Pesar Cenografia Uma caixa negra. No centro do palco, ao fundo, uma porta (com fechadura a funcionar) que os actores nem sempre utilizam quando entram em cena. Do lado direito, uma pequena tribuna. Do lado esquerdo, uma mesa rectangular com um candeeiro-girafa. Frente à porta-décor, um sofá. Todos estes adereços devem ser discretos e só se tornam visíveis quando expressamente iluminados. Distribuição Todos os papéis de amante - Pedro, Marcelo, Amadeu, Carlos, José - serão desempenhados pelo mesmo actor. Todos os papéis relativos a instituições sociais - o especialista, o juiz, o Sr. Bento, o polícia e o advogado - serão desempenhados por um só actor. Trata-se pois de uma peça para três actores. No entanto, é indispensável que cada personagem masculina se singularize gestual e comportamentalmente. A maquilhagem em cena não nos parece de excluir.
ACTO ÚNICO Penumbra. Despojos de uma festa infantil de aniversário. Clara, meia desgrenhada, apanha do chão restos de serpentinas, copos de plástico e bocados de comida esmagada. De costas, Pedro fuma um cigarro como se estivesse à espera do fim das arrumações para se sentar. Entre os dois, uma tensão silenciosa. CLARA (rompendo a medo o silêncio) Achas que ela gostou? Deita detritos para dentro dum grande saco de plástico preto, com um ar exausto. PEDRO Não é para ti que fazes as festas? CLARA (muito séria, olhando de esguelha para as costas de Pedro) Não! Clara continua a recolher lixo. Pedro não mexe uma palha. CLARA (rompendo a custo o silêncio) Às vezes parece que a Filipa não é tua filha. PEDRO (com uma risada) Tu lá sabes. Tu lá sabes disso. Ao erguer a cabeça para responder, Clara tem uma tontura. Passa a mão pela testa e sacode o cabelo para afastar os maus espíritos. PEDRO Ainda vai demorar muito? CLARA Se desses uma ajuda...
PEDRO É que o desafio começa daqui a cinco minutos. CLARA (agastada) Falta pouco. (Mudando bruscamente de assunto.) O bolo de anos... pareceu-te saboroso? PEDRO (seco) Estás farta de saber que não te devias meter em cozinhados. Nos doces és um zero. (Ladrando.) Os bolos de anos compram-se feitos. Já vêm com as velas espetadas e tudo. CLARA (magoada) Era para a minha filha... tinha um valor simbólico... não percebes? PEDRO (olhando para o relógio de pulso) Faltam quatro minutos para o jogo. Conversas depois e aspiras amanhã. CLARA Tenho a impressão de que a televisão avariou. PEDRO (prestes a exaltar-se) Avariou como? Nesta casa, as coisas estragam-se sozinhas. (Afectando calma.) Não tem mal, vou ver o desafio a casa da Nela! Ela tem sempre tudo a funcionar, caramba! CLARA (quase a gemer) Ó pá, tu prometeste, tu juraste que não voltavas a casa dessa puta. És indecente! PEDRO (entre dentes) Não grites que a miúda está no primeiro sono! CLARA (suplicante) Espera... Vou ver se o nosso vizinho tem a luz acesa? PEDRO Tás louca, Clara?! Eu não sou um bandalho, não vejo televisão em casa de vizinhos. Tenho muitos sítios para onde ir. Além disso, a Nela foi minha namorada antes de eu te conhecer... CLARA (implorando) Fica, por favor, fica só hoje. Fica. É uma data especial. Há sete anos atrás estava eu de pernas abertas a sofrer. PEDRO Sofrer de pernas abertas? Para isso tens tu talento! E gemer? Tens a escola toda, pá. Pedro dirige-se para uma saída de cena pontapeando copos e restos de comida. CLARA (quase gritando) Ó Pedro, foi um dia tão bom! Do lado esquerdo surge uma mesa rectangular com um candeeiro-girafa. O chão continua juncado de detritos mas a luz evidencia apenas a presença de duas personagens sentadas frente a frente, cada qual do seu lado do tampo. O ESPECIALISTA E foi aí que a senhora estragou tudo. Não acha que já vai sendo tempo de controlar essa ciumeira? A senhora é que tem sujidade na cabeça. CLARA Os bebés também são ciumentos. Se eu pegasse noutra criança ao colo, a Filipa fazia logo uma birra. E a cabeça dela não podia ser suja.
