Passar a limpo

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PASSAR A LIMPO Começo por pedir desculpa por dois motivos diferentes. O primeiro tem a ver com o facto de saber que o exercício que vou tentar fazer está, segundo aqueles que definiram o princípio de Peter, no limite da minha competência. Passo a explicar: durante anos, até tentei montar um departamento de Traductologia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, projecto que não foi avante porque requeria uma conquista do poder a que sempre me recusei. O meu campo de pesquisa consistia então em comparar várias traduções de um mesmo texto, nomeadamente da autoria de Pessoa. Publiquei estudos sobre tradutores e traduções, não apenas os que se dedicaram a Pessoa mas também a Kafka, aos Irmãos Grimm, ao Lewis Carroll. O que significa que eu me debruçava então sobre traduções escritas numa língua em que sou mais ou menos competente, o francês. A língua de origem, por assim dizer, não interessava. Ora aqui, acabei por fazer uma operação muito semelhante – e isto por a Regina achar que eu era capaz de o fazer –, só que trabalhei numa língua que não domino, o português. Vou dar um exemplo elucidativo dos problemas e limites com que me confrontei, a este nível. Depois explicitarei melhor o método adoptado. Na verdade, comecei por fazer um levantamento das diferenças nas correcções introduzidas por Mário Dionísio, tendo esse levantamento sido a base do trabalho. De seguida fui verificar se, a partir do momento em que houve uma edição de bolso, não apareceram mais alterações. Depois fui agrupando o tipo de alterações feitas pelo Mário Dionísio consoante uma ordem que especifiquei: passar da primeira impressão de O DIA CINZENTO para as correcções manuais – e atenção há duas cores, não sei qual foi a primeira, Finalmente passei então para a segunda edição de O DIA CINZENTO que é a edição definitiva em termos de texto. Ora, este agrupamento e esta análise implicam obviamente uma parte interpretativa – ou seja, projectiva – de quem analisa. E, por exemplo, o último conto sobre o qual me debrucei chama-se «Uma principiante». Na minha cabeça, traduzi imediatamente para francês «une débutante». Acontece que o termo «débutante» não possui as mesmas conotações que a palavra «principiante» poderá ter em português. Comecei a atribuir às correcções introduzidas pelo Mário Dionísio um significado que não era correcto. E a Regina, que é muito mais competente em português do que eu, disse-me logo que as minhas extrapolações não faziam sentido. «Principiante» não quer dizer «que se vai lançar numa carreira e por aí fora». A principiante pode ser um bocado néscia mas não encerra as conotações que em Francês «débutante» convoca. Ponto dois. Acho que fiz um levantamento não exaustivo mas sério, mas adiei a parte mais fastidiosa do trabalho. Fui tomando notas, de forma negligente, ao correr das páginas e das várias leituras. Não anotei as referências das páginas. Quando me dei conta do que faltava, disse para comigo: «Não faz mal, eu faço uma última leitura uma semana antes de vir e redijo essas anotações com mais rigor.» Acontece que esta última semana tem sido um caos total. A Regina está bem, mas foi operada hoje. Passei os dois últimos dias no hospital quando pensava estar a trabalhar para este estudo. Vá lá, tenho as minhas notas, pensei. Só que acabei mesmo por não fazer trabalho porque, há dois ou três dias atrás, estava a Regina a partir para o hospital, cruzei-me com o Toni que tinha vindo à nossa rua buscar uma mala do Pedro Soares e aproveitei essa ocasião para lhe pedir que me levasse para Lisboa o meu pesadíssimo malote, repleto de livros. Infelizmente eu tinha arrumado essa mala com mil cuidados e muito responsavelmente tinha posto todos os documentos referentes a este estudo dentro dela!!! O que fez com que mesmo que eu quisesse conscienciosamente acabar o trabalho de preparação que antevira não teria podido. São actos falhados. Portanto, vou começar por expor o método e depois avançar já (de outro modo será muito aborrecido) para uma condensação das conclusões a que cheguei e para uma interpretação em termos estéticos e também políticos destas correcções. Relembro que este estudo se insere no âmbito de um ciclo intitulado BASTIDORES centrado numa parte do trabalho que, enquanto trabalho, não é visível. Só é visível o resultado. E o resultado é: há duas edições, mas o texto não é exactamente igual. O


