PAULO ROCHA E N T R EV I S T A — De certa maneira você é também um bocadinho O DESEJADO da cinematografia portuguesa, não é? Fez dois filmes importantes nos anos 60. Marcou o aparecimento do Cinema Novo e depois houve uma espécie de hibernação até à ILHA DOS AMORES... — Foi uma longuíssima gestação. Foi um parto não direi doloroso mas longuíssimo... contra a natureza. Pronto, estive esses anos todos e com a ILHA DE MORAES, um tempo que acabou por ser quinze ou dezasseis anos. E de trabalho muito intenso. Agora, digamos... «ilhas» só se faz uma vez na vida e estou a tentar viver mais do quotidiano, enfim, a não investir tanto em projectos impossíveis porque eu tenho alguma tendência a só me excitar muito e só ter vontade de fazer quando as coisas são... quando toda a gente diz: «é impossível de fazer» — por razões de produção, por razões de dinheiro e por razões estilísticas. Mesmo neste caso último, andei a fazer o filme sobre Amadeo de Souza Cardoso, MÁSCARA DE FERRO CONTRA ABISMO AZUL, e eu só me consegui divertir porque, de repente, as condições eram terríveis. Fui obrigado a começar a fazer o filme sem ter preparação nenhuma, quinze dias depois havia a exposição e era preciso inventar toda uma estrutura formal e ficcional, ou não, para o que se ia fazer. E, de qualquer modo, eu deixei sempre para a última hora as decisões mais terríveis das sequências para tornar isso perigoso e difícil... — Mas isso é precisamente o contrário de uma longa gestação e de um longo trabalho de elaboração... — Não... como hei-de dizer... eu gosto de ir para as filmagens com um material muito rico e contraditório. Ter muitas hipóteses, ter estudado e ser fascinado por muitos caminhos diferentes. E, ao mesmo tempo, eu sou muito atraído por aquilo que me parece muito interessante mas quase impossível. Portanto há sempre uma hipótese que eu considero privilegiada dentro das várias possíveis para fazer uma cena, para fazer um filme, e é aquela que, por uma dificuldade intrínseca, às vezes se torna complicada — não há autorização... Quando são coisas íntimas, minhas, se calhar tenho resistências... é aquilo que me é mais penoso, que é mais difícil ou que acho mais perigoso estilisticamente... que provavelmente vai dar asneira... é por isso que me sinto mais fascinado. Portanto eu filmo sempre num estado de tensão tremenda e quase com dores no corpo todo de tal modo sinto a sensação de perigo. Mas também quando a filmagem corre mais facilmente e não ficam quase marcas na carne disso, esqueço logo e não acho graça nenhuma. E, de um modo geral, todas aquelas sequências que são demasiado lisas, que não têm acidentes nem feridas que se sintam na textura do feito, do resultado feito, tenho-lhes muito menos amor e acho-as enfadonhas. A mim faz-me muita aflição aqueles cineastas que têm uma ideia prévia muito elaborada e que depois se limitam a executá-la... eu tenho várias ideias prévias, razoavelmente elaboradas, uma privilegiada que me mete muito mais medo porque acho quase impossível de fazer — em geral é essa que eu faço à custa dum esforço meu e da equipa... ficamos esfarrapados. E há uma forte dose, se calhar, de masoquismo, nisto... — Podíamos ir por aí, mas o que eu gostava de perguntar era se na fase da rodagem existe um certo improviso... os seus filmes são muito elaborados e perfeitos, digamos assim... Dá a impressão que há uma grande elaboração. E mesmo na história que eles têm consigo, são o produto duma grande reflexão, quer A ILHA DOS AMORES quer O DESEJADO. Mas por aquilo que você está a dizer, mesmo nestes filmes, dá a impressão de eles não estarem feitos até serem mesmo feitos. É isso? — Pois é; para já eu conto... eu não tenho a mania da psicanálise, mas eu conto com o inconsciente dos actores para as zonas mais secretas de uma sequência. Eu devo dizer que se faço uma sequência é porque não a sei. Se eu já soubesse, não achava graça nenhuma a fazê-la. E portanto há uma dose de resistência, de mistério... é um assunto que, por mais que eu reflicta sobre ele, não consigo ter uma ideia precisa... mas fascina-me, atrai-me. E eu quando convido um actor é porque acho que ele tem capacidade de cumplicidade e de criação suficiente para, na hora do perigo, baixar às raízes de si próprio e sair com alguma coisa. Portanto eu deixo, digamos 30%, que é o mais íntimo do plano, o lado mais escabroso, mais profundo do plano. Deixo uma margem em branco para o actor desenhar. E em geral é o centro nevrálgico do plano. E portanto há sempre várias interpretações possíveis, é muito dialéctico — o actor pode estar a ir por uma má interpretação mas que é fecunda. E eu digo: «Não, não é nada assim!» Mas isso dá-me uma ideia ainda melhor do que eu tinha,
