — a sequência-chave do massacre final é introduzida em contraponto desde o começo do filme em que os planos são caracterizados pela importância das paisagens em comparação com os humanos (do ponto de vista semântico, o filme baseia-se numa assimilação implícita índios/natureza, que funciona por convenção sem correspondência com o conteúdo formal dos planos). A partir da descrição das relações complexas entre um grande número de planos na concepção da «montagem harmónica», a organização da montagem em unidades superiores (até à unidade filme) deve obedecer a um esquema rítmico dependente de opções tomadas pelo realizador, ou antes, frequentemente não-previsto, isto é estritamente submetido à progressão ficcional. Por isso os princípios que podemos descrever aplicam-se apenas ao desenvolvimento coerente em unidades maiores de opções estético-narrativas iniciais por assim dizer arbitrárias. I

II

III

I: tipo de linhas: dois círculos iguais — a cabeça, o buraco —; orientação: oblíqua cimo esquerdo/baixo direito dada pela linha dos ombros. Tonalidade: os círculos destacam-se em preto, mas o círculo da direita contém uma luz branca que se opõe à tonalidade escura da cabeça mas também a modifica no decorrer do movimento — os dois círculos aproximam-se.

De I a II: um dos círculos — a cabeça — ocupa toda a superfície central — dominante negra (ameaça) crescente. O segundo tranformou-se em vertical branca.

De I a III: ruptura — mudança de tipo de linhas (as verticais passam a dominar) e de tonalidade do fundo (alargamento do preto que encarcera o branco; do ponto de vista ficcional, mudança de personagem. De II a III: continuidade por alargamento da vertical branca associada ao chuveiro (a forma e a cor ligam a fenda do plano II ao que através dela é visto).

IV

De I a IV: retomada dos dois círculos — a íris e a fenda (mas trata-se agora de ovais verticais) — e oposição definitiva das cores. De III a IV: continuidade ao nível da tonalidade negra dominante do fundo.


V

VI

VII

De IV a V: ruptura — mudança de tonalidade. O facto do círculo da cabeça ficar ligeiramente excentrado assegura a continuidade com a localização da fenda no plano IV. A figura circular que domina a sequência é reduzida a uma só unidade — do ponto de vista ficcional, a dualidade (figura do desejo) passa a unicidade (aqui, figura da vítima): do desejo erótico à morte sacrificial, a passagem cumpre-se com este plano.

De V a VI: continuidade: círculo do mesmo tamanho no mesmo lugar no enquadramento. A violência dos segmentos do jacto de água, organizados em raios, introduz um novo tipo de linhas (não-orientadas ainda).

De V a VII: continuidade — forma e superfície ocupada; ruptura — preto versus branco. De VI a VII: a faca materializa uma das linhas, com inversão de direcção — centrípeta versus centrífuga. A fixação — definitiva até ao fim da sequência — do fundo branco (mudança de cenário) corresponde simbolicamente à mudança de valor da personagem de Janet Leigh (ladra no início do filme).

IX

X

XI

De VIII a IX: continuidade (progressão) com mudança de orientação: no plano VIII o rosto está virado para a esquerda e agora está virado para a direita: até aqui a personagem de Perkins ocupou a parte esquerda da imagem (I, IV) ou então orientou o eixo de leitura para a direita (o olhar no plano II, a faca no plano VII). A situação invertese aqui (depois da deslocação em relação ao centro no plano anterior) e esta inversão corresponde a um aumento de tensão. O círculo da boca ocupa aproximadamente a superfície do círculo do rosto no plano anterior.

De VII a X: ruptura: inversão de direcção (conquanto seja ainda centrípeta) — a faca opõe-se agora ao eixo do jacto de água. Redução do círculo a um ponto — o umbigo (ficcionalmente. o desaparecimento do rosto constitui o primeiro indício do desaparecimento próximo — morte — da personagem). A lâmina da faca (como o jacto) desempenha simbolicamente a função de redenção da personagem (como o jacto que anteriormente a lavou).

De X a XI: continuidade — a oblíqua da faca e do varão —; a anulação da oposição (direccionalidade) do jacto de água = perpetração do crime.

VIII

De V a VIII: retomada com progressão — aproximação = aumento da superfície ocupada — e deslocação em relação ao centro da imagem. De VII a VIII: continuidade: manutenção da oblíqua cimo esquerdo/ /baixo direito da faca através do jacto de água; ruptura: branco/preto (relação de campo/contracampo). Desenha-se um pequeno círculo — a boca — preto no círculo do rosto. XII

De V a XII: continuidade — retomada com alteração do aspecto da cabeleira. De XI a XII: ruptura: inversão da oblíqua (do braço em relação ao varão) e da direccionalidade (aqui centrífuga, orientada para um fora de campo inacessível — visto que o cortinado-saída se encontrava à direita no plano anterior). A mão aberta surge em contra-luz como um estilhaçar da figura do círculo.


XIII

XIV

XV

XVI

De XII a XIII: continuidade: a localização assegura a identificação da mão. Ruptura: desaparecimento momentâneo da figura circular. O que está em jogo (a vida) é figurado pela verticalidade que a mão procura mas desmente pela horizontalidade dos dedos.

De XIII a XIV: ruptura: introdução da horizontal como eixo dominante (primeira aparição deste eixo na sequência). A verticalidade (os ganchos do cortinado) é derrubada. Desaparecimento do elemento humano.