trabalho de «bastidores» é esse trabalho «feito à mão» entre as duas edições sobre o qual me debrucei. Quanto ao método: compara-se o texto impresso e o texto com as anotações e alterações, ou seja o texto tal como deverá ser. Verifica-se na segunda edição se as correcções foram efectivamente introduzidas ou não. Há vários casos em que não. Encontro um exemplo logo nesse primeiro conto: passagem de «estivera» a «pusera-se», o que configura a expressão de uma espécie de vontade própria da personagem – chama-se a isso, tecnicamente, uma modalização. Porém essa modificação não passou de uma veleidade, posto que não foi introduzida na segunda edição. Há algumas ocorrências assim. Não vou poder desenvolver uma análise com esse grau de pormenor no âmbito de uma abordagem deste género. O método é pois, à partida e por opção, estritamente comparativo. A primeira fase consiste num levantamento de carácter quantitativo: todas as correcções. Depois há agrupamentos. Certas correcções são assimiláveis – podereis discutir os agrupamentos que eu fiz. Há agrupamentos que permitem discernir e discutir linhas de orientação subjacentes às correcções em questão. E por fim há a interpretação dessas ocorrências. O Mário Dionísio chega a falar do assunto alegando que se trata de perfeccionismo. Eu diria que essa justificação através do perfeccionismo é uma maneira de evitar o assunto. Porque perfeccionismo não é nenhum critério, ou antes decorre de um padrão puramente pessoal do autor. Achar que tal formulação vai ser melhor do que tal outra nada tem a ver com perfeccionismo, pois que se trata de alterações que vão modificar o que está expresso num sentido ou noutro. Em nenhuma das edições houve frases coxas ou mal construídas, etc. Não é uma questão de o texto estar mal escrito. O critério de perfeccionismo não é nenhuma resposta. Qual o sentido das correcções introduzidas? A primeira operação que salta aos olhos decorre de um princípio de concisão. Concisão que compreende duas intervenções ao nível sintáxico: eliminação de várias proposições adjectivais, isto é, relativas (orações que fornecem especificações acerca de um nome antecedente, orações subordinadas relativas que têm a valência de adjectivos, tal como por vezes acontece com os particípios passados). A opção de Mário Dionísio vai pois no sentido de limpar esse tipo de proposições. De uma edição para a outra, verificamos a eliminação de algumas proposições adjectivais. Segunda intervenção notória: eliminação de redundâncias. Ou seja: de coisas que o autor julga já terem sido ditas e que, na primeira edição, achava necessário relembrar, enquanto na segunda edição, por atribuir ao leitor um papel muito mais importante em termos de memorização e em termos de entendimento, pura e simplesmente elimina. Porém onde o trabalho de concisão é mais visível é ao nível do léxico. E neste domínio, há três grandes linhas que se desenham: de um modo geral, verifica-se a eliminação das palavras de mais de quatro sílabas (mais concretamente trata-se de eliminar advérbios acabados em «mente»). Por exemplo, logo na primeira página, elimina o adjectivo «rapidamente»; elimina «sem arranhamento»; suprime a locução «expectativa ansiosa», duas palavras compridas de uma só vez; suprime o advérbio «suficientemente» ou «os olhos preocupadamente»… Não vou infligir-vos o levantamento completo, terão pois de acreditar em mim. Em todo o caso, esta ordem de exemplos é suficientemente numerosa para justificar um vector de correcção. Por outro lado, Mário Dionísio vai preferir à palavra «orifício» (1ª edição, «Nevoeiro na cidade») o termo «buraco». Qual a diferença entre orifício e buraco? As diferenças são de duas ordens: de tamanho, ou seja, quatro sílabas e não apenas três; e o registo, ou seja, o termo orifício é mais sábio do que buraco, buraco é uma palavra mais popular, mais simples se quisermos, do que o vocábulo orifício. Este tipo de alterações vai continuar de modo sistemático. Na segunda edição observamos, inclusive, a introdução de formulações típicas da oralidade, por outras palavras, de um registo familiar, enquanto na primeira versão dominava um registo «soutenu» (típico de uma escrita de um certo nível formal). Voltarei a estes elementos porque a dada altura se juntam a outros que nos permitem interpretá-los. Convém sublinhar que determinadas características da escrita de Mário Dionísio se mantêm de uma edição para a outra. Mas se atentarmos tão-só nas primeiras dez linhas de «Nevoeiro na Cidade», passamos de «e verificou que estava fechado» (é ele o sujeito, é uma explicação, o