vamos chegar a uma verdade maior. Porque eu tenho, como é notório, uma grande fascinação pelos décors, pelos espaços... antigamente eu achava que era quase platónica, ou seja, ando à procura de arquétipo no mundo inteiro. Acho que cada espaço tem uma espécie de cena ideal, que é perfeito para dar com profundidade um determinado tipo de paixão humana, de conflito humano. Mas isso evidentemente é uma posição por vezes um bocadinho idealista. É preciso que isso seja preenchido pelo concreto dos corpos, do inconsciente das pessoas. E apercebo-me muitas vezes de que, ao fazer uma cena, a coisa ainda está muito vazia... e aí é que vêm as zangas dos actores, as paixões entre eles, as resistências... dizem que não podem fazer a cena, que não a sentem assim, que acham absurdo... e muitas vezes eu dou-lhes razão, mas quase sempre eles ajudam a aprofundar a minha ideia inicial, ainda que estejam contra ela. Porque quase sempre são pessoas inteligentes e pronto... sinceras e que estão ali a dar o corpo ao manifesto. Eu, de algum modo, no DESEJADO, por exemplo, tenho uma cena que, para mim, é um pouco emblemática, que é a cena da crise de nervos da rapariga, da Antónia lá no quarto do João. Eu considero que uma grande cena de cinema é um corpo que sofre duma maneira quase incontrolada, é devorado pelo seu inconsciente, pelos desejos mais inconfessáveis, pelas paixões da inteligência... e que é um pouco impossível decidir antes de fazer o que é a cena. Depende. E um D. Sebastião ou um S. Sebastião, o actor. Depende de como aquilo lhe morder na carne. Acho normal que os actores fiquem depois deprimidos e chocados, é como o nascimento duma verdade que não se quer revelar. Portanto teoricamente todas as cenas deviam ter esse excesso de descarga, física psicológica... que toda a gente... que a própria equipa fique exausta no fim, porque «está para ali a nascer» e que é difícil para os actores e há sempre uma parte de novidade. Se eu não ficar chocado com o resultado a cena não foi boa, percebe? — Um nascer ou um morrer, porque há aí uma espécie de vertigem. Inclusivamente você tem falado do «ver a verdade» associado à ideia de morte... — Ver a verdade é muito chocante. A gente pode descobrir que é um idiota, que é um cobarde, ou que aquela verdade não é para este mundo, para a vida quotidiana e que vai tornar a vida quotidiana ainda mais difícil do que antes. E portanto eu posso ter medo de que a cena seja eventualmente chocante. Mas sem isso acho que não vale a pena. Eu acho absurdo que um realizador ou um actor possa manter a função do chefe, de quem controla tudo, de quem é Deus o tempo todo. Começa sempre por essa ilusão. Temos uma boa história, lindos décors, diálogos engraçados, um bom técnico que vai pôr naqueles lindos vestidos e naqueles corpos bonitos uma luz bonita e a gente diz: «Somos uns senhores». Vamos fazer, com trabalho sim, mas uma coisa que vai resultar bem, vai ficar bonito. E depois, ao fazer, sentimo-nos no maior perigo, da cena nem sequer se fazer, porque de repente os actores recusam-se, ou então fogem para uma solução académica, como já se viu em qualquer filme, que é uma forma de recusar o perigo, ou então ainda de eu descobrir coisas terríveis sobre mim ou eles sobre eles e a gente a ficar... — Isso dá sobre a rodagem uma ideia de psicodrama, digamos assim. De acontecimento, de qualquer coisa que vai acontecer... — É um acontecimento. Eu não recuso nada. Uma longa memória cultural, no caso de O DESEJADO é quase de mais: cada décor tem ecos de figuras históricas. Enfim, para o público, ou mesmo para a crítica, isso não se verá, mas quando eles estão na Quinta da Penha Verde, eu vejo lá o D. João de Castro a passar por trás deles. — Mas isso é tudo aquilo que você já leva quando vai fazer o filme. — Eu não recuso nada, todos os auxílios digamos da inteligência, da teoria, da história, da análise, etc. Mas se for só isso, é muito pouco. Portanto o que acontece é: durante um ensaio que é dramático sente-se que o barco vai ao fundo e, à última hora, eu consigo, reorganizando a sequência, como em geral ainda por cima é um plano-sequência, aí, quê? vinte, trinta, cinquenta rimas internas formais do movimento do actor e da posição da câmara que têm que ter uma forma coerente. Mas durante os ensaios não, aquilo não é nada coerente, as coisas destroem-se umas às outras: eu quero o efeito tal, já não dá tal; se a expressão tal do actor é assim, as outras passam a ser falsas... E também do ponto de vista formal — nos melhores momentos do filme, aquela desordem toda acaba por parecer música, um nadinha dissonante, mas é como a música moderna. — Quer dizer você procura o excesso?