De XIV a XV: continuidade — eixo horizontal, figura da morte.

De XV a XVI: ruptura — desaparecimento, mais uma vez, do elemento humano — e retomada da linha circular (planos I, depois V a IX — com inversão do movimento em relação a este último plano: o grito saía da boca enquanto que a água e o sangue são sugados pelo sifão).

XVII

XVIII

XIX

XX

De XVI a XVII: continuidade com progressão — as linhas do jacto de água são absorvidas pela circularidade do turbilhão.

De XVII a XVIII: continuidade (com fundido encadeado) e alteração — regresso do elemento humano. De IV a XVIII: retomada do motivo do olho em muito grande plano (o espectador não sabe ainda a quem pertence o olho).

De XVIII a XIX: continuidade com progressão. De IV a XIX: ruptura: eixo secundário vertical (direcção do olhar e orientação do rosto) perpendicular ao rosto de Perkins no plano IV.

De XIX a XX: continuidade com progressão. Identificação do rosto ao qual pertence o olho. A sequência desenrola-se entre dois olhares, o do assassino e o da vítima (contudo o espectador não pôde realmente identificar o assassino, supostamente a «mãe» fictícia de Perkins)

23. Ritmo e repetição: Os esquemas rítmicos da montagem de sequências maiores ou complexas tiram partido da reiteração periódica — sem no entanto obedecerem a uma regularidade estrita — de planos ou de figuras idênticos ou equivalentes. Até agora limitámo-nos a examinar repetições contíguas — montagem repetitiva — ou em alternância — montagem paralela. Contudo o espaçamento pode ser maior e a repetição de elementos passa a desempenhar uma função diferente. Aliás tanto pode haver repetição de planos — a caminhada na estrada em pleno campo de O CHARME DISCRETO DA BURGUESIA de L. Buñuel — como de figuras abstractas de conjunto — a montagem repetitiva não aparece só


na sequência do genérico de LINHAS TROCADAS de Ted Kotchett mas também numa muito posterior sobre a reacção dos espectadores que desatam a telefonar ao governador, noutra ainda sobre a deformação da informação pelos jornalistas após a evasão (esta última oferece a particularidade de ser montada numa só panorâmica, reforçada por uma progressão contínua ao nível da banda sonora)... O plano da caminhada no filme de Buñuel começa por funcionar como uma falsa pista (nova sequência bruscamente interrompida ou flash-back), depois intervém como pontuação e, por fim, impõe-se como imagem emblemática. A figura da repetição no filme de Kotcheff faz sobressair a permanência ou a acumulação conforme a personagem (centro da imagem) muda ou não de um plano para o outro, mas acaba por funcionar como chave de um sistema regido pela lei do número («O que eu digo três vezes é sempre verdade»). Estes valores dependem da maior ou menor ruptura entre os elementos repetidos e os que os separam. Neste estudo, só temos fornecido exemplos particularmente sublinhados. Com efeito, é raro acharmos um plano isolado num filme. A coerência de um filme reside no facto de cada plano responder a um outro; esta correspondência garante uma homogeneidade mínima das cadeias de continuidade — em contrapartida, a gramaticalização excessiva, ao alimentar tão-somente o aspecto repetitivo de cada cena (ocorre-nos o exemplo dos filmes de guerra dos anos 40) pode transformar um filme num ritornelo de realejo, num enfeite sem efeito. A montagem numa unidade maior constitui um esqueleto formal que está para a narração como a unha para a carne — quer a narração engendre a montagem ou a ela se submeta (conforme o projecto do filme for escrito sob forma literária ou pictórica, conforme o argumento for anterior ou posterior ao découpage) — e a sua estrutura baseia-se nos lugares respectivos de unidades idênticas; esta colagem à narração implica que ao nível da unidade superior seja mais fácil estabelecer o paralelo com a arquitectura e a estilística do que com a música. A repetição de vários elementos deve efectivamente ter em conta as variações, no que diz respeito à ordem desses elementos, e a repetição «pura» surge apenas como uma das figuras possíveis e não raro a mais monótona. A repetição é a operação de base que permite construir as figuras de encaixe, de simetria, etc. 23.1 A maior ou menor visibilidade dos processos estilísticos está ligada a uma concepção global do cinema, ao seu funcionamento social, ao seu estatuto enquanto media. A história do cinema mostra a eclosão periódica de «vanguardas» que privilegiam o aspecto retóricoformal a fim de experimentarem novas figuras — aí surge a visibilidade — que o cinema estandardizado trata de assimilar rapidamente à panóplia da ficção — a invisibilidade é obrigatória. Os filmes de Scorcese ou de Shrader adoptam um modo de narração assente na descontinuidade das unidades-planos em sucessão imediata, compensada pela manutenção de uma continuidade ficcional centrada sobre as personagens. 23.2. Existe entre a geometria formal da montagem e a sua produtividade semântica a mesma relação que entre figuras de estilo e figuras de pensamento, e os mesmos riscos de esclerose — notória na perda semântica quando L. Carax retoma uma série de figuras


