PASSAR A LIMPO Começo por pedir desculpa por dois motivos diferentes. O primeiro tem a ver com o facto de saber que o exercício que vou tentar fazer está, segundo aqueles que definiram o princípio de Peter, no limite da minha competência. Passo a explicar: durante anos, até tentei montar um departamento de Traductologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, projecto que não foi avante porque requeria uma conquista do poder a que sempre me recusei. O meu campo de pesquisa consistia então em comparar várias traduções de um mesmo texto, nomeadamente da autoria de Pessoa. Publiquei estudos sobre tradutores e traduções, não apenas os que se dedicaram a Pessoa mas também a Kafka, aos Irmãos Grimm, ao Lewis Carroll. O que significa que eu me debruçava então sobre traduções escritas numa língua em que sou mais ou menos competente, o francês. A língua de origem, por assim dizer, não interessava. Ora aqui, acabei por fazer uma operação muito semelhante – e isto por a Regina achar que eu era capaz de o fazer –, só que trabalhei numa língua que não domino, o português. Vou dar um exemplo elucidativo dos problemas e limites com que me confrontei, a este nível. Depois explicitarei melhor o método adoptado. Na verdade, comecei por fazer um levantamento das diferenças nas correcções introduzidas por Mário Dionísio, tendo esse levantamento sido a base do trabalho. De seguida fui verificar se, a partir do momento em que houve uma edição de bolso, não apareceram mais alterações. Depois fui agrupando o tipo de alterações feitas pelo Mário Dionísio consoante uma ordem que especifiquei: passar da primeira impressão de O DIA CINZENTO para as correcções manuais – e atenção há duas cores, não sei qual foi a primeira, Finalmente passei então para a segunda edição de O DIA CINZENTO que é a edição definitiva em termos de texto. Ora, este agrupamento e esta análise implicam obviamente uma parte interpretativa – ou seja, projectiva – de quem analisa. E, por exemplo, o último conto sobre o qual me debrucei chama-se «Uma principiante». Na minha cabeça, traduzi imediatamente para francês «une débutante». Acontece que o termo «débutante» não possui as mesmas conotações que a palavra «principiante» poderá ter em português. Comecei a atribuir às correcções introduzidas pelo Mário Dionísio um significado que não era correcto. E a Regina, que é muito mais competente em português do que eu, disse-me logo que as minhas extrapolações não faziam sentido. «Principiante» não quer dizer «que se vai lançar numa carreira e por aí fora». A principiante pode ser um bocado néscia mas não encerra as conotações que em Francês «débutante» convoca. Ponto dois. Acho que fiz um levantamento não exaustivo mas sério, mas adiei a parte mais fastidiosa do trabalho. Fui tomando notas, de forma negligente, ao correr das páginas e das várias leituras. Não anotei as referências das páginas. Quando me dei conta do que faltava, disse para comigo: «Não faz mal, eu faço uma última leitura uma semana antes de vir e redijo essas anotações com mais rigor.» Acontece que esta última semana tem sido um caos total. A Regina está bem, mas foi operada hoje. Passei os dois últimos dias no hospital quando pensava estar a trabalhar para este estudo. Vá lá, tenho as minhas notas, pensei. Só que acabei mesmo por não fazer trabalho porque, há dois ou três dias atrás, estava a Regina a partir para o hospital, cruzei-me com o Toni que tinha vindo à nossa rua buscar uma mala do Pedro Soares e aproveitei essa ocasião para lhe pedir que me levasse para Lisboa o meu pesadíssimo malote, repleto de livros. Infelizmente eu tinha arrumado essa mala com mil cuidados e muito responsavelmente tinha posto todos os documentos referentes a este estudo dentro dela!!! O que fez com que mesmo que eu quisesse conscienciosamente acabar o trabalho de preparação que antevira não teria podido. São actos falhados. Portanto, vou começar por expor o método e depois avançar já (de outro modo será muito aborrecido) para uma condensação das conclusões a que cheguei e para uma interpretação em termos estéticos e também políticos destas correcções. Relembro que este estudo se insere no âmbito de um ciclo intitulado BASTIDORES centrado numa parte do trabalho que, enquanto trabalho, não é visível. Só é visível o resultado. E o resultado é: há duas edições, mas o texto não é exactamente igual. O