— Aceito o excesso, sim. Sim. Mas o resultado final, e isso é que é um bocado misterioso, e nisto eu por vezes sou obsessivo, é que aquilo acaba por ficar muito ordenado. Aquela sequência, no final, do Palácio de Sintra, a recepção mundana em que aquela gente está toda a chamar corno e não sei quê, nas costas, está a fazer pouco da barriga da rapariga, aquilo acaba por ser uma peça de ballet ou quase até de música. Todos os gestos estão em eco, vai a acender o cigarro a um, roubamlho e põem na boca de outro, entretanto, no terceiro par, já está outro a acender outro cigarro... — Aí há uma série de referências à História, principalmente aos reis, aos cognomes dos reis e por aí fora... — Há uma enorme carga por um lado do trivial, da intriga sentimental, sexual, política da mais vulgar, por vezes grosseira... depois há a História. E, formalmente, aquilo acaba por resultar numa metáfora; por exemplo, o tecto com as pegas do D. João I — «por bem, por bem» — aquilo é uma metáfora: o que se passa no céu pintado, está-se a passar em baixo e ele chama indirectamente «puta» à mulher de quem mais gosta. É uma metáfora daquilo que se está a passar cá em baixo no mundo dos vivos e, ao mesmo tempo, como a câmara está cá muito em baixo, e é tudo muito deformado, ela, sobretudo, e ele, como estão muito deformados, quase parecem pássaros porque a câmara está à altura dos joelhos deles, é desequilibradíssimo e portanto aquilo quase se transforma numa coisa visionária. Há, digamos, o nível da intriga corriqueira, de todos os dias, vulgar, das pessoas que só querem poder, cama, glória, dinheiro ou vingarem-se de alguém, há o nível da História, da História de Portugal, há o nível metafórico que é a forma normal de tirar partido de qualquer objecto artístico conseguido, aquilo começa a ter significado a vários níveis, etc., e, nos momentos mais fortes do filme, abandona quase tudo e torna-se um objecto irracional, visionário que nem eu sei explicar, de repente aquilo foge-me, e é a intromissão dum convidado que não estava convidado para ali, que não se sabe quem é e nunca se saberá, é o lado visionário, uma aparição, uma coisa de terror, enfim, dos mais variados sentidos conforme os planos. E isso a partir de coisas muito concretas: são os corpos, são os lugares, e aquela luz que naquele dia era assim e noutro dia não era, era a água que estava quente ou que estava fria no rio, era o sol, o vento, a actriz que se tinha deitado às cinco da manhã e estava mal disposta, construindo com o que há e não com outra coisa, com o que há às vezes trazido do estúdio enfim, mas com o que está ali em frente à câmara, aceitando e depois tentando chegar a esses níveis todos, o que nem sempre acontece evidentemente. Aqueles planos nem todos são conseguidos no mesmo grau, há planos que apesar de tudo são mais simples, são mais divertidos... — Senão também o risco era duma excessiva saturação. Se cada plano do filme tiver tudo isso é muito difícil a gente entrar... — Torna-se ilegível... é indigesto... — Mesmo assim os seus filmes têm um pouco disso. E é isso que é interessante ver nesta conversa. É o paradoxo entre o excesso de referências e o momento em que a coisa larga e é como se pegasse fogo, como se andasse por si digamos assim, como se se libertasse duma prisão cultural, apesar de tudo... — Eu aceito todos os pequenos erros: a actriz que começou a coxear, o vestido que se rasgou, ela um dia estar zangada com o outro actor principal. Tudo isso vem-me alterar e eu acho bem. — Mas isso, por exemplo, em O DESEJADO, que fala do desejo e da sedução e de tudo isso, é óbvio. Está ligado com o tema e está ligado com o próprio filme que vimos. Mas se recuarmos à ILHA DOS AMORES, também se passou assim? Porque é um filme apesar de tudo mais depressivo, mais melancólico, mais de morte, de ritual, não é? — Quando há planos muito perfeitos em A ILHA DOS AMORES, quando não houve esse desarranjo vital do fazer, eu fico ligeiramente decepcionado. Ou seja, não sei se se lembra, por exemplo, do plano do banho em Kobé... são planos longuíssimos, muito estruturados formalmente, em que a posição da câmara é de tal modo totalitária que os actores estavam ali espartilhados, o mais pequeno gesto que fizessem saíam do écran, porque só tinham ali 10 cm, 15 cm, com longas focais, com zoom, os actores estavam muito espartilhados. E eu sinto que o plano respira menos, tem menos vitalidade, eles estavam demasiado escravos e a mise en scène era demasiado rainha. E isso eu acho que respira menos.