O ESPECIALISTA Portanto a senhora não quer crescer... CLARA Se crescer é ceder, não quero não... O ESPECIALISTA É ceder, claro que é ceder... Ceder ao melhor que você tem dentro de si. CLARA O que eu tenho de melhor é a fé... mas o Pê chama-lhe mau feitio. (Atirando o cabelo para trás.) Não quero crescer a todo o custo. Prefiro pagar a conta no fim. Antes arder nas chamas do inferno do que olhar para tudo com frieza. Breve silêncio. Pedro volta a entrar em cena com um ar decidido. Parece pouco afectado pela violência da cena conjugal. Clara levanta-se, compõe uma melena e respira fundo. A luz que iluminava a mesa rectangular e o especialista apaga-se. Do lado oposto do palco acende-se outro projector que revela a presença de um homem de meia-idade, vestido de juiz. A nova personagem mantém-se de pé atrás duma pequena tribuna de madeira escura. PEDRO Pronto, senhor doutor juiz. Julgo que, pela amostra, já dá para ver o inferno em que eu VIVI. Clara endireita-se e limpa uma lágrima furtiva. O JUIZ No entanto, a sua insistência no futebol também não me parece muito saudável, engenheiro Geada... PEDRO (veemente) Por amor de Deus, senhor doutor juiz, eu nem gosto muito de futebol... Mas quando ela me vem com a conversa das pernas abertas, perco as estribeiras. Só vejo televisão para me acalmar. Comprei recentemente o vídeo e ela grava os jogos sempre que saio mais tarde do emprego. É como tomar pastilhas contra a insónia. A Clara é incapaz de apreciar a calma, a serenidade, a paz. Precisa de viver em guerra permanente. E é justamente para minar o terreno todo que deixa as miúdas mexerem nos meus aparelhos no meio da confusão da festa de aniversário. Claro que espatifaram o comando. No meu lugar, o senhor doutor também não havia de reagir bem. O JUIZ Certo, certo. (Dirigindo-se a Clara.) Minha senhora, o desprezo pelos bens do cônjuge aliado às manifestações de ciúme, impróprias de uma pessoa adulta, conduziram a sua relação matrimonial a uma previsível ruptura. A senhora acha que é a falar de pernas abertas que os problemas dum casal se resolvem? Clara enxuga a testa com a manga direita e assoa o nariz, muito vermelho, a um lenço de papel. Abre a boca mas está incapaz de articular uma palavra de resposta. Ao cabo duns instantes de pesado mutismo, sacode o cabelo, cerra as pálpebras e canta, num tom magoado. CLARA (cantando) Casada ou solteira Senhora ou sopeira Toda a mulher é amante Antes, depois e durante O acaso da gravidez: Foi a conta que Deus fez. Enquanto a puta não parir Enquanto a vulva não se abrir Mais do que era necessário Todo o homem é um corsário Um pirata, um sedutor
Vil ladrão, violador... E à fêmea nada resta Da meninice funesta. Porém um dia vem a barriga E a cigarra vira formiga Crescem meninos no buraco O príncipe volta a ser sapo Adeus encantos, adeus paixão Quem tem filhos não tem perdão. Todas as mães estão ao abandono Quer tenham dono ou não tenham dono Carregam os filhos como fardos Todos os filhos são filhos bastardos Todas as mães são filhas da mãe Mães solteiras mulheres de ninguém. Pedro aproxima-se sorrateiramente de Clara. Mal ela se cala, agarra-a pelas costas, cortando-lhe a respiração. Apanhada de surpresa, Clara quase desfalece com o susto. PEDRO Isso não é verdade, pois não? (Com voz carinhosa e tom paternalista.) É treta... pura treta. CLARA (rendendo-se) Às vezes é, outras não. PEDRO Não vamos perder o pouco tempo que temos para estarmos juntos em acusações (beijando-lhe o pescoço) pouco menos que infantis. CLARA (um tanto à toa) Tu não gostas de crianças? PEDRO (enfiando o nariz no cabelo de Clara e respirando profundamente como se estivesse muito perturbado) Tenho ciúmes dela... És mais meiga com a Filipa do que comigo. CLARA A Filipa é a tua cara chapada. PEDRO (sonso) Estás a ver, ela roubou-me tudo, até a cara. (Tentando despir Clara, cientificamente.) Deves-me... deves-me o que lhe deste... (Desaperta-lhe o soutien debaixo da blusa.) Devolução imediata! Com juros! CLARA (virando-se de súbito) A propósito de juros... eu bem sabia que me estava a esquecer duma coisa importante. Preciso de pagar a prestação da arca. Estou tesa! PEDRO (sorrindo) Desliga essa merda. Odeio comida congelada. (Obsceno.) O frio tira-me o tesão. CLARA Ó Pedro, a arca serve para congelar a sopa da menina... para haver sempre jantar pronto e... PEDRO A menina nunca come a sopa que tu fazes. Prefere os ovos mexidos, sai ao pai, não é? CLARA Em casa da tua mãe também há uma arca tão grande como a minha.
PEDRO (irritado) Duas diferenças. Primeiro: quem pagou a arca foi ela. Segundo: ela congela a comida que traz da aldeia, não conserva a merda que compra no supermercado. Tu, minha filha, nem a aldeia tens. Florzinha de subúrbio... erva de arrabalde (tenta meter-lhe a mão entre as pernas) não distingue um chouriço de outro chouriço... CLARA (ofendida) Não desconverses. Tudo o que está dentro da arca é pago com a massa dos meus pais. Não posso pedir-lhes, ainda por cima, que se responsabilizem pelas dívidas do casal. PEDRO (segurando brutalmente o queixo de Clara) Mas a mim podes pedir tudo, cabra: que fique em casa, que coma a trampa que tu fazes e te coma a ti a seguir e, no fim, como se não bastasse comer e chorar por mais, há que pagar. Pagar?! As putas saem mais baratas... e não falta quem diga que até como mães são boas. Boas, pá! Tu não sabes ser boa. Até na cama cheiras a comida congelada. Clara chora convulsivamente, presa à fúria do amante pela garra que lhe imobiliza o crânio. CLARA (por entre soluços) Vamos dormir, Pê, vamos dormir. Isto passa... PEDRO (descontrolado) Dormir, minha filha?! Dormir?! (De súbito, rompe fora de cena o choro duma criança que acordou estremunhada.) Nesta casa, a noite é má conselheira. Ouves o que a noite te diz? (Choro off da criança; choro in da mãe. Suspensão.) Volto amanhã para levar os meus trastes. Pedro larga o queixo de Clara e sai executando uma pirueta estudada que pretende exprimir o sentimento de "libertação". CLARA (gritando) Para onde vais, Pedro? PEDRO (off) O mundo é grande. CLARA (baixinho) E eu sou pequena. (quase cantado, em tom de confidência) Sou pequena... O meu mundo eras tu E nu o coração Que te ofereci... Por isso não cresci. Que pena! Sou menor Conhecias de cor O que fazia falta... Seja como for Havia pouco a conhecer E muito para esconder.