ponto de vista é de fora sobre uma personagem) para «o fecho estalou». Não sabemos qual o ponto de vista, temos apenas o facto. O que aqui foi suprimido corresponde um pouco à convenção psicológica do narrador omnisciente. Mais adiante encontramos «Que era aquilo?» que é uma pergunta que a personagem dirige a si própria e o leitor tem de aceitar entrar dentro da cabeça dela. Em vez de «era muito estranho» unicamente «muito estranho». As correcções vão sempre no mesmo sentido. Em vez de «Ter-se-á esquecido de fechá-la?» que emana de um ponto de vista de fora, estamos a observar a personagem, aparece «deixara-a aberta com certeza» ou seja algo que ele diz para si próprio. Em vez de «com toda a facilidade» que é uma formulação em linguagem corrente mas com palavras compridas, opta por «em menos de nada» que já pertence ao registo familiar. Etc. Há um sem número de pequenos pormenores que é preciso colectar, agrupar, classificar, antes de poder tirar conclusões. Vou de novo dar um exemplo que me parece significativo e elucidativo: – Primeira versão: «Escutava, apreensivo, o mais pequeno ruído.» – Segunda versão: «De ouvido atento ao mais ligeiro ruído.» Atentemos no exemplo. O que é que se suprimiu? Palavras mais compridas substituindo-as por palavras mais curtas. Palavras mais raras ou eruditas por palavras mais correntes ou informais. Frases mais laboriosas por frases simples. Mas também se suprimiu o verbo e com ele o sujeito «ele» subentendido em «escutava». É aquilo a que eu chamei redundância, não precisamos do verbo para saber de quem se trata. Esta estratégia permite ao autor a economia de uma descrição pormenorizada de todos os estados psicológicos do protagonista. Em todos os contos do DIA CINZENTO, há sempre uma personagem principal e o texto dános conta da evolução psicológica dessa personagem principal. Claro que a descrição pode incidir sobre uma personagem secundária. Por exemplo: em «Assobiando à vontade», a personagem secundária da mulher, à beira da qual a personagem principal se senta, é a figura através da qual acompanhamos a evolução do protagonista. A personagem que assobia nunca será vista de dentro, mas sempre de fora. Ora entre a 1ª edição e a 2ª edição, aquilo que verdadeiramente muda – e antecipo as conclusões para depois passar a explicar – é o papel atribuído ao leitor. O leitor é levado a acompanhar determinadas evoluções sem que o autor lhe facilite o trabalho dando-lhe conta do percurso mental da personagem mas antes limitando-se a fornecer-lhe indícios, obrigando-o a meter-se na cabeça da personagem e a tomar partido nas sucessivas situações. Na 1ª edição, o Mário Dionísio opta por uma escrita formal, pouco coloquial, e por um narrador omnisciente que nos pode dar conta tanto de um ponto de vista externo à personagem (vista de fora), como de um ponto de vista interno (as angústias ou os pensamentos internos à cabeça da personagem). Duma edição para a outra, Mário Dionísio passa de uma escrita académica e assaz convencional para uma escrita bastante audaciosa e singular, no âmbito da qual o autor nos coloca perante uma nova figura literária a que chamamos o discurso indirecto livre. Vou tentar explicitar de que se trata concretamente. Houve uma grande polémica no final dos anos cinquenta, início dos anos sessenta do século XX, cuja faceta mais interessante poderão encontrar num texto de Pier Paolo Pasolini – que foi um grande cineasta, um grande poeta, um interessante ensaísta e um extraordinário polemista –, publicado em português num livro intitulado «Empirismo Herege», que contém uma recolha de artigos da sua autoria, nomeadamente escritos sobre o discurso indirecto livre. O que podemos observar na passagem da primeira edição para a segunda edição de «Um dia cinzento» é principalmente a introdução do discurso indirecto livre, mas de um discurso indirecto livre muito diferente daquele que esteve no centro das já citadas polémicas. Tenho muita pena que nessa época o trabalho do Mário Dionísio não fosse mais conhecido. A descrição académica do discurso indirecto livre é, em termos simples a seguinte: em vez de se escrever uma formulação do tipo «O fulano pensava que estava cheio de sorte» adopta-se directamente uma construção do tipo «O fulano pensava estou cheio de sorte». Ou seja, em lugar do «que», conjunção subordinada integrante, suprime-se esse conector que introduz