— Isso acontece mais em A ILHA DOS AMORES do que em O DESEJADO... — Mesmo assim não acontece tantas vezes como isso... — Mas o que é que o levou depois a fazer A ILHA DE MORAES... porque é um filme ao contrário disso... — Totalmente ao contrário. Eu quando fiz A ILHA DE MORAES pensei, primeiro, pôr totalmente em discussão o argumento de A ILHA DOS AMORES... — Mas por alguma insatisfação, algum cansaço, alguma necessidade de se libertar da ILHA DOS AMORES? É que é uma reincidência. Você ontem ao falar comigo disse que aquilo era voltar um bocado ao local do crime, não é? — Aquilo era demasiado obsessivo e demasiado perfeito... — A ILHA DOS AMORES? — Sim, no seu género, há sequências de dez minutos que eu sei que nunca mais na minha vida vou conseguir fazer. Coisas tão ordenadas... E eu achava aquilo asfixiante para mim. Por outro lado, tinha muitas dúvidas, porque imensa gente no Japão e em Macau que tinha conhecido o Moraes, à medida que o filme foi vindo, foi visto, vinham falar comigo. E apareciam novos documentos, recebia cartas das pessoas, a família do Moraes entrou em contacto comigo, escreveram-me cartas da Inglaterra e... e eu comecei a ficar com dúvidas se toda a riqueza possível do Moraes tinha sido dada na ILHA. E parti novamente, com o método ao contrário. Um método muito frágil, portanto, de aparente reportagem, dando a cara... Num, eu tinha-me posto no lugar do rei, do homem que manda. Ali não, era pessoa que vai com a corda ao pescoço aos locais e dizia: «Será que não me terei enganado?» — Inclusivamente as pessoas também lhe fazem perguntas a si. Dá a impressão que não é só você ir entrevistar as pessoas. Você é «entrevisto»... — Ora bem... as pessoas achavam muito esquisita a minha longa dedicação. Sei lá, eu falei com uma neta do Moraes e ela não queria acreditar que eu tivesse passado quinze anos à volta da figura do avô. Achavam-me um ente anormal. Mas eu quis fazer uma coisa muito mais difícil de controlar, frágil, com uma estrutura de reportagem, em que eu podia falhar, em que as coisas podiam ser ridículas, as pessoas podiam não gostar das minhas perguntas, sobretudo dizer que o meu filme a que eu tinha dedicado tanto esforço estava errado. Aquilo podia ser a morte de A ILHA DOS AMORES. As pessoas podiam provar que as personagens tinham sido completamente diferentes, etc.. Ou que eu era um intrometido, que não era bem vindo naquelas esferas, naqueles assuntos, naquelas casas, naquelas pessoas, naquelas memórias que elas tinham do Moraes. — Mas isso é o que ressalta mais do filme, de facto, como resultado: um bem-estar entre as pessoas, digamos assim, de si com as pessoas... — E acabou por resultar bastante bem. As pessoas ficavam comovidas por essa minha atitude desprevenida. Se calhar antes, quando eu cheguei lá com uma enorme equipa de quarenta pessoas a mandar vir e com muitas luzes e camiões e a dizer «faz-se assim, faz-se assado», as pessoas não gostavam tanto. — A ILHA DE MORAES dá a impressão também de que é um filme sobre si próprio em que há um aspecto íntimo e até de improviso. — Mas isso em parte quase que era da equipa. — Depois você fala muito japonês, vê-se que conhece e que lá viveu, e eu fiquei com a impressão que você fala muito de dentro, de si, que se implica, não é só alguém que vai entrevistar as pessoas, que vai recolher depoimentos... ainda por cima numa língua que não é a sua mas que resulta extremamente doce, extremamente terna, não sei como hei-de explicar. — Também estava ali a fazer muito esforço... não é assim muito fácil estar ali a improvisar em japonês, pelo menos para mim. Mas, ao mesmo tempo, havia uma certa expectativa da equipa japonesa. Também me achavam um indivíduo estranho. — A equipa que fez A ILHA DE MORAES foi a mesma de A ILHA DOS AMORES? — Só em parte. Mas, da parte dos japoneses, o próprio «cameraman» e o tipo do som muitas vezes quase impunham: «e se fizéssemos também mais um planito ali porque?... não está a ver aqui uma fotografia do Moraes no mesmo sítio? era engraçado e...». Quer dizer, eles também entravam na
história. Mas isso é típico de mim, aceitar essas coisas que vêm de fora, porque tenho confiança suficiente na força do projecto geral para ir integrando essas vontades e esses entusiasmos ou aversões da parte das outras pessoas. — Isso remete-nos para a outra questão do fascínio e do desejo, voltando agora a O DESEJADO. Na ILHA DE MORAES há de facto esse encontro das pessoas, mais do que na ILHA DOS AMORES que é também uma história de fascínio, uma história de fascínio de morte... — De morte, sim. São os amores pelos mortos... — Você ontem, no debate, falou da imagem do desejo: a margem do rio, a ponte. Você disse que O DESEJADO é quase o seu primeiro projecto, é um projecto antigo... — É dos mais antigos mesmo. Mais antigo que os VERDES ANOS. — Mas dá a impressão que surge muito coerentemente depois deste percurso que você teve, inclusivamente com o Japão. E a história é de imitação oriental, é uma história de há mil anos e de inspiração japonesa. Você foi ao Japão à procura do Desejado, à procura do Wenceslau de Moraes ou quê? — Não, na altura tentei fazer um filme sobre a introdução das espingardas em 1542, que é aquela história contada pelo Fernão Mendes Pinto. Depois de várias aventuras não pôde ser, os produtores japoneses acabaram por me roubar a história e fazer o filme lá entre eles. Mas aproveitei porque o embaixador Armando Martins disse-me: «Ah!, vá a Tokushima, ver o tal Moraes» e eu fiquei muito impressionado com o ambiente de Tokushima e as pessoas e as memórias que havia do Moraes. E mal sabia eu no que me estava a meter. Aquilo a princípio tinha ar dum filme