No lado direito do palco, acende-se de novo uma luz que revela a presença do juiz atrás da sua pequena tribuna. O JUIZ (severo) A todos os encontros marcados pelo engenheiro Geada, a senhora tem faltado sistematicamente, privando assim o pai de um necessário convívio com a criança. A senhora alega pretender que o pai se encontre com a criança em casa e em horários que não perturbem os ritmos biológicos - a palavra é sua - da menor. Que tem feito, concretamente, para facilitar esses encontros? CLARA Nada. Ele é que saiu de casa. Eu e a minha filha ficámos onde sempre estivemos e não mexemos uma palha. O JUIZ O engenheiro Geada queixa-se de que as campainhas do seu apartamento estão desligadas e de que o seu telefone não funciona. CLARA Não há massa, não há conversa. O engenheiro Geada nunca se dignou telefonar para casa a avisar que voltava fora de horas. Era um pai muito ausente. O JUIZ Não estamos numa novela, doutora Clara, estamos num tribunal. Estamos a avaliar a situação duma paternidade, não a assiduidade de um amante. Bom ou mau companheiro, não me interessa. Boa ou má amante, não me importa. Estamos a avaliar a sua performance como mãe. CLARA (sibilina) Eu já devia ter percebido que um homem pode começar a ser pai em qualquer idade... O JUIZ O engenheiro Geada é o pai que a senhora escolheu para a sua filha. CLARA Ele acha que não. Pergunte-lhe. Ele acha que as mulheres lhe caem na sopa. E só gosta da sopa que a mamã faz. O JUIZ O que tem a nossa conversa a ver com sopa? CLARA Tudo. Não são bonitas as meninas que comem a sopa e lambem o prato, mesmo quando não gostam de grelos? O JUIZ Cale-se. Que a senhora não tenha respeito por si própria é algo que apenas a si diz respeito. Mas o tribunal de família fez-se para defender precisamente os valores que fizeram falta à sua. PEDRO (entrando providencialmente em cena) O senhor doutor ouviu, não ouviu? Ela é obscena. A toda a hora, em todo o lugar. Claro que nós sabemos que nem às putas se tiram as filhas, não é verdade? O JUIZ (apaziguador) Senhor engenheiro, os tribunais intervêm dentro dos limites estipulados pela lei. Garanto-lhe que, dentro desses limites, nunca deixamos de corrigir desequilíbrios. A criança é pequena. Não vamos privá-la nem do lar onde cresceu, nem do afecto do pai. (Virando-se para Clara.) Proponho-lhes um regime de duas visitas por mês, de quinze em quinze dias. O engenheiro virá buscar a sua filha às 19 horas de 6 a feira à morada onde a doutora Clara está domiciliada e irá entregá-la às 19 horas de Domingo no mesmo local. A criança fica à guarda da progenitora, que deverá contudo prestar contas ao pai acerca de todas as situações graves ou relevantes que lhe digam respeito, nomeadamente nos domínios da saúde e da escolarização. Os feriados e festas de aniversário serão divididos... e aí imperará o bom senso. Este regime provisório fica sujeito a
posterior confirmação. Espero que ambos se mostrem à altura dos vossos papéis. A luz que ilumina a tribuna do juiz apaga-se bruscamente. Clara, pregada ao chão desde as suas últimas palavras, sai do aparente torpor e vai buscar um embrulho pousado a um canto. O pacote contém uma enorme fechadura que Clara desajeitadamente instala na porta de "entrada" colocada ao fundo do cenário. CLARA (cantando) O amor tem sempre razão... O coração porém Nunca tem A razão do seu lado E o amor é um mau-olhado Mal visto malentendido Doce veneno escolhido Por quem nasce malfadado. O amor tem sempre razão... Porém A razão que lhe assiste Só existe Do lado do coração. Em vão busca defensores Que percebam suas dores Em vão procura advogados Somente encontra juízes Aprendizes de carrasco E a sentença da paixão É uma triste refeição Sopa fria Puro asco. Finda a tarefa e o canto, Clara deixa-se cair pesadamente no sofá. Batem à porta. Ao de leve. Clara não se mexe. Voltam a tocar com mais força. Clara agita-se no sofá mas não se levanta. Terceiro toque, enérgico. Clara sorri, olha para o tecto, como se esperasse uma aprovação vinda de cima. Violentas pancadas fazem vibrar a porta. Em off, uma criança canta, tentando cobrir com a voz a barulheira das pancadas. FILIPA (off) Os cavalos a correr As meninas a aprender Qual será a mais bonita Que se vai esconder? CLARA (ralhando) Cala-te Filipa. Mandei-te ficar caladinha, a brincar no teu quarto. PEDRO (off) Pipa, estás aí? É o papá! Abre a porta ao papá. O papá tem frio, Pipa... Silêncio. PEDRO (off) Clara, eu sei que estás aí. CLARA
(friamente) Claro, estou em minha casa. PEDRO (off) E não abres a porta? CLARA (friamente) Não estou à espera de visitas. PEDRO (off) Mas hoje é o dia da visita. CLARA Ah... é por isso? Tinha-me esquecido. Silêncio. Clara não se mexe. PEDRO (off) Clara, tenho o carro mal estacionado, porra! CLARA Deixa lá. Tu nunca pagas multas. A culpa é sempre dos outros. PEDRO (off) Clara, não faças fitas. Sê adulta. Abre. CLARA Que vieste fazer à nossa casa? PEDRO (off) Quero ver a minha filha. CLARA Claro que queres ver a tua filha. Nós somos a tua família. Éramos. Podemos voltar a ser. Eu nunca fechei a porta, Pê. PEDRO (off) Então abre. CLARA Com uma condição. Nesta casa só entra gente da família. Portanto... PEDRO (off; impaciente) Portanto o quê? CLARA Portanto volta tudo ao seu lugar se casares comigo. Casas comigo e voltas a ter casa. Casas comigo e voltas a ter filha. Casas comigo e voltas a ter-me... Eu queria que a proposta viesse de ti, queria ouvir-te dizer-me isso mas... paciência! Já não estamos no séc. XIX e eu não sou freira. Portanto... PEDRO (off; desabrido) Portanto vai-te foder! (Rindo à gargalhada.) Chantagem?! Chantagem? CLARA (quase a chorar) Porque é que não queres casar comigo? Voltar para junto de mim...? PEDRO (off; aos pontapés à porta) Eu hei-de voltar sim! Volto com uma ordem do tribunal. Com a polícia. Com os cães. Atiro-te aos cães, minha puta. Essa filha que tu aí tens é minha. Minha, percebes?