distância e entra-se directamente na expressão do pensamento do sujeito à cabeça da oração principal. Eis, em síntese, a base do discurso indirecto livre. Mas podemos suprimir ainda a formulação «O fulano pensava…» e aí estamos imediatamente dentro da cabeça dele. Na escrita basta haver uma «colocação», ou seja um efeito de proximidade, de vizinhança, para obter uma modalização. Vou tentar clarificar com um exemplo: em «Assobiando à vontade», há uma personagem, de origem social manifestamente mais baixa do que os ocupantes de um eléctrico, que, em vez de ficar na plataforma externa, entra e vai-se sentar num lugar que estava ainda vago. Todos os viajantes sentem que há uma transgressão, uma intrusão, em especial uma mulher à beira da qual ele se foi sentar. 1ª Formulação A mulher pensa para consigo que o homem à sua beira está mesmo sujo. 2ª Formulação A mulher pensa para consigo o homem à minha beira está mesmo sujo. 3ª Formulação Foi-se sentar à beira da mulher. Está mesmo sujo E nós sabemos que é a mulher que pensa isso – pela proximidade com que estas duas frases são proferidas. E eis-nos dentro da sua cabeça. Voltando atrás: qual a polémica que se gerou nos anos sessenta sobre esta questão do discurso indirecto livre? Em termos históricos, quero apenas relembrar que o discurso indirecto livre é uma figura que foi empregue por muitos autores, como por exemplo Charles Dickens. Em França quem mais a ela recorreu foi Gustave Flaubert. Flaubert faz questão de expressar que há sempre um ponto de vista específico sobre as coisas. O «Madame Bovary» está repleto de discurso indirecto livre… Um dos efeitos possíveis do uso do discurso indirecto livre é uma dissonância e uma distância irónica. Mas não aprofundarei esta dimensão dado que nunca é neste sentido que Mário Dionísio recorre a esta ferramenta: o autor aqui mostra-se aparentemente sempre solidário das suas personagens. A tal grande polémica nos anos sessenta opunha Pasolini ao romancista Alberto Moravia. Moravia defendia a ideia de que o discurso indirecto livre servia para o leitor estar dentro da psicologia das personagens, posição contra a qual Pasolini reagiu violentamente. Impiedoso, critica: Não. Não é verdade porque o registo de língua mantém-se igual. E vai mais longe: Ao atribuir pensamentos ao operário numa sintaxe burguesa, das duas uma: ou o romancista está instalado num mundo exclusivamente burguês e não vale a pena tentar entrar na psicologia do operário (e esse mundo burguês seria o «mundo Moravia» próprio do autor); ou, pior, o romancista está a negar a especificidade operária à dita personagem. Pier Paolo Pasolini foi absolutamente radical. Ora, aqui, é exactamente o contrário que o Mário Dionísio pratica. Ou seja: através do recurso ao discurso indirecto livre, ele obriga-nos a tomar posição em relação a pensamentos inaceitáveis. Em vez de nos dizer que é a mulher gorda que acha o sujeito sujo, somos confrontados com a introdução desse juízo e de outros, não irei até apelidá-los de «racistas» mas em todo o caso desfavoráveis, eivados de rejeição. Ora, a evocação dos pensamentos injuriosos (da mulher) como que paira no interior daquele eléctrico para dentro do qual a nossa mente foi catapultada e somos obrigados a tomar posição, a reagir. Trata-se pois do contrário daquilo que o Pasolini censurava ao Moravia. A primeira edição de «O Dia Cinzento» está ainda muito colada ao final da Segunda Guerra (1944), inclusive o primeiro conto intitulado «Nevoeiro na Cidade» no qual a personagem tende a entrar em paranóia por estar ligado a actividades clandestinas, em lugar de se desenrolar no contexto português toda a situação é transposta para a França durante a ocupação. Essa transposição é-nos dada pelos nomes e o Mário Dionísio explicou-se sobre esse assunto. Portanto, em vez de nos depararmos com o quotidiano lisboeta, mergulhamos ficcionalmente no cenário da Resistência em França.