mais ou menos normal. E depois, com as dificuldades de produção e com as dificuldades estilísticas... porque os catorze anos não foram só por causa do filme não ter dinheiro... o filme era extremamente difícil do ponto de vista formal. — É no Japão que descobre o Moraes? Não parte de Portugal para o Japão com a ideia de fazer um filme sobre Moraes? — Eu fui ao Japão por causa da história das espingardas do Fernão Mendes Pinto. Roubam-me a história. Fazem o filme lá, ao nível duma grande companhia e vou para Tokushima... e descubro que havia um homem muito engraçado... — É mais uma história de fascínio, portanto... — Sim, sim. Pode-se dizer que andámos lá pelos cemitérios de Tokushima, que me apareceram uns fantasmas dumas senhoras e dum senhor e... roubaram-me para aquele lado. Devo dizer que ainda hoje considero as pessoas que se chamaram Ko-Haru e Oyoné mais reais para mim do que quase qualquer mulher, conforme elas resultam das páginas do Moraes e que, pelos vistos, era optimamente verdade, as pessoas que as conheceram dizem ainda que elas foram mais ou menos assim. Têm uma maior carga de presença quase do que qualquer pessoa viva, ainda hoje. São dois arquétipos, duas atitudes diferentes perante a vida, uma é apolínea, a outra é dionisíaca; mas a dionisíaca, quanto mais sofreguidão tem de viver, mais próxima está da morte, porque tem uma tuberculose e tem pouco tempo de vida e portanto é uma espécie de chama que se queima. A gente vê ali uma pessoa que está a dar tudo, com poucos meses de vida. De algum modo a pequena KoHaru é a anunciadora da Antónia de O DESEJADO. E eu, apesar de tudo, acabo por descobrir, e sente-se, que os dois filmes têm um parentesco, que os personagens têm parentescos. — Estava há bocado a falar das dificuldades, não apenas de produção, não apenas financeiras, de A ILHA DOS AMORES... qual era a dificuldade? — A seguir ao MUDAR DE VIDA — que é um filme em que o documental das pescas já entrava de propósito em conflito com o ficcional, já era uma dúvida quanto à narrativa tradicional —, mas no MUDAR DE VIDA ainda havia um pouco os signos espaciais — a zona do mar, a zona da ria, a zona das salinas, que era um bocado como aquele sistema dos planetas, antigamente, na medicina dos romanos e da idade Média, etc. —, que já tornava um pouco menos linear a história... concebendo uma história, como o faz o realismo psicológico francês, como basicamente um mecanismo de relojoaria de um temperamento: uma pessoa tem tal passado, tem um corpo assim e assado, portanto a evolução da vida dela é quase uma equação matemática, é dedutível, é explicável. Todo esse esquema vindo do realismo psicológico, que nas suas muitas variantes ainda hoje é, dominante na narrativa (as
pessoas querem que as pessoas sejam explicáveis, inteiramente), me parece absurdo e a arte moderna tem vindo cada vez mais a libertar-se disso. Só coisas como o cinema e a televisão é que não conseguem... Ora bem, como eu acho que o percurso humano é uma coisa bastante misteriosa e bastante devorada por pulsões contraditórias, irracionais, e as pulsões são das pessoas ligadas às outras e aos apelos dos lugares, dos objectos, etc., isso dá percursos muito menos lineares... Eu estava em plena crise de falta de confiança nas possibilidades de, analisando, percebermos o que é uma vida humana, uma evolução. Aquilo não vem realmente nos manuais da psicologia. Não queria contar a história do Moraes como um caso exemplar: «Ora vejam como um português, tendo tido uma educação pequeno-burguesa em Lisboa, em 1860, com a crise da Europa nos finais do século, com o decadentismo, a crise dos valores, não sei quê, vai dar ao Japão...». Eu não queria de modo nenhum fazer uma coisa assim escolar, explicativa. O lado da paixão dele pelas mortas sugeria algo de muito mais «fantasmal», de muito mais contundente, de muito mais perturbante. E o lado quase exterior dele, ele que foi toda a vida dele um homem lindíssimo, com a roupa da Marinha e depois, como cônsul, era considerado um «dandy», um «gentleman», um desportista, não sei quê; acabar como o «mendigo ocidental». Eu ainda encontrei velhotes que me disseram: «Ai, eu não sabia quem ele era, um estrangeiro tão rotinho. Olhe eu até quis dar-lhe dinheiro porque pensei que era um pedinte». Ora o Moraes deixou uma considerável fortuna no banco, em herança às várias pessoas, etc. E como é que um homem tão inteligente, como é que ele andava assim roto em Tokushima, a visitar de noite os túmulos das duas mulheres que ele tinha amado, e se continuava a cartear com dois lugares-tenentes dos dois últimos reis de Portugal? E, à sua maneira, as amizades dele eram de aristocrata. A maior parte das cartas eram dirigidas «ao conde de não sei quê», era lá uma espécie de secretário (em título) da corte do D. Carlos e depois do D. Manuel... Como é que ele fazia aquelas fitas no fim da vida e sem nenhuma necessidade? E, ao mesmo tempo, e isso é claríssimo, estava a fazer a melhor prosa portuguesa da sua época. A qualidade de escrita dos textos que ele faz nessa época de crise... é incomparável... realmente ultrapassa de muito tudo o que o Eça tinha feito, é já uma evolução da língua, muito mais moderna, muito mais inovadora. Portanto ele não estava nada maluquinho. Só que isso são pulsões de tal modo fortes e contraditórias que uma postura meramente racionalista ou explicativa... Mesmo a estrutura de um melodrama tem uma lógica, já tradicional, muito conhecida. Todos os melodramas se baseiam em dois ou três arquétipos que as pessoas têm na cabeça sobre o que é que o homem é, o destino e a sorte, e os encontros e os desencontros... e eu achei que isso era extraordinariamente