«godardianas» — ou até de gratuitidade — lembramo-nos de certas sequências virtuosas de R. Altman. A coerência obtém-se quando a montagem deixa de ser a mera encenação duma ficção passando a apostar na elaboração dum discurso que assume necessariamente um carácter didáctico. Neste sentido, é falso que uma cena só possa ser filmada de uma maneira, que a câmara tenha, em função da acção, um lugar ideal, etc., mas tudo isso se torna verdadeiro dentro dum discurso determinado (a vontade de discurso é um traço distintivo dos «autores»). 23.3. Constata-se que o valor atribuído à ficção é directamente proporcional à preocupação didáctica dos realizadores. Assim, do ponto de vista formal, o «estilo» de uns poucos «autores» pode variar consideravelmente de filme para filme — tal é o caso com Fassbinder ou Buñuel —, enquanto a maioria mantém uma escolha formal cujas figuras se repetem ao longo das várias obras — é possível identificar certos planos (certas unidades) característicos (constantes) de Godard, Fellini, Welles, M. de Oliveira ou Tarkovski. Em contrapartida, a posição de Fassbinder ou Buñuel em relação à ficção filmada — a «distância» que mantinham — permanece inalterada através dos vários momentos das respectivas obras — ao contrário de um Huston ou de um Kubrick, por exemplo... Esta variabilidade estilística de determinados autores parece-nos ligada, por um lado, à sua integração num sistema de produção mais limitativo — quer esta, traduzindo-se por uma produção quantitativamente impressionante, logo por rodagens rápidas, seja voluntária (no caso de Fassbinder) ou imposta (no caso de Buñuel) — por outro, paradoxal mas talvez subsequentemente, à valorização menor das potencialidades do cinema: existe uma continuidade directa entre a actividade teatral de Fassbinder e os seus filmes bem como entre as propostas surrealistas e o universo «buñueliano». 24. Ritmo e duração: O ritmo geral — i. e., o número de planos ou mesmo a sua duração média (mas a fluidez crescente da câmara modifica este padrão, ao introduzir uma duração média de mudança de plano superior à dos próprios planos) — é mais variável do que a duração média global dos filmes: Esta última, ao estandardizar-se, cria hábitos de percepção baseados numa construção relativamente estável das ficções fílmicas e da distribuição dos seus tempos fortes, independentemente do ritmo interno da acção. Certos momentos de intensidade crescente ou decrescente da atenção do espectador vão-se fixar independentemente do filme visionado. Um cálculo bastante preciso foi efectuado e utilizado para estabelecer o ritmo de certos filmes e, graças às escolhas rítmicas, reforçar determinados efeitos de adesão por parte do espectador — adequação da fixação do ritmo do filme ao da sua leitura. O contraponto entre os dois ritmos produzirá, pelo contrário, um efeito de surpresa mais eficaz — o ritmo de CARRIE de B. de Palma é inteiramente determinado em função desse ritmo fixo da percepção; o funcionamento dos efeitos do filme confirma a justeza dos cálculos. No entanto, a montagem só pode ser valorizada na medida em que «educa» o espectador, lhe permite receber um discurso inédito e logo


perturba os seus hábitos; estes dados só podem pois ser tomados em consideração como mais um espartilho — um espartilho da mesma ordem que a ficção convencional que o engendrou. 25. Cinema sonoro: Até agora adoptámos uma descrição de unidades — da mais simples que permite definir um efeito de sentido à mais complexa que permite definir um efeito de estilo — essencialmente icónicas. Esta opção é justificável pela própria evolução da história do cinema, na medida em que, quando o som apareceu, as teorias da montagem já tinham sido elaboradas (e a gramaticalização dos filmes-padrão era já um dado adquirido) e porque foi nosso propósito comentar, pelo menos, as teorias de Eisenstein. Mas o espaço sonoro e as possibilidades que ele abre, ainda largamente inexploradas, obrigam-nos a retomar a descrição a partir das unidades mínimas — o plano. A unidade icónica plano não corresponde a uma unidade sonora, mas a definição desta última significaria uma autonomia de que o som não goza em relação à imagem. Não se trata pois de comparar as unidades, trata-se de pôr o plano em relação com as componentes sonoras. 26. O som: O espaço do som não é o do ecrã — mesmo os sons «in», dado o lugar dos altifalantes, são captados pelo espectador com uma proximidade maior do que a da imagem; o espaço do som é o espaço, a três dimensões, da sala de cinema. As dimensões do som não são as da imagem: o som possui um volume — portanto funciona dentro de uma perspectiva (no sentido da profundidade) — e uma duração. O som é lido de maneira contínua pela cabeça de leitura do projector e é recebido da mesma forma pelo ouvido do espectador; é analisável em «qualidades» mas não é divisível em elementos. No filme encontra-se associado à imagem — e a análise não pode desligá-lo — mas possui um ritmo próprio, que nunca coincide exactamente com o da imagem. 27. A montagem do som: A banda sonora de um filme é composta por várias pistas que só são reunidas na altura da mistura. A mistura concretiza acusticamente a montagem preparada, ao nível material, pelo montador. A mistura fixa a hierarquia entre as diferentes pistas — variável conforme os momentos —, realiza os encadeamentos de uma pista para outra, determina definitivamente a perspectiva sonora (intensidade) e a sua tonalidade (timbre, por filtragem das frequências). A mistura é a última operação de «montagem» de um filme — qualquer alteração posterior da ordem ou do número dos planos implica uma nova mistura — antes da tiragem das cópias (a escolha de luz não passa de uma operação de homogeneização e não altera em nada a montagem). Mas toda a mistura deve ser prevista na fase anterior da montagem; por isso, e para simplificar, associaremos as duas operações. 27.1. O som e o plano: O som ultrapassa sempre a imagem em termos de duração. Assim, os sons de dois planos sucessivos devem imbricar-se. A equalização das qualidades sonoras