CLARA (gritando) Tens a certeza? Tens a certeza de que é tua? Ouvem-se em som off os passos de um homem a descer uma interminável escadaria e depois três pancadas seguidas na porta. CLARA (saindo duma espécie de embrutecimento) Sr. Bento, é só um segundo. (Levanta-se, compõe o penteado e vai abrir. Pela porta-cenário entra um homem de fato e gravata, ainda novo, que traz uma maleta negra na mão.) Como está? SR. BENTO (ufano) Viu, Doutora, que não me esqueci do código das três pancadas? CLARA (rindo) O Sr. Bento é de confiança, já percebi. SR. BENTO Trouxe-lhe a planta do apartamento. Acho que é exactamente aquilo de que anda à procura. CLARA (trocista) Tem a certeza? O Sr. Bento abre a maleta e saca de lá uma planta de arquitecto. Olha à sua volta. Desencorajado pela ausência duma mesa suficientemente grande, acaba por desdobrar o papel no chão. Depois põe-se de gatas e aponta. Clara fica de pé com um ar muito digno. SR. BENTO (apontando) A porta da entrada fica aqui. CLARA O mais importante é o terraço por causa da miúda. Quantos metros quadrados? SR. BENTO Setenta e cinco metros quadrados. CLARA Isso é óptimo! Setenta e cinco metros quadrados de terraço? Até dá para ela andar de bicicleta, de patins... SR. BENTO (olhando de baixo) Não, setenta e cinco metros quadrados de área habitável. Dez metros quadrados de terraço. CLARA Esqueça. Quero ter ares, vistas e largueza. SR. BENTO (canino) Mas a doutora ainda não viu bem. Esta cozinha... esta cozinha é um palácio. Pode almoçar e jantar na cozinha. CLARA Sr. Bento, a cozinha não é o meu forte. Preciso de um terraço. Para fazer grelhados ao ar livre. Não vou passar a minha vida a olhar para os tachos. (Inexplicavelmente dura.) O Sr. Bento é casado? SR. BENTO (quase intimidado) Fui casado. Estou separado há um ano e meio. CLARA Claro. Um homem que chama palácio a uma cozinha não se aguenta muito tempo casado. SR. BENTO (erguendo-se)
Doutora Clara, a minha mulher andava metida com o meu irmão mais novo. CLARA Não admira. SR. BENTO Doutora Clara, eu nunca como em casa. CLARA Não admira. SR. BENTO (dobrando a planta e arrumando-a na maleta) Doutora Clara, sendo assim, vou indo. Se houver alguma coisa... nos seus preços. CLARA É isso. A cozinha pode ser um cochicho. Preciso de ares, vistas e largueza. (Encaminhando o Sr. Bento para a porta-cenário.) Eu desço consigo para fechar a porta da rua. É que... é que os vizinhos não ligam nenhuma à segurança. Clara e o Sr. Bento saem de cena, passando pela porta-cenário. Um tempo. CLARA (off) Nem as portas do céu se abrem com tanta facilidade! Ruído longínquo de abertura de porta. Barulho de passos - duas pessoas, uma das quais mais pesada do que Clara - nas escadas. Clara entra em cena acompanhada de um homem mais novo do que ela, de aspecto bonacheirão. MARCELO (assobiando) É grande a tua casa... CLARA Achas? MARCELO (tom de desculpa) Para vocês as duas... CLARA Os corações grandes precisam de espaço, Marcelo. MARCELO É assim tão grande o teu coração? CLARA É como um latifúndio, precisa de um cão de guarda. Daqueles alegres e mansinhos que só mordem nos estranhos. Nos intrusos. MARCELO (rindo) Eu sou um intruso? CLARA Por enquanto és só um estranho, Marcelo. Queres ser o meu cão de guarda? (cantando) Sê cão E guia a minha cegueira Sê guarda Sem farda Pois a prisão É nossa casa verdadeira. Quero ser guardada Em gaiola dourada Punida, condenada À pena mais comprida...
Sê meu destino Canino Pelo faro Saberás Os meus desejos Bom rapaz Lamberás Meus pés E de beijos Me cobrirás Agora que aqui estás Não podes voltar atrás... Quero ser guardada Em gaiola dourada Punida, condenada À pena mais comprida... Enquanto canta, Clara acaricia a nuca de Marcelo que aceita entrar no jogo e se põe de gatas. Quando a canção acaba, a personagem ergue-se: já mudou de identidade. É Amadeu. AMADEU (sacudindo o casaco) Não consigo encontrar. Como é que lhe deste sumiço? CLARA Nesta casa as coisas perdem-se sozinhas. AMADEU (irritado) Mas uma chave, Clara, uma chave... A chave da porta da rua. Parece que fazes de propósito. CLARA (sorridente) E faço. Às vezes falo contigo e tu estás na lua, não me ligas nenhuma. No entanto, basta uma pequena nota falsa, um contratempo, uma chave desaparecida para eu voltar a existir. AMADEU (virando costas) Não viste o meu jornal? CLARA (colocando-se à frente dele) Afinal tu também não conheces o paradeiro dos teus pertences. AMADEU Não deste o jornal à Filipa para ela recortar? CLARA A Pipa só gosta do jornal de Domingo, Amadeu. Por ser a cores. AMADEU Ok. Leio as notícias de ontem. CLARA (ar sonhador) Apetecia-me ir dar uma volta... Até ao café, à falta de melhor. Detesto estar em casa quando a noite cai. Tenho a sensação de ficar amordaçada. (Um tempo.) Vens comigo, Amadeu? AMADEU Ainda não jantámos...!? CLARA Não tenho fome. AMADEU