empobrecedor. Mas até encontrar estruturas narrativas novas, formas de «mise en scène» que não cortassem essas virtualidades, tive praticamente dez anos de trabalho. É como um escultor que está ali com uma pedra muita dura, que é difícil de trabalhar, que quebra, e que passa muito tempo à procura de quais as verdadeiras virtualidades daquela pedra, que instrumentos usar para a cortar direito e que escultura pode ser feita com aquele material... E, ao mesmo tempo, houve um longuíssimo trabalho artesanal de luta e de aferição dos materiais, das possibilidades estilísticas. Passava a vida a ver teatro japonês, a ler textos de todos os tipos a ver se encontrava formas estilísticas que me pudessem servir. Ver todas as coisas das várias modernidades e vanguardas, todas as formas de todos os teatros tradicionais... Interessei-me muito pela música de vanguarda, pela «collage», enfim, por tudo o que se fez em muitíssimas épocas, sempre à procura de figuras formais. E depois era preciso, para adaptá-las ao cinema, estudar imensas «minhoquices» técnicas para aquilo poder ser. Como é que, em estúdio, se pode dar aquele efeito? Há imensas coisas que para o profissional são extremamente difíceis de fazer. Devo dizer que, por exemplo, a cena do espelho e do banho, ao princípio, em Cannes, ninguém queria acreditar que aquilo não tinha sido feito em trucagem, achavam impossível, aqueles movimentos de «zooms» contrariados e de «travellings» sobre os espelhos, as pessoas apareciam, desapareciam, etc., achavam que era impossível humanamente, do ponto de vista técnico, que as câmaras e os «cameramen» não eram capazes de fazer. E portanto, ao mesmo tempo há todo este trabalho obsessivo e de estudo de modelos, de origens históricas e coisas assim, mas há um enorme... eu tenho imenso prazer com as dificuldades técnicas. Eu se tiver que passar 30 dias e 30 noites à mesa de montagem para resolver meia dúzia de coisas de uma banda de som, tenho um grande prazer nisso. De algum modo, neste momento, o meu problema é quase o contrário... eu tenho quase medo de ter demasiada fascinação, uma espécie de «overskill» e
de haver agora um lado artesanalmente demasiado ostensivo, em que aquilo acaba sempre por ser resolvido, talvez à custa de muito trabalho, mas acaba por ser, fica com um certo brilho exterior, que eu acho que pode prejudicar a realidade na qual há muito mais fragilidade. Por exemplo, gosto muito do filme que o Jorge Silva Melo vai estrear agora, o AGOSTO, em que essa fragilidade é muito mais à flor da pele. Ele nunca deita os holofotes à cara do público para o assustar com uma certa segurança da execução técnica. Quer dizer, é aquele lado que as pessoas costumam dizer muito bem do Kubrik porque é um grande técnico, ou do Polanski. Eu acho que isso realmente é uma falta de elegância para com o público, impor... como aquelas pessoas que têm um carro muito bom e travam mesmo à nossa beira, com imenso barulho, só para mostrar que travam muito bem, e têm os melhores travões do mundo. Agora, eu, ao fazer A ILHA DE MORAES a ideia era fugir a isso. Em O DESEJADO já volto a ser mais controlado. E, agora, ao fazer o Amadeo, o MÁSCARA DE AÇO CONTRA ABISMO AZUL, tentei de novo ser muito arriscado, muito frágil formalmente. Depois acabei à mesa de montagem, trabalhei tantos meses naquilo que aquilo parece de novo muito bem acabadinho, mas não... Realmente a maneira de fazer foi absolutamente «à la diable» e correndo todos os riscos imagináveis. Mas depois o meu diabinho interior... depois, na mesa de montagem, tanto trabalhei aquilo que arranjei na banda «off», nos sons, justificação para todos os erros da rodagem e aquilo parece um efeito, propositado. Quando a câmara treme, eu ponho um conflito sonoro que reproduz exactamente a mesma tremura da câmara e aquilo parece «ballet». E todas as derrapagens acabam por ser, a posteriori, justificadas quase como efeito estilístico. Mas enfim... Portanto, interessava-me muito no futuro fazer, sei lá, filmes de reportagem, 16 mm, semi-improvisados para contrabalançar um bocadinho... — Eu gostava agora de voltar a dois temas relacionados com O DESEJADO. Um é o tema da morte e da vida, mas sempre que temos ido por aí regressamos à ILHA DOS AMORES. E outro refere-se àquilo de que você falava ontem no debate: os enganos ou a aceitação das ilusões. A Antónia e o Tiago morrem enquanto que os outros sobrevivem... E as pessoas enganam-se. — Eu já com A ILHA DOS AMORES tinha a ideia de que se víssemos realmente aquilo que queríamos ver, a face dos nossos mortos amados, se víssemos a outra face da realidade, a face nua das coisas, morríamos. Havia uma luz demasiado intensa. Em O DESEJADO invisto muito mais no quotidiano, através das intrigas, dos amores, das ambições políticas. Os dois heróis jovens têm atitudes românticas: «quero ver a realidade ou morro». E morrem mesmo. O que para mim é um sinal de fraqueza, de falta de sabedoria. E depois há outras pessoas, sobretudo o herói principal, o João, e um nadinha o talvez pai dele, o velho Manuel, e, como pequeno discípulo, a historiadora marxista ciumenta que anda a tentar aprender. São pessoas que têm consciência de que somos uns joguetes nas mãos das fossas paixões, dos nossos desejos, da nossa imaginação, mas que também não há mais nada do que isto. Quer dizer, a verdade só se conquista através de se saber isso. E há um amadurecimento da aceitação disso. Embora toda a gente, se calhar, num momento ou noutro, pense o contrário, o João – que parece ser o mais jogador deles todos, o mais aparentemente mundano, que nunca perde a cabeça, que parece manipular os outros –, acaba por ser o mais corajoso e o mais