torna impossível, na banda sonora, o «raccord-cut» — este tipo de raccord é praticado, em televisão, entre cenas (porque os diversos planos de uma cena são gravados simultaneamente e montados directamente na régie) e camuflado por uma pista «música»; o que significa que a «montagem» é reduzida à sua expressão mais simples, perdendo entretanto as suas capacidades expressivas. Por tudo isto, a montagem do som, se o som não for uma mera ilustração da imagem (sobretudo diálogos), tende a explorar este desfasamento, esta não-coincidência dos acontecimentos icónicos e sonoros — mais adiante examinaremos a teorização deste aspecto, sob forma de «contraponto». 27.2. As pistas sonoras: Por razões convencionais e pragmáticas, separam-se as pistas sonoras consoante os diversos tipos de sons que compõem a banda: palavras, música, barulhos, ambientes. Cada um destes tipos de som é repartido, no mínimo, entre duas pistas, podendo assim imbricar-se de modo a permitir equalização e encadeamentos na mistura — o caso da dobragem é particular, uma vez que a voz de cada personagem é habitualmente gravada e montada numa pista separada. A montagem deve estabelecer a hierarquia, a cada momento entre as diferentes pistas. 28. A tomada de som síncrono: A escolha deste modo de tomada de som, que, em boa verdade, só se generalizou a partir da sua utilização sistemática pelos cineastas da «nova vaga», no decorrer dos anos 60, e antes de tudo por razões financeiras — a aceitação e a convencionalização desta nova estética sonora são posteriores — vai marcar especialmente a encenação. Mas influi sobre a montagem — como já vimos a montagem e a encenação são solidárias — porque se opera, já na fase da gravação, uma selecção de sons e uma determinação da perspectiva sonora. Esta fixação ainda na etapa da rodagem pode ser julgada demasiado limitativa e certos realizadores, como Fellini, continuam a praticar a pós-sincronização. A regra é orientar a perspectiva consoante o lugar da câmara, quer dizer conforme as deslocações num espaço real que o espectador tem de apreender e reconstituir. Esta perspectiva é a da ficção, não a da montagem. Contudo, a selecção dos sons na encenação submete a ficção a outras imposições em que os desfasamentos internos ao plano podem tornar-se produtivos; Godard tem vindo a experimentar regularmente as manipulações possíveis da ficção pela intervenção controlada do real e do ocasional. 29. A imagem e o som: Enquanto no fim da época do mudo os cineastas encararam o som como uma matéria a trabalhar capaz de modificar as informações da imagem, a introdução do som representa, historicamente, a adopção definitiva de um modo de narração literária pelo cinema, através dos diálogos que verbalizam a ficção tirando-lhe a ambiguidade da narração icónica: as palavras contam factos, traduzem sentimentos, etc., de maneira convencional e unívoca, quando um jogo de olhares, por exemplo, é apenas um dos elementos de um plano ou de um grupo de planos cuja tonalidade, relação plástica, duração respectiva, etc., criam um ritmo autónomo, não independente do objecto filmado, mas que


modifica a sua percepção e cria um contexto — o sentido desse contexto entra em concorrência com o da ficção representada. O cinema sonoro, ao tornar-se falante, i.e., ao submeter o discurso fílmico ao discurso verbal, mudou de função social, de modo de produção, de opções de discurso e fez-se veículo duma função social e ideológica baseada na convenção — constata-se que a gramaticalização dos planos, se bem que elaborada muito cedo, só se torna definitiva e limitativa nos anos 30. 29.1. A correspondência entre a informação sonora induzida pela identificação do objecto filmado com o som efectivamente captado é estritamente redundante e carece de valor estilístico (realce) a partir do momento em que se torna sistemática. Do ponto de vista sonoro, os diálogos dum filme são redundantes em relação ao acto de palavra percebido ao nível do desempenho dos actores. 29.2. As possibilidades expressivas do som dependem, muito pelo contrário, da distância entre a imagem e o som que lhe vem associado. A não-correspondência absoluta — «contraponto», teorizado por Eiseinstein e Poudvkine — assenta contudo também numa forte convencionalização do som (que tem de ser identificado sem qualquer ajuda da imagem) e só tem valor no plano tonal e simbólico A liberdade absoluta de escolha, ao nível da distância, entre a redundância e o contraponto, é possível apenas no contexto de um som «off», incompatível com a narratividade ficcional que o cinema desenvolveu. Uma margem de manobra superior encontra-se frequentemente no género dito «documentário» 29.3. Assim, a montagem do som no cinema de ficção tem de jogar com o doseamento do «in» e do «off»: o «in» permite uma selecção que vai orientar a interpretação da imagem, a adição do «off» pode, insidiosamente, transformar totalmente o valor dessa imagem. O exemplo mais interessante de trabalho sobre o som «in» é certamente o tratamento sonoro dos filmes de Tati; a utilização do «off» continua a ser muito tímida, na maioria dos casos funciona como «efeito» em filmes de género. Não deixaremos de indicar uma das pistas de trabalho menos exploradas: a passagem dum som «in» para «off», admissível na narratividade ficcional uma vez identificada a origem desse som e que apresenta a vantagem de permitir o desenvolvimento duma narração distintiva daquela que o som «in» constrói em continuidade. 30. A narratividade sonora: Por um sem-número de razões — históricas: o som, tardiamente trabalhado, numa época em que os meios de narração icónica tinham sido explorados em profundidade; fisiológicas: o órgão da audição é menos solicitado do que o da visão; técnicas: por questões de rentabilidade, a qualidade técnica de gravação e sobretudo de reprodução sonora é inferior às possibilidades técnicas reais (em especial nas cópias «som óptico»), etc. —, a matéria sonora só é utilizada dentro dum espectro restrito e o som foi-se convencionalizando ainda mais fortemente do que a imagem — ulteriormente abordaremos a ilustração musical — e engendrou meios narrativos autónomos — não exclusivamente verbais. O «bruitage» é inteiramente tributário desta convencionalização