E a Filipa? CLARA A Pipa adormeceu. Os anjos não se acordam. AMADEU Portanto: o amor e uma cabana. Comigo não dá, Clara, eu não nasci num presépio. Tenho fome, quero comer. Tenho sede, quero beber. Tenho tusa, quero foder. CLARA Tudo ao mesmo tempo, amor? AMADEU Não. Cada coisa em seu tempo. Por agora só quero jantar. CLARA Aquece a sopa enquanto eu procuro a chave. Já que não posso passear na rua, passeio dentro de casa. É um bocado limitado mas, olha Amadeu, quem fala para as paredes também consegue perder-se dentro de quatro paredes. (Fechando os olhos e tacteando.) Quente, morno, frio, gelado, outra vez morno, está a aquecer, está a aquecer a sopa... AMADEU (saindo de cena com um ar agastado) Tu és louca, Clara! CLARA Sou? Que bom... Do lado direito do palco, acende-se uma luz que revela a presença do juiz atrás da sua pequena tribuna. O JUIZ (tom sobranceiro) Doutora, a senhora passou claramente das marcas. O engenheiro Geada não vê a vossa filha há três meses e meio quando você própria estabeleceu connosco um calendário de visitas. PEDRO (entrando em cena de rompante) A minha filha está triste, debilitada, magra como um cão. Senhor doutor juiz, esta senhora que foi minha concubina nunca será uma mãe em condições. Aliás, a menina nasceu porque primeiro ela se esqueceu de tomar a pílula, depois não reparou que lhe faltava a menstruação e no fim esqueceu-se de mo contar. A minha filha começou a ter pai no dia em que eu tomei consciência de que a pobre não tinha mãe. E agora até o pai lhe roubaram. Nenhuma mulher entregue a si própria é capaz de dar um lar a uma criança. (Respirando fundo.) Isto é uma situação inadmissível: eu tenho casa, carro, emprego, férias marcadas, avós babados, telefone portátil, cartão de crédito, mulher-a-dias, internet, um gato siamês, três periquitos... Ela não tem onde cair morta... O JUIZ (interrompendo-o; tom de censura) Mas o engenheiro nem sempre respeita as horas marcadas... no dizer da doutora Clara. PEDRO (exaltado) A culpa é dela. Eu trabalho. Eu não vivo das esmolas dos meus pais. Eu não vivo da pensão de alimentos da minha filha. Eu posso ficar preso num engarrafamento. Ela tem a obrigação de me abrir a porta, de me atender o telefone, de esperar por mim... O JUIZ (interrompendo) E falando de pensão de alimentos... Quando foi a última vez que a depositou na conta da doutora Clara? PEDRO Eu nunca sei se a minha filha está morta ou viva. Não tenho que pagar por uma filha invisível!
O JUIZ (para Clara, severamente conciliador) A doutora Clara ouviu, não ouviu? CLARA (quase divertida) Sou toda ouvidos. O JUIZ Ou isto entra nos eixos, ou teremos de rever a questão do poder paternal à luz desta experiência tão negra. Black out. CLARA (no escuro) Então de que serve ser Clara na escuridão? De que serve uma mulher? Sem prazer é trapo. Sem trapos é apenas um buraco. Sem buraco não tem charme. Sem charme é um monte de carne. Sem carne não tem fraqueza. Sem fraqueza não tem força. Sem força é comida à sobremesa... Um cone de luz ilumina Clara. CLARA (cantando) Agora Que a beleza vai embora E que pesas cada hora Na balança da tristeza Agora que ficas presa Àquilo que não escolheste A tudo quanto perdeste E ao pouco que deitas fora. Agora que ninguém chora O tesouro que guardavas Feito de encantos incertos E de dourados desertos Onde sem poder reinavas. Agora que és mãe sem tripas Salão de poucas visitas Corredor de alguns amantes Já nada te magoa como dantes E mentes cada vez que não imitas. CARLOS (para Clara) Carla, Carla... (As luzes sobem de súbito, iluminando de novo o espaço cénico; Pedro e o Juiz desapareceram.) Onde é que arrumaste a minha gabardina bege? CLARA (com uma ponta de decepção) Carlos, eu não me chamo Carla. (Reflectindo.) Está no guarda-fato. Não gosto que os trapos andem espalhados pela casa. É um mau exemplo para a Pipa. CARLOS (sorrindo) Mas os brinquedos da catraia podem andar espalhados por toda a parte. (Tirando uma cabeça de boneca do bolso.) Olha. Encontrei isto na tua cama. CLARA Achas que eu sou uma má mãe?
Carlos não responde. Brinca com a cabeça de boneca como se fosse uma bola de malabarismo. CLARA (ansiosa) Nós somos uma família, não somos? CARLOS Na família da capoeira, temos a mãe galinha, a filha franganita, o avô galaró, a avó de cabidela... CLARA Falta o filho... CARLOS (sorrindo) Um ovo de Colombo? CLARA E o pai. CARLOS (sorrindo) Tiveste pouca sorte. Saiu-te um frango de aviário. CLARA (ansiosa) E tu Carlos? Não tens costela de pai? CARLOS (sorrindo) Tenho costela de Adão. (Mostrando a saliência no pescoço.) E a maçã da Eva entalada no papo. (Coloca a cabeça da boneca no topo da cabeça de Clara. Olhando-a nos olhos.) O guarda-fato tresanda a perfume. Prefiro que pendures a gabardina com as vassouras. A cabeça da boneca rola no chão. CLARA (muito séria) Tens medo de que lá na escola descubram? Tens vergonha de viver comigo? CARLOS (sorrindo) Eu estou de passagem, Carla. Estamos todos de passagem neste mundo. Foi o nosso primeiro assunto de conversa. CLARA (sarcástica) Isso era conversa de engate. Também me disseste que preferias o desejo frustrado à satisfação pequeno-burguesa. Contudo usas cuecas ao preço das camisas e camisas ao preço das gabardinas. Também me disseste que uma mulher com uma filha era a oportunidade real que se oferecia a um homem de assumir o papel de pai sem alimentar ilusões biológicas. Também me disseste que uma mãe solteira é o único parceiro decente para um homem que não se queira enforcar no cordão umbilical. Também me disseste que vias na Pipa um desafio à tua ambição mais profunda: ser um educador de primeira água e não um professor naufragado em águas de bacalhau. Porra! O que é que os homens não têm e nós temos? É esse nada que nós temos e eles não que faz de nós casa, que faz de nós torre de Babel? CLARA (sorrindo) Também disse que as palavras afastam os amantes... Carlos sai deixando Clara suspensa nestas palavras. CARLOS (voltando a entrar com a gabardina atirada para cima dos ombros) Sabes, Carla, a Filipa podia ter sido a mulher da minha vida. Carlos caminha pesadamente para fora de cena. Clara fica pregada ao chão.