lúcido. E acaba por ter um maior amor aos outros todos. Um amor sem demasiadas ilusões. Ele olha-se ao espelho e vê como estava a todo o momento a enganar-se. Mas é só com o trabalho consciente e modesto sobre um engano que um bocadinho de verdade e de calor humano e de comunicação pode surgir. Não há mais nada. — E aceita o «bocadinho» em vez do «todo», digamos assim, não é? É que parece, inclusivamente, talvez até uma evolução sua. Porque A ILHA D0S AMORES, voltando atrás, é mais a totalidade, a entrega... E você agora de alguma forma resolve o dilema, porque há aqui uma entrega e um risco, mas limitado. — Não é assim tão limitado como isso, sobretudo na cabeça do herói principal, do João. Ele é um herói quase trágico porque tem consciência de tudo, dos abismos todos e convive com eles... — Mas é um homem com êxito, em certa medida, embora na cena final possa ser um homem despido... — É um êxito que talvez o não seja. Ele fez o possível, o que lhe foi possível. E acho que há coisas trágicas; por exemplo, quando ele manda o Tiago à Índia com a Antónia, é como naqueles
momentos das tragédias em que os heróis principais decidem o destino deles contra si próprios. E ele, na minha opinião, tem obscuramente a consciência de que aquilo é o destino. E, portanto, não sabe muito bem, mas tanto o rapaz como a rapariga lhe vão escapar da vida dele, e talvez em mal, porque, como ele não tem muita confiança na saúde interior deles, acha se calhar que aquilo vai dar asneira. Mas, no momento, apesar de tudo, era a única via. Ele não podia recusar que as pessoas corressem os seus riscos. Mas só que ele tem plena consciência disso e está desesperado de tristeza porque está apaixonadíssimo pela rapariga e adora o rapaz que talvez seja filho dele. E mesmo a paixão que ele tem pelo Tiago é símbolo disso. Ele não sabe se ele é filho dele, mas tem de fazer de conta, como se... Se qualquer marido quisesse ter a certeza de que a sua esposa o ama, não poderia viver... Uma certeza dessas, por definição, não há. E toda a vida é feita só sobre saltos no vazio, cheques em branco. Mesmo as pessoas que achem que são precavidas e finórias também são obrigadas a fazê-lo. Só que não têm consciência disso. Quer dizer o risco é total, sempre. Só que, e isso é que torna o personagem misterioso, o João aparentemente sabe. Tem uma espécie de capacidade trágica de ver tudo. E, mesmo assim, faz. É por isso que o João não obedece quase às leis da psicologia. Aliás, quando o romance foi escrito por Murasaki Shikibu, ainda não se tinha inventado a palavra psicologia. Há uma grande verdade naquilo, mas doutro género. Da mesma maneira que, se você vir os frescos do Giotto, aquilo não tem verdade psicológica, tem uma verdade total mas não é a de uma novelazinha do século XIX. — Aí a verdade psicológica é um empobrecimento até do próprio psicológico, não é? Da vida interior das pessoas, daquilo que as pessoas são realmente... — Houve uma altura em que as pessoas pensaram que eram engenheiros da alma, que era tudo muito simples, que se explicava tudo. — Um aspecto que surpreende é a política no seu filme. Inclusivamente não se estaria à espera disso, depois de você ter tocado mundos um bocado etéreos... Prende-se também com a ligeireza que ao mesmo tempo há no filme... Uma complexidade grande e uma ligeireza. — É como as cenas de cama e os ridículos do ocioso, as vaidades... Faz parte do trivial do português. Nós ligamos a televisão e vemo-los sempre a dizerem que são os melhores do mundo... — Você coloca os políticos praticamente no mesmo círculo, na mesma família. — Eu lembro-me de que as peixeiras puxavam pelas bochechas do presidente da República... ó bochechas... A nossa vida está invadida... só me faltava pôr o futebol, percebe, e contar umas histórias de cama ou não, se o Futre tem agora uma namorada ou não, percebe, e se tem um novo automóvel de corrida. Faz muito parte da nossa vida... — A questão da política é um pouco por ser uma história de príncipes como você frisou. São pessoas que estão numa situação extraordinária, que têm acesso a um palácio de Sintra... — Tudo isto chega a um nível da tragédia. Eu precisava de personagens de príncipes. Cá em Portugal não há príncipes, nem os políticos, mas ao menos vivem em lugares onde os príncipes viveram. E, sei lá, por exemplo, aquela conversa muito bonita, ao princípio, no Ministério dos Estrangeiros, com aquelas janelas e portas todas, quando ele vai ao Ministro pedir-lhe uma cunha para Roma, quando vai buscar a Antónia... aquilo era o gabinete de Salazar durante a guerra, quando ele foi Ministro dos Estrangeiros. Claro, nunca mais tinha sido aberto, as pessoas tinham medo, estava lá o fantasma do Salazar. Realmente... aquelas mesas e aquelas gavetas não tinham sido abertas desde o tempo do Salazar. Era essa aura que eu queria. Aqui esteve um tal, o SáCarneiro ali, o D. Manuel I esteve além, o D. Sebastião dormiu nesta cama... — Mas entretanto uma coisa que resulta muito cómica é eles a entrarem e a saírem da televisão. Eles estão na televisão sempre. Depois entram em cena vão aparecendo e voltando a entrar na televisão. O que é muito cómico porque é como se estivessem a entrar e a sair dum armário. — Pronto estão ali na cozinha... É como se vai ao pão, também se tira mais um bocado de propaganda política. — De vez em quando aparecem as imagens da televisão, aparece depois o estúdio naquela cena com o Baptista-Bastos e assim... Quer dizer, há uma série de interferências. — Mas isso faz parte do quotidiano. É a parte que qualquer pessoa, pelo menos vivendo em Lisboa, pode encontrar nos bares, nos cafés o Baptista--Bastos. É o folclore local e...