dos sons. Os folhetins radiofónicos, antes do próprio cinema, tiraram partido desta capacidade narrativa. É pois concebível que a banda sonora conte uma ficção que, se bem que mantendo pontos de contacto com os acontecimentos icónicos, se constrói paralelamente à ficção encenada nas imagens. Todas as operações de montagem — paralelismo, cruzamentos, etc. — podem funcionar nas relações entre as imagens e a banda sonora considerada como uma nova cadeia ficcional autónoma. Em contrapartida, a capacidade de selecção do ouvido, sem o apoio dos outros órgãos sensoriais, impede na prática de distinguir mais de duas cadeias simultâneas na banda sonora — fenómenos de parasitagem. A ficção recorre muito rara e timidamente à narratividade própria do som e quase sempre como efeito particular ao qual os acontecimentos visuais cedem lugar — sala às escuras, espaço nocturno, etc. —, ou seja, como narração «off»; a presença dos analogons parece demasiado intensa para não subjugar toda a ficção e, geralmente, a narratividade do som «in» intervém apenas como processo de realce. 31. As pistas sonoras: Estabeleceu-se uma hierarquia entre os diversos tipos de sons, resultante do modo narrativo hegemónico, que privilegia o diálogo em relação às outras pistas. Os ruídos só são utilizados em «in» ou para efeitos especiais — cómico, terror. Os ambientes constituem, antes de tudo, um fundo sonoro que permite a equalização dos vários planos num mesmo décor. A utilização da música é também, quase invariavelmente, pobre; a análise e a denúncia de T. Adorno e H. Eisler não perderam actualidade; recorre-se essencialmente à musica «de ambiente» — com uma preferência marcada pelos trechos clássicos vulgarizados (a «Cavalgada das Valquírias», por exemplo, tem sido largamente vilipendiada) — ilustrativa — para evocar a época nos filmes históricos — e redundante — ao nível da «tonalidade», luminosa ou sombria, lenta ou rápida, etc. Acresce que certos efeitos se tornaram convencionais: o suspense, a chegada do herói, etc. Raros são os filmes onde intervém uma música contemporânea julgada mais «difícil» — este fenómeno prendese talvez com o desfasamento entre a evolução musical e a sua difusão — assim como poucos são os cineastas que jogam no tratamento musical dos ruídos. 31.1. Dado o lugar privilegiado do diálogo «in» e o seu papel na manutenção de um modelo de narração ficcional, as tentativas de renovação desse modelo passaram por um questionamento sistemático do suporte dialogado: interrupções, sobreposições — Godard (UMA MULHER CASADA), Buñuel (o avião que cobre a conversa telefónica em O FANTASMA DA LIBERDADE) —, redução do papel das palavras — Tati — ou supressão — M. Deville (LA PETIT BANDE), L. Besson (O ÚLTIMO COMBATE) ou ainda musicalização da pista diálogo — quer tornando o diálogo incompreensível: C. Faraldo (THEMROC), M. de Oliveira (O MEU CASO); quer optando pelo diálogo cantado e atribuindo-lhe uma função rítmica outra: M. de Oliveira (OS CANIBAIS), J. Demy (experimentação constante a este nível, de OS GUARDA-CHUVAS DE CHERBOURG a UM QUARTO NA CIDADE).