Entre a primeira e a segunda edição, a grande modificação que imediatamente salta aos olhos tem a ver com os nomes e a ancoragem no contexto português. Estamos em Portugal e estamos a falar de clandestinidade em Portugal e de resistência em Portugal contra um regime que não é o regime nazi e que exerce a opressão de outro modo. Não é tanto da polícia que se tem medo. É dos vizinhos. É das paredes. O que aconteceu entre a primeira e a segunda edição da colectânea é na verdade uma reflexão de Mário Dionísio sobre o seu trabalho de escritor, sobre o que significava didactismo. Manipular o leitor fazendo-o pensar assim porque as coisas assim se apresentam ou tentar empurrá-lo e levá-lo a tomar posição. Talvez a influência mais gritante aqui (embora provavelmente ela não tenha existido de facto) seria o Brecht, que exige uma distanciação em relação àquilo que é narrado – conhecermos as motivações de cada um mas também sermos levados a interrogarmo-nos sobre o que é que nós, leitores ou espectadores, pensaríamos ou faríamos em iguais circunstâncias. Parece-me que Mário Dionísio aplica directamente esse princípio no decorrer da escrita, da narração, de um pequeno acontecimento. Eu não apresentei «O dia cinzento». Parti do princípio que toda a gente aqui presente leu o livro. É um livro muito especial. É um livro composto de contos que dão conta de nãoacontecimentos. Não se passa, por assim dizer, nada. No primeiro texto, há uma personagem que tem medo e o conto descreve a tomada de consciência, por parte da personagem, do seu próprio medo; graças à ultrapassagem desse medo, por fim dominado, a personagem vai ao encontro que lhe foi marcado. Não ocorre rigorosamente mais nada. Não se trata portanto de uma colectânea de contos recheados de acções, de peripécias, de acontecimentos. São simplesmente textos nos quais se desdobra uma tomada de consciência. Da primeira edição para a segunda edição as correcções consistem em passar de uma descrição externa que faz de cada situação uma espécie de parábola exemplar para algo que se nos oferece como discutível… Recorrendo a meios estritamente sintáxicos e literários, pede-se ao leitor para ele reagir face à situação que lhe é apresentada. Vou tentar pormenorizar e ilustrar isto que acabei de aventar com alguns exemplos. Em «Assobiando à vontade», a dada altura Mário Dionísio acrescenta uma pequena frase. O homem senta-se à beira da mulher e surge a recriminação (frase que não estava na primeira edição) «Ao que uma pessoa está sujeita!». Ora, quem fala aqui? E fala para quem? Fala para nós leitores? Concordam que uma pessoa está sujeita a «isto» e tem que se sujeitar, ou não, a «isso»? Outra frase acrescentada, ausente na primeira edição «Que homenzinho patusco!» É formulado e emitido um juízo de valor, um juízo crítico que incide sobre a personagem do «intruso», relativamente ao qual devemos decidir se o aprovamos ou não. Outras matérias interessantes: no final deste mesmo conto («Assobiando à vontade»), suprime-se a frase que descreve o afastamento do homem a assobiar – não interessa, o que interessa é o que se passa dentro da carruagem; por outro lado acrescenta-se uma menção explicativa, «uma bondosa ingenuidade» (isto vai um pouco contra o que eu afirmei, visto haver aqui uma palavra de quatro sílabas que ele introduz…), retira-se algo que seria uma redundância porque já o sabíamos «os viajantes foram desfazendo o sorriso» e acrescenta-se, no lugar do «desfazer do sorriso», «lembraram-se dos seus embrulhos, dos seus anéis, dos seus jornais», evocando-se assim sinteticamente a ocupação limitada de pessoas que estão a viajar e nada mais podem fazer a não ser olhar para os objectos que consigo transportam. Num outro conto intitulado «A lata de conserva», narra-se a história de uma mulher; no fim vamos entender que ela está grávida. A personagem observa um incidente pela janela mas não o entende de imediato. Começa por avistar uns rapazes, depois vê um comerciante sair a correr da sua loja e percebe o que se passou quando vê a polícia trazer de volta um dos rapazes que tinha roubado fruta ao comerciante. Detectam-se supressões – nomeadamente em «Ela deitava os olhos preocupadamente», «preocupadamente» é obliterado, mas há também um acréscimo no final, a saber, «Que iria acontecer-lhe por causa de um garoto qualquer?» O «lhe» é importante por causa desse outro garoto que ela tem na barriga… O médico recomendara que não se expusesse a emoções fortes dado o seu estado. A mulher assistiu à