— Mas depois você ironiza muito com isso na medida em que, por um lado eles têm todos aquela ligação, são líderes de partidos opostos, mas são eventuais pais dos mesmos filhos... — E dormem com a mesma mulher... — Depois os próprios nomes: o Salvador, o Amadeu dos Anjos em relação ao socialista, ao democrata-cristão. É que dá ideia de facto de que é... — É uma comédia... — Exacto, exacto. — Mais ou menos, não há uma excessiva maldade. — Claro, claro, eles são personagens totalmente de ficção. Mas depois você fala do Cunhal, do Soares, do Salazar, do Armindo Monteiro... — Não era possível, depois de falar tanto tempo do D. Manuel I ou do D. Sebastião, não falar dos políticos de agora. É evidentemente mais difícil porque não temos experiência histórica, não se fazem filmes em que essas coisas aparecem... — Não, mas em Portugal, de qualquer forma, houve um período, e o seu cinema como o doutros autores portugueses não teve nada a ver com esse período, de excessivas referências à política, digamos assim. — Eu sou completamente excêntrico, transversal a isso. Para mim, o Cunhal é um homem com boa figura que eu gostava que pudesse entrar num filme meu. Eu estou a falar a sério. E o presidente Soares é um actor espantoso... E não falo noutros políticos porque não têm cara de bons actores. Eu nisso realmente utilizo a ironia no sentido do distanciamento. Tenho uma estima difusa por muita gente, menos estima por outros, mas enfim... Isso evidentemente tornará a recepção do filme um bocadinho difícil para as pessoas que ainda levarem a política muito a sério... porque não é muito habitual. — Claro, claro. O que se nota é que você faz um esforço para não os levar muito a sério... — Mas esse processo é mais ou menos natural em mim. Para os meus actores foi mais difícil, eles apaixonavam-se mais do que eu. Mas eu fui filmar em Roma porque conheci uma rapariga portuguesa que é modelo daquilo. E realmente aquela história com o Cunhal existiu, mais ou menos naquele sítio, se calhar com outroas personagens. Mas há referências que são mais explícitas e outras que não são tanto. Por exemplo, no final quando o João vai atender o telefonema de Madrid e lhe dizem que é o «D. Juan», nós podemos admitir que é o Juan Carlos a felicitá-lo, e podemos associar ao Balsemão que se sabe que é amigo do rei de Espanha. Mas pode ser também o «D. Juan», arquétipo de toda uma série de comportamentos. — E o acidente que ele sofre faz pensar também no Sá-Carneiro... — Mas ele é discreto, talvez para não alarmar o motorista. Ele não admite que tenha sido intencional. — Essas referências são sempre interligadas. Você dá um banho de «confusão ideológica» aos seus personagens. Como se houvesse qualquer coisa que os liga e que, inclusivamente, não é muito importante. O DESEJADO até certo ponto fez-me lembrar O PASSADO E O PRESENTE de Manoel de Oliveira. Você trabalhou com o Manoel de Oliveira. Vê alguma ligação entre os filmes? — Não. A minha ligação com o cinema do Manoel de Oliveira não é o dessa fase. Eu trabalhei com o Oliveira no ACTO DA PRIMAVERA e em A CAÇA. E, de facto, no ACTO DA PRIMAVERA eu comecei a descobrir o lugar do teatro no cinema. E depois fui tentando aprofundar essa via na POUSADA DAS CHAGAS e na ILHA DOS AMORES. De resto, eu acho que há qualquer coisa de comum, que eu não sei explicar muito bem, no cinema de Manoel de Oliveira, no cinema do António Reis e no meu cinema. Somos os três do Porto e talvez isso possa ser uma explicação. Temos os três uma forma de abordar os corpos, o peso dos corpos, e uma certa disponibilidade para por aí chegar a um lado fantasmático. Outro dos meus «mestres» foi o Renoir. E eu já estava esquecido do Renoir e no outro dia na televisão vi o LE CARROSSE D'OR e, de repente, vi que há em O DESEJADO pontos de contacto, foi assim como que uma redescoberta de uma referência que eu já não tinha muito consciente. Entrevista conduzida por A. ROMA TORRES e REGINA GUIMARÃES