32. Banda sonora e ritmo: Pela sua estrutura interna e pelo tamanho reduzido dos ruídos — há silêncios entre as palavras — a banda sonora possui o seu próprio ritmo, mais rápido do que o das imagens, e interno ao plano. Cada tipo de som, logo que se repita, intervém nesee ritmo. A resultante «harmónica» é pois composta por uma quantidade de ritmos sobrepostos — num diálogo: silêncio/voz 1, silêncio/voz 2, voz 1/voz 2. Além disso, a nãocoincidência entre a duração dos planos e a duração, contínua, da banda sonora, faz com que o ritmo da banda comande o do filme. Este papel da banda sonora tem ficado por explorar na medida em que não corresponde à narração fílmica convencionalizada. Com preponderância só pode aparecer a partir do momento em que o desenrolar da ficção se modifica em função de um ritmo que não obedeça unicamente às necessidades da ficção — assim, o tratamento da dicção para o texto de Claudel em O SAPATO DE CETIM conjugase com uma «teatralização» assumida ao nível da encenação. Os filmes «musicais» constituem um caso isolado: por razões técnicas («playback»), a montagem do som precede e condiciona a da imagem. Tirando o caso particular destes filmes, só Godard e alguns cineastas experimentais conceberam os seus filmes em função dum ritmo sonoro: regularidade das cenas — que interrompem a ficção — da orquestra a ensaiar os quartetos de Beethoven (NOME CARMEN), prolongamento do diálogo entre Lemmy Caution e o computador noutros cenários (ALPHAVILLE), reiteração de um plano cujo ritmo interno corresponde ao duma frase musical quando esta última se repete (o movimento da cabeça de Anna Karina em MADE IN U.S.A.), etc. 32.1. A utilização da música como pontuação rítmica é relativamente corrente — na medida em que se atribui uma certa «neutralidade» semântica à música. Assim, com base nesta utilização é possível observar o desenvolvimento pontual de uma vontade de adequação rítmica da montagem do filme — enquanto narração ficcional — à da banda sonora — enquanto estrutura abstracta. O desfasamento entre os dois ritmos só será viável — com todas as potencialidades de efeito de sentido criadas por esta nova tensão — uma vez ultrapassado o actual estado de utilização estritamente redundante e de sujeição de todos os ritmos ao da narração ficcional. 33. «Sátira, ironia e sentido mais profundo»: É evidente que qualquer consideração retórica, que suponha a priori um objectivo de expressividade para a realização dum filme, não pode, provisoriamente, tomar em consideração a função social do media, condicionante da sua estética. Os processos de convencionalização amiúde mencionados, a evolução mínima da montagem no quadro da produção estandardizada e a sua desvalorização profissional — reduzida, ao nível do som, à sincronização, ao nível da imagem, aos raccords — estão intimamente ligados com o papel de distracção, e não de espectáculo (cf. o nosso artigo «O cinema não é uma arte» in «A Grande Ilusão», n.91), de embrutecimento das massas mais do que de «divã do pobre», que o cinema tem vindo gradualmente a


desempenhar na nossa sociedade — dos anos 20 aos anos 60, data a partir da qual esta função passa a ser assumida pela televisão. Todos os meios de comunicação têm uma função pedagógica, assumida ou não pelos seus produtores, e formam um público. A cretinização é uma realidade psico-sociológica: tomando-se os espectadores como atrasados mentais, apresentando-se-lhes filmes cuja «descodificação» é simplificada ao máximo, consegue-se que eles integrem este estatuto, que eles baixem efectivamente ao nível de suposta estupidez ao qual os filmes se dirigem. O desenvolvimento da montagem supõe ou uma selecção do público — o cinema está actualmente a tornar-se uma «arte» de elite — ou um empenhamento revolucionário mínimo. Redundância, continuidade, ênfase são processos retóricos que tendem a simplificar a leitura, tornar unívoca a mensagem, excluir qualquer reacção de reflexão crítica por parte do público. Conviria eventualmente voltar a baptizar essa outra operação que consiste em suprimir as tensões, reduzir as distâncias e uniformizar os planos segundo um modelo estrutural comprovadamente digestível — dentro duma economia de consumo. 33.1. É possível encarar a hipótese de uma montagem ficcional que organize a progressão da acção com base na continuidade dos movimentos do actor, nos seus movimentos de cenário para cenário, na sua oposição face a outras personagens, etc. É obviamente essa que capta a atenção da maioria dos espectadores, que faz o objecto da maioria das observações por parte da crítica. Estritamente literária, redutível ao argumento que as imagens se limitam a ilustrar — a câmara ocupa o melhor lugar — enaltecendo-o — esplendor, verismo ou exotismo dos cenários: equilíbrio dos enquadramentos — e que o som explicita, essa concepção do cinema-padrão implica não somente uma estagnação estética mas uma redução dos próprios guiões («stories») a esquemas simplificados — o herói, o vilão; «boy meets girl»; etc. O estatuto de «autores» atribuído a certos realizadores é um dado adquirido recentemente, que põe em causa a organização industrial da produção; a criatividade dos técnicos, que raramente escolhem os filmes nos quais trabalham, está longe de ser reconhecida. Importa não esquecer que, da produção americana, só chegam à Europa os filmes de «série A» — para além de certos filmes de «série B» em salas especializadas, sobre os quais a crítica raramente se debruça —, ou seja uma ínfima porção do lote total de fitas, e que a reflexão sobre o cinema parte de produtos que transgridem as próprias regras do sistema — investimento de alto risco, desproporcional em relação aos critérios de rentabilidade que regem o mercado (cf. o nosso artigo «Gangsters no cinema» in «A Grande Ilusão», nº 5). A teoria descreve, a partir de produtos excepcionais, um cinema possível. 34. Pragmática: No começo deste artigo, reivindicámos um critério de aplicabilidade da teoria. Definidos os parâmetros formais que constituem o plano, podemos voltar a formular as famosas «regras» às quais se resume a aprendizagem da montagem nas «escolas de cinema», integrando os novos parâmetros — a intervenção destes últimos permite