cena, comoveu-se com a cena que envolvia o rapaz detido e de súbito pensou no ser que trazia na barriga, interrogou-se sobre o que lhe iria acontecer. A mulher obriga pois o leitor a acompanhar essa mudança de direcção dos seus pensamentos sobre uma personagem para outra personagem acalentada no seu íntimo. E agora proponho-vos a leitura de três versões da frase final de «Uma principiante». A penúltima frase não muda «Odete espera para fazer o troco». É uma história em que uma empregada se engana a fazer o troco, o patrão está em cima dela e ela está toda nervosa. Há uma outra cliente que está à espera para receber o troco. Primeira edição: «Porque lhe teria o Sr. Domingos (que é o patrão) segurado na mão tão delicadamente?» Portanto passamos a saber que houve um gesto efectivo do Sr. Domingos que lhe segurou na mão com um daqueles advérbios em «mente» muito comprido. Primeira correcção à mão «Felizmente o Sr. Domingos não ficou zangado. Tem os olhos azuis. Porque lhe teria segurado na mão tão carinhosamente?». Nesta correcção à mão, passa-se de «delicadamente» para «carinhosamente» e introduz-se a ideia de que ela, Odete, reparou nos olhos azuis. Versão final da segunda edição: «Felizmente que o Sr. Domingos não se zangou. Tem os olhos azuis. O Sr. Domingos tem os olhos azuis…». Desapareceram os advérbios de modo «delicadamente», «carinhosamente». Até desapareceu a redundância porque já sabíamos que ele tinha segurado a mão, até longamente. E passamos a estar só dentro da cabeça dela. Já não interessa a atitude muito óbvia e ordinária do patrão, que não carece de explicação nenhuma, mas passamos a ver por dentro dela, empregada. Afinal, o patrão tem alguma coisa que pode motivar alguma emoção genuína por parte dela: «tem os olhos azuis». E já não é uma denúncia, é a descrição de um processo muito mais complexo. E aqui situa-se o meu limite. Das guerras da Irlanda ou do País Basco dizia-se que eram de «fraca intensidade». São aquelas que, não sendo propriamente chamadas guerras, podem durar eternamente. Uma vez, com as minhas estudantes, a propósito do que elas iriam fazer após a licenciatura e das cedências que estavam dispostas a fazer para conseguir um lugar, um emprego, etc., eu tinha proposto a designação «prostituição de fraca intensidade». Na minha interpretação do conto chamado «Uma principiante», ela já encontrou um motivo para ceder ao patrão. Se fosse traduzido para francês, eu não teria dúvida, mas não quero projectar de mais sobre o conto, no entanto o processo induzido pelo Mário Dionísio é esse: ela encontrou uma motivação para ceder ao desejo do patrão. Esta concreta utilização do indirecto livre é uma utilização rara. Merece um destaque. Não é nem a utilização académica e habitual, nem pode cair nas malhas da crítica formulada pelo Pasolini. E é muito importante verificar que surge entre as duas edições. Não existia na primeira edição. O que é que acontece entre a primeira e a segunda edição? Mário Dionísio – um escritor comprometido que não escreve apenas pelo prazer da descrição – transita de uma escrita essencialmente descritiva (a que não são estranhos os tropismos de Sarraute e outros recursos do Nouveau Roman, ao nível das ferramentas) de denúncia social de algumas situações e políticas observáveis em Portugal, no âmbito da qual o autor tem um papel preponderante, para uma passagem de testemunho, confiado à figura do leitor: quem deve ter o papel mais relevante, o do último pensamento já que não pode ser da última palavra, é o leitor. Toda a reescrita consiste em cortar explicações, cortar redundâncias e obrigar, através da introdução dos elementos do indirecto livre, o leitor a solidarizar-se ou dessolidarizar-se de algumas personagens já que se encontra directamente confrontado com a expressão não mediatizada dos respectivos pensamentos. O discurso descritivo impessoal, de súbito, encontra o discurso subjectivo com as alterações de registo a ele inerentes. Para as minhas conclusões, convergem pois várias vertentes: a introdução do discurso indirecto livre; a supressão de elementos explicativos, por vezes de parágrafos inteiros; a mudança de registo linguístico com a introdução de expressões e formulações mais familiares; e, por fim mas não menos importante, a variação dos pontos de vista – na primeira edição estamos perante o narrador omnisciente, na segunda edição surgem vários observadores ou vários participantes, sendo o narrador apenas um deles. Pelo registo e pelo tipo de


formulação, é fácil distinguir se se trata do narrador impessoal ou de uma personagem. No meu entender, há uma espécie de total paralelismo entre a saída de Mário Dionísio do Partido Comunista Português, mantendo no entanto as suas convicções, e o abandono de uma certa escrita. Parece-me que chega a uma escrita em que o leitor é interpelado sem paternalismos. Passa-se de uma escrita directiva, como se fala em pedagogias directivas, para uma escrita interpelativa em que as conclusões deixam de ser formuladas pelo autor mas devem ser tiradas pelo leitor. Essa criação singular de um papel do leitor na prática da escrita reveste, a meu ver, a maior importância. As outras diferenças não deixam de ser interessantes mas não abrem tantos horizontes como esta. Donde a minha focagem.


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