O especialista a cuja consulta se assiste no início da peça entra pela esquerda, vai sentarse à mesa rectangular e acende o candeeiro-girafa. O ESPECIALISTA (chamando) Clara Tadeu. Doutora Clara Tadeu. É a sua vez. CLARA (aproximando-se, sonâmbula) Desculpe, estou tão habituada a esperar que me esqueço do tempo. É a minha vez. Era uma vez eu. Ainda se lembra de mim, da outra vez? Desta vez, estou pior. Cada vez pior. Às vezes, nem sei se sou eu que estou aqui a ouvir ou outra que eu mandei à minha frente a ver se o caminho não está minado. (Senta-se cautelosamente.) É confortável esta cadeira. Menos do que a sua, claro... A sua parece uma cadeira de executivo. Às vezes fico horas perdidas a olhar para as montras das lojas de mobiliário de escritório. Aquelas secretárias cheias de gavetas e os tampos muito lisos, sem pó... Acho que a geometria facilita imenso a vida. É nas curvas que uma pessoa se perde sempre. (Rindo despropositadamente.) Sabe o que eu descobri, senhor doutor? Hoje em dia, querer ser mãe é um comportamento desviante. Se voltássemos às hordas primitivas, talvez as coisas se compusessem, mas dá-me a impressão que já não será do meu tempo. Vou morrer sem conhecer uma era melhor. Paciência. A verdade é que não tenho alma de amazona. Não tenho queda para fazer famílias alternativas. (Suspirando.) Queria tanto ser beijada de outra maneira. Beijada por gratidão. De ser vista por uma boca que não me violasse, apenas me visitasse. Uma grande mulher tem esse direito, tem direito a esse afecto. Mas eu não sou uma grande mulher. Tenho apenas pena de mim... Claro que ninguém me agradece a pena que eu tenho... Ninguém sequer tem dó de quem tem pena. No entanto, sabe uma coisa? Pensei muito naquilo do ciúme. No dia em que deixar mesmo de sentir ciúme fecha-se o espaço da esperança. É esse ar, rarefeito, essa falta de ar que me obriga a arder por dentro e me faz leve... fagulha... Como é possível eu não incendiar os outros corações? O ESPECIALISTA Doutora Clara, a medicação que lhe receitei não vale de nada se a senhora não se ajudar a si própria. (Olhando fixamente para Clara.) A quantos apelos positivos tem respondido? CLARA A todos. A minha vida está escancarada. A minha casa parece uma corrente de ar. Até a Pipa estranha tanta agitação. Ela é muito querida. Solidária. Faz fitas para comer... quase não come... porque, no fundo, sabe que eu odeio cozinhar. Ficamos ambas a olhar para a sopa sem apetite. (Suspiro.) Não nasceu por acaso. É uma irmã. Eu pari uma irmã. Leio na curva da boca dela. Beicinho. Beicinho. Boquinha apertada, cuzinho de galinha. Quando chora, não posso ralhar. São as minhas lágrimas naqueles olhos pequenos porque (aponta) nestes estão quase esgotadas. O ESPECIALISTA Doutora Clara, a sua filha não pode carregar com os seus nojos e os seus males. CLARA Entre nós não há barreiras. (Abanando a cabeça.) Ok, ok, já sei... precisa dum pai. Andamos a trabalhar no assunto. Apalpamos terrenos. Escolhemos juntas. Eu conto-lhe tudo. É tudo claro entre nós. Faço isso para que a minha história não volte a acontecer. O ESPECIALISTA Doutora Clara, a sua filha... um bebé... a carregar os seus lutos... não pode ser. CLARA (delirante) Ai não? Isso é que havemos de ver. Passe muito bem, senhor especialista. A luz que iluminava a mesa rectangular apaga-se abruptamente no momento em que começam a ouvir-se violentas pancadas na porta-cenário. O POLÍCIA (off) Doutora Clara Tadeu! Doutora Clara Tadeu! Sabemos que aí está.
FILIPA (off) Os cavalos a correr As meninas a aprender Qual será a mais bonita Que se vai esconder? O POLÍCIA (off) Doutora Clara Tadeu, o seu carro está estacionado à porta. Mal estacionado, aliás. O seu vizinho assegurou-me que a senhora está em casa. Tenho ordens do tribunal para levar a sua filha ao engenheiro Geada que parte para férias hoje mesmo ao fim da tarde. A bem ou a mal. Silêncio. Escuridão. O POLÍCIA (off) Com a polícia não se brinca ao gato e ao rato. Silêncio. Escuridão. O POLÍCIA (off) Não sei o que me impede de arrombar a porta. Olhe que para a polícia não existem portas. A polícia entra em toda a parte. Silêncio. Clara acende um cigarro cuja ponta brilha na escuridão. O POLÍCIA (off) Só teme a polícia quem tem um peso na consciência. Quem não deve não teme. Clara fuma em silêncio. Engasga-se. Tosse convulsivamente. O POLÍCIA (off) A gente está aqui para ajudar. Mas precisamos de colaboração. Colabore. Ajude-se a si própria, doutora Clara... Clara não reage. O POLÍCIA (off) A sua filha vai para as Canárias. Volta de lá toda queimadinha. Quem me dera ter um pai que me levasse para as ilhas desertas. São ilhas desertas, as Canárias, não são? Só lá há hotéis, restaurantes, bares e discotecas. Não há criança no mundo que não goste de ilhas desertas. E a senhora também tira umas férias à custa das ilhas... A doutora Clara ainda é nova. Ficar livre durante uns dias até é bom para quem precisa de refazer a vida. Clara começa a apanhar detritos do chão (como no início da peça) e a deitá-los para dentro dum saco de lixo preto. O POLÍCIA (off) Doutora Clara, a gente volta. A gente não pode deixar assim as pessoas em paz. Ainda há leis. Ainda há forças da ordem. A sua filha não pode escapar às forças da ordem, porque a gente tem mesmo uma ordem do tribunal. Ouviu? A gente volta. Com um serralheiro. Entende? Foi só para não estragar a sua porta. Passos do polícia a afastar-se. A luz sobe. Clara está a servir café a um homem de meiaidade que se esforça por tratá-la com alguma formalidade. CLARA O que está a acontecer não é inesperado. (Suspira.) Sina de mulher. Fui bio-agradável, sou biodegradante. (Delirante.) Bio-degradável? Bio-degradada? (Ri.) O ADVOGADO (meio assustado)
Que exagero! A doutora Clara está... tem a vida inteira à sua frente. Só precisa de meter um pouco de ordem na sua cabeça. Aceitar. Aceitar que o tribunal a ajude a construir uma relação saudável com o engenheiro Geada. Para si e para a sua filha. Às vezes é preciso obedecer. CLARA A minha filha não tem pai. O pai biológico foi aquele... por acaso... Podia ter sido o senhor doutor... se nos tivéssemos conhecido num sítio com muito álcool e pouca luz. (Delirante.) Não. Nunca diga que dessa água não beberá. Por enquanto não bebeu. Certo. Mas temos uma vida inteira à nossa frente, não temos...? O ADVOGADO (tossindo) Sim, claro... Isto é, o meu tempo está bastante contado. (Tossindo.) Doutora Clara, eu vim a sua casa... não costumo fazer... abrir excepções... o seu pai pediu-me... encarecidamente... que lhe deitasse uma mão. Eu dou-lhe a mão e a senhora pega no braço todo. (Tossindo enfaticamente.) Ora, no fundo, trata-se apenas de representar um papel. Não o seu papel. No tribunal as pessoas não oferecem o flanco. Portanto, é um outro papel, que a senhora representará... com a maior naturalidade. No tribunal, não é a doutora Clara que queremos ver. É a mãe, adulta... abandonada mas adulta... que se propõe educar a filha, em conformidade com o direito que a natureza lhe confere. E, sobretudo, em conformidade com as regras que a sociedade definiu para estes casos. Mãe há só uma, porém não vamos excluir o pai. Porque não queremos fazer da Filipa uma órfã, uma excluída. É natural que lhe custe partilhar a filha com um homem que já não partilha a sua vida. Vamos tentar ultrapassar essa repugnância, fazer de conta que o passado não conta. Estamos de acordo, não estamos? É como comer uma sopa de que não se gosta porque se faz cerimónia à mesa de estranhos... Seja como for, no pé em que as coisas estão, a senhora está de pés e mãos atadas. Se continuar a desobedecer à autoridade, tiram-lhe a filha. Se teimar em fazer as fracas figuras destes últimos tempos, não será difícil dá-la como incapaz, inapta a exercer o poder paternal. Já que não tem juízo, tenha vergonha. CLARA (rindo) Vergonha de quê? O ADVOGADO (duro) Vergonha por si a baixo, caramba! Uma mulher que não pode ver um homem à frente não deve andar na rua com uma criança pela mão. CLARA (delirante) Quem lhe disse que eu ando na rua com a Pipa? Ela só sai de casa para o infantário. E nunca vamos a pé. O ADVOGADO Era uma força de expressão. CLARA Pois, você tem direito à força da expressão enquanto eu... nem à fraca figura. (cantando) Fraca figura Corpo ausente Como a fruta madura A gente cai De repente. E até a dor é diferente Quando se rola no chão Do ódio cospe a semente Quem não teme a podridão. Vê-los
Metê-los na cama a todos Com maus modos E boas intenções Aos apalpões... Ir para a cama com eles Ser reles puta E sem dar luta Ficar à escuta Do outro lado Do passado. Fraca carne Desalmada Como a cadela rafeira A gente morde Por nada E até de dono trocamos Cada vez que o cão nos ladra Todas as portas fechamos À espera que alguém nos abra. Tê-los Comê-los, chorar por mais Temperados Com molhos lacrimais Muito salgados... Dar-lhes a cona e o tecto Sem esse afecto Fatal Pois todo o mal Sentimental Vem da ilusão De haver paixão Num mundo cão. Enquanto Clara canta, o advogado, atónito, compõe a gravata e abana a cabeça com um tique de reprovação. Depois, enfia uma toga e vai colocar-se atrás da pequena tribuna onde desempenhará o papel de juiz. Mal a canção acaba, a luz da tribuna acende-se e Pedro entra em cena, com passadas enérgicas. PEDRO A Carla é uma puta? CLARA (virando-se para o juiz) Quem é a Carla? O JUIZ Não tenho conhecimento... CLARA (virando-se para Pedro) Carla? Já arranjaste outra amazia, meu cabrão? PEDRO (irado) O doutor juiz deixa esta mulher... O JUIZ Engenheiro Geada, eu ainda não dei a palavra a ninguém.
Pedro compõe um ar digno. O JUIZ A doutora Clara parece-me bastante bem colocada para falar de amantes. Ao que sabemos, eles não têm parança em sua casa. PEDRO (abanando a cabeça com um tique de reprovação) Ela muda de homem como quem muda de collants. CLARA E daí? Uma pessoa muda até encontrar a marca certa e o parceiro certo. PEDRO Tu passaste todas as marcas, minha puta! CLARA (girando sobre si própria como um pião) Passo, passei, passarei. Quem quer amar é obrigado a passar das marcas. A gente só fala de amor, não é? Só de amor. Desde o início. Desde que o árbitro apitou e o jogo começou. Desde que o raio da maçã rolou da árvore. E foi parar aos pés de quem? A mão não vale, tens de agarrar a bola com os dentes. Mas a maçã era enorme, precisava de ser partilhada. Dividida entre irmãos. No início, nós éramos irmãos. E tínhamos fome. (A luz da tribuna apaga-se. Pedro começa a despir-se.) Quem havia de dizer que aquela fome se matava com sopa? Ai, doutor juiz, o Pê tem a sopa da mãe encravada na garganta. Sopa de Adão com Evas daninhas a boiar. Caldo, caldo, caldo entornado. É um caudal de amor que rebenta com tudo. Não sente os pés molhados? Inútil resistir, remar contra o caudal do amor que há-de levar tudo à frente. Repor a verdade. A irmandade. O calendário da fraternidade. (Pedro está agora completamente nu, chama-se José e obriga Clara a parar o movimento giratório.) Maré: baixa. JOSÉ Vamos pecar, minha linda? CLARA Pecar? JOSÉ (acariciando-lhe o cabelo) Pecar. CLARA Por excesso ou por defeito? JOSÉ Enquanto é tempo. Eu não sou um anjo. CLARA Pois não, José, pois não. Que horas são? JOSÉ Tarde. CLARA Não ouves chorar no quarto? JOSÉ A menina está com o pai. CLARA (espantada) Está? JOSÉ És livre, Clara, são as tuas férias... Podemos ficar na cama a manhã inteira. CLARA Já é de manhã? JOSÉ (agarrando-a pela cintura)
Quase. Não ouves este silêncio? CLARA O meu silêncio é diferente, José. Tem um choro lá ao fundo. E, quando quero ouvir, deixo de ouvir. Eu sempre fui assim. JOSÉ E não gostavas de mudar? CLARA Claro. Vamos mudar para o quarto da Pipa. A cama dela cheira a chichi e a sabonete. Não gostas do cheiro a sujo e a lavado? JOSÉ Não sei se sei de que é que estás a falar. CLARA (arrogante) Coitado, nem nisso podes ajudar-me. Enfim, é natural, hoje tudo se paga caro e até para ser ouvido são precisos especialistas. JOSÉ Tu não és obrigada a portar-te como uma louca, Clara. CLARA (revirando os olhos) Não sou? (Um tempo. Rosnando.) Não! (Um tempo.) Tenho a Pipa à minha espera. Está bem treinada. Sabe esperar. Todas nós sabemos de cor a cor da esperança. (Ri à gargalhada.) É como um medicamento que deixa de fazer efeito. E quando o medicamento deixa de fazer efeito, a morte deixa de meter medo. (Aclarando a voz como se fosse sentenciar algo de muito razoável.) Olha, a Pipa já não se assusta com nada: gritos, louça quebrada, pancadaria, portas a bater, carros a arrancar no coração da noite, explosões... nada. Está bem treinada. Não há nada do que eu faço que ela não possa fazer. JOSÉ A tua filha está longe. Já choraste baba e ranho, noites a fio. Não queres agora ver o lado bom de a teres perdido? És uma mulher sem compromissos, sem correntes. Sem família... haverá melhor do que isso? Deixa o filho da puta curtir as noites em claro e enxotar as amantes. CLARA Tu não conheces a Pipa, não sabes o que eu perdi. JOSÉ Mais cedo ou mais tarde, ela batia as asas. CLARA Antes disso, cortava-lhas eu, se fosse preciso. Cada pessoa deve zelar pelos tesouros que tem à sua guarda... Nem que tenha de os enterrar. JOSÉ (com um suspiro profundo) Pronto, querida, pronto. Se queres brincar aos cadáveres enterrados no quintal, brinca à vontade. Eu não tenho idade para isso. Nem feitio. Não consigo velar uma criança que não existe. (Começa a dirigir-se para fora de cena.) Que não existe. CLARA (para si mesma) Pobre José! Mal ele sabe que é menos real do que um quadro na parede. É menos real do que a parede. (José saiu de cena.) E nem nas paredes se pode ter confiança. Eu não. Não confio numa parede que eu não tenha construído. Não confio numa coisa que não seja da minha mão. (Um tempo. Voz infantil.) Mamã. Mamã o que é que caçamos esta noite? (Um tempo. Berrando.) Minha mão! Estás de folga! Nada a fazer. Ouviste? Nada a fazer. (Canta, olhando insistentemente para a mão como se ela fosse um espelho.) Eu era outra era outra hora
Em má hora nasceu o que em mim mora E a mão morta que bateu à minha porta Era mão cheia de nada Mão dada Elo fraco da cadeia. Maldita sejas tu E o mundo que te pariu Maldito seja o teu pai Que um dia se distraiu E a mãe que te deu a mama E os homens que tiveste na cama Maldita seja a bastarda Em noite parda parida De quantos gatos lambida Maldita seja ela Tua trela Teu degredo Filha amada do teu medo Malditos sejam Seu sono felino Seu riso cristalino Seu choro infinito E o eco do seu primeiro grito. Malditos sejam os olhos que te olharam As bocas que te abocanharam A terra que pisaste O ar que respiraste Maldito seja o céu que te escorraça Maldito seja o tempo que por ti já não passa. Caiam de podres as casas Apodreçam as famílias Entre os destroços das mobílias E os lustres a cuspirem brasas Morram os bem-aventurados E os homens de boa vontade Morram os filhos desejados E as filhas sem paternidade. Morram da cinta para baixo Morram da cinta para cima Morra o monstro cabisbaixo E morra a linda menina. Desabem torres e montes Soltem-se ventos e pragas Sequem os mares e as fontes Que é tempo das vacas magras. Repetindo indefinidamente o último verso, Clara passa a mão pela testa e, embora dê sinais de grande lassidão, recomeça a apanhar os detritos esparsos que juncam o solo e ainda restam do início da peça. Quando o chão fica limpo, contempla o resultado com um ar satisfeito, sai de cena por uns instantes. Volta com um copo de água na mão direita e um frasco de medicamento na mão esquerda. Senta-se no chão, pousa o copo à sua frente e, quase ritualmente, abre o frasco. Serena, engole todo o conteúdo do recipiente, comprimido a comprimido, bebendo metodicamente um
pouco de água de vez em quando para ajudar à deglutição. Pedro e o Advogado entram em palco, vindos do lado esquerdo e do lado direito respectivamente, e dirigem-se para a boca de cena onde se cruzam e se cumprimentam. PEDRO Doutor Amílcar... bons olhos o vejam. O ADVOGADO O engenheiro sabe como são as nossas vidas... Às vezes