modificar a produtividade semântica dos «raccords». A maioria destas «leis» influem aliás sobre a encenação e sobre o découpage, numa concepção de montagem desvalorizada enquanto operação criativa específica. «Lei dos 30°»: estabelece um critério de ruptura mínima, sob pena de «salto» cinestésico ao nível das linhas de composição, considerando fixo o seu eixo de orientação. A «lei» não tem em conta nem a mudança de enquadramento — ao nível da proporção de superfície ocupada — nem a mudança de eixos (determinados pela «lei dos 180°» — cf. infra); a deslocação da câmara não é relacionada com uma mudança de ponto de vista (concepção ficcional) nem com uma mudança de plano (concepção formalista); a lei dita, pelo contrário, a condição de invisibilidade do raccord entre dois enquadramentos equilibrados em torno dum mesmo centro, ponto forte único. Esta regra é implicitamente justificada pelo respeito da duração média como factor de mudança de plano. «Lei dos 180°»: estabelece um critério de permanência dos eixos de orientação geométrica do plano, tanto no âmbito formal — deslocação das personagens dentro do enquadramento, entradas e saídas de campo — como ficcional — direcção de olhares (o olhar não determina um eixo material de orientação do enquadramento). A sua validade em termos de continuidade tem vindo a ser de há muito posta em causa; em contrapartida, permite definir ruptura — tirando a figura convencionalizada da confrontação (campo-contracampo) ou encontro de duas personagens — e progressão. «Tesouras»: o efeito denominado «tesouras» só acontece realmente quando o movimento de câmara é interrompido antes de ter parado num enquadramento estável, i.e., quando o raccord se faz durante uma mudança de plano e não entre dois planos. O efeito em si não passa duma ruptura por passagem brusca dum eixo de orientação do plano a um eixo oposto. Tal passagem, admitida entre dois planos — com todos os níveis de distância, do contraste à oposição passando pela simetria — deixa de o ser quando o raccord se opera no tempo intermediário da mudança de plano. As razões fisiológicas invocadas são insuficientes: conquanto a passagem seja violenta para o olho, a violência não implica perda de legibilidade. De facto, é a antecipação do plano a seguir que vai ser frustrada, donde, talvez, advenha a reacção de rejeição. Utilizado para fins rítmicos — «tesouras» agrupadas num conjunto de planos em série onde a deslocação, traduzida por uma orientação dos eixos, adquire um valor próprio, independentemente do enquadramento singular ao qual a série de planos pode conduzir — o efeito não suscita qualquer dificuldade de percepção; porém, é demasiado brutal para ser integrado de maneira discreta numa continuidade — ex.: a felação em CARNAL KNOWLEDGE de M. Nichols. «Raccord de movimento»: define a uniformidade da progressão das mudanças de enquadramento entre duas séries de planos em continuidade. Consoante o eixo, corresponde de facto ou não a uma velocidade equivalente de deslocação da câmara, ou da câmara e de uma personagem — ex.: deslocação frontal para a câmara (em plano «fixo») seguida de um travelingue para a frente. O raccord efectua-se em relação à superfície


ocupada, ora segundo um princípio de continuidade do movimento, ora segundo um princípio de repetição — a simetria, que acarreta uma inversão dos eixos de orientação, produz um efeito de «tesouras». A continuidade formal corresponde a uma descontinuidade narrativa — este tipo de raccord é sistematicamente utilizado por Fellini e também por Scorcese em A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO — ou ficcional — permite reforçar o dramatismo, marcando uma relação entre as personagens ligadas pela ficção mas separadas pelo cenário; ex.: Robin dos Bosques aproxima-se da cidade, a câmara aproxima-se de Mariana encarcerada numa masmorra (que Robin vem libertar) em AS AVENTURAS DE ROBIN DOS BOSQUES de M. Curtiz. A partir do raccord de movimento, é possível, por um lado, encarar a hipótese de mudança de ritmo, por outro, juntar enquadramentos em ruptura total — o raccord «clássico» só joga no contraste —, se a mudança de enquadramento for dada como processo motor da progressão. Se se assimilar a tensão interna dos eixos dum «plano fixo» à orientação dos eixos criada pela deslocação, o raccord de movimento pode ser classificado como operação de base da montagem. 34.1. É difícil calcular o grau de descontinuidade a partir do qual a narratividade se torna impossível. A reiteração de elementos idênticos basta para criar fenómenos de assimilação regressiva, enquanto a sucessão induz uma assimilação progressiva, de tal modo que podemos considerar que a montagem caótica parece ser um pólo teórico sem realidade concreta. O espectador é mais sensível à recusa ostensiva das convenções — rejeição de Godard — do que à descontinuidade. O raccord de movimento permite unificar, do ponto de vista rítmico, planos formalmente descontínuos; assim, certos realizadores conseguiram compor ficções fundadas numa montagem absolutamente descontínua: Resnais (de HIROSHIMA, MEU AMOR a PROVIDÊNCIA), Scorcese, para não falar de Epstein, Eisenstein, etc. 34.2. O «raccord no movimento» é um problema de continuidade e não de montagem. Baseia-se na repetição meticulosa dos gestos dos actores durante a rodagem. As regras de correcção de perspectiva — ligeira batota na colocação dos objectos e personagens em função duma mudança de ângulo — e de elipse — o caso da abertura duma porta — assentam na permanência de um equilíbrio do enquadramento e sobre a uniformização do movimento, i.e., têm por única função reduzir as rupturas engendradas pela mudança de plano. A utilização de várias câmaras síncronas fez caducar estes preceitos. 35. O «filme de montagem»: Os documentários, mas também todos os filmes em que a progressão ficcional não assenta exclusivamente na acção duma personagem, gozam d uma liberdade de montagem considerável: os acontecimentos idênticos, que ligam os planos entre si e lhes imprimem um certo ritmo, são de natureza formal, e o carácter arbitrário, para não dizer neutro, de um plano isolado revela-se logo que este deixa de ser sustentado pela lógica da ficção. Ora, constata-se uma ficcionalização natural das imagens agrupadas — previsível desde Kulechov mas tacitamente negada visto que se continua a distinguir


cuidadosamente ficção e documentário. Qualquer operador tem consciência de que a escolha do lugar da câmara frente ao objecto filmado constitui já uma encenação. O plano seguinte será necessariamente decifrado em função dos elementos colocados no anterior. Todas as relações de montagem foram já experimentadas pelo «documentário» antes de serem recicladas, em função da sua eficácia, no cinema-padrão. Conquanto o documentário nem sempre assuma a encenação e a ficcionalização, não será inútil lembrar que a mestria de M. de Oliveira ou de A. Resnais é decerto o fruto das experiências e inovações praticadas nas suas curtas-metragens documentais. A estética de Buñuel está inteiramente cristalizada em LAS HURDES. C. Marker tem vindo a explorar sistematicamente, analisando-as e desmontando-as, as possibilidades ficcionais abertas pelo acto de montar — chegou até a construir todo um filme a partir de verdadeiros planos fixos (fotografias, cuja «animação» resulta totalmente de um efeito rítmico de montagem): LA JETÉE. 36. O surrealismo aplicado: O surrealismo continua hoje a impor-se como referência no tocante à concepção das possibilidades expressivas e produtoras de sentido da montagem. Partindo de uma reflexão sobre a natureza e a formação da imagem, pintores e poetas do movimento surrealista elaboraram técnicas especiais — colagem, «cadáver esquisito», «um no outro», etc. — que exploram um princípio de justaposição passível de ser desenvolvido na montagem cinematográfica. Com efeito, o cinema, a seus olhos, surgiu como o meio privilegiado de descobrir e revelar novas relações semânticas que escapam à lógica convencional da ficção literária. O cinema está longe de ter correspondido às suas expectativas — cf. A. Breton «Comme dans un bois» in «La clef des champs» (10) —; por outro lado, os surrealistas não raro aderiram à narração estritamente ficcional dos filmes — recordemos a admiração incondicional que manifestaram pelo PETER 1BBETSON de H. Hathaway —, provaram ser medíocres críticos — escolhendo uma subjectividade, permeável aos fenómenos de moda, como critério de análise (cf. os artigos de A. Kyrou; cf. também o nosso artigo «Um cinema surrealista?» in «Programa do Audiovisual de Lisboa 86») — e, à excepção de Buñuel, não se dedicaram à realização de filmes. O próprio Buñuel inovou mais ao nível da encenação e da perversão das convenções ficcionais do que explorou as potencialidades da montagem tais como os surrealistas as entreviram. Posto isto, não será contudo um acaso o facto de Godard, Rivette e outros cineastas se referirem às propostas surrealistas; a liberdade plástica e verbal que estas abriram representa ainda um modo de interpretação do mundo não só ao alcance dos meios do cinema como persistentemente longe da ficção convencional que os filmes continuam a apresentar — a passadar. S.


(1) Gilles Deleuze: L'image-mouvement, Ed. Minuit, 1983. L'image-temps, Ed. Minuit, 1985. (2) Orson Welles: entrevista com A. Bazin e C. Britsch, Cahiers du Cinéma, n.' 84, Junho de 1958, p. 8. (3) Jean Mitry: Esthétique et Psychologie du Cinéma, Ed. Universitaires, tomo 1, 1963, tomo 2, 1965. (4) Retomamos, por razões de comodidade, os conceitos definidos por Eisenstein em 1929: «Métodos de Montagem». Apesar de Eisenstein não os retomar, em especial em «A montagem vertical» e «0 fundo, a forma e a prática», pensamos que são utilizáveis para uma pragmática do conjunto das teorias de Eisenstein. Cf também: Jacques Aumont: Montagem Eisenstein, Ed. Albatros, 1979. (5) Pierre Lusson: Notas preliminares sobre o ritmo, Cahiers de Poétique Comparée, vol. I, n. 2 1. (6) Jean Mitry: opus cit. Admitido por Christian Metz: La signification au Cinéma, tomo II, Ed. Klincksieck, 1972, pp. 20-21. (7) Xavier de France: Eléments de Scénographie du Cinéma, Formation de-Recherches Cinématographiques, 5, Université Paris X Nanterre, 1982. (8) Claudine de France: Cinéma et Anthropologie, Ed. Maison des Sciences de l'Homme, 1982. (9) Gilles Deleuze: opus cit. (10) André Breton: «Comme dans un bois» in «La clef des champs», Pauvert, 1967; Cf. Alain e Odette Virmaux: Les surréalistes et le Cinéma, Seghers, 1976, reeditado por Ramsay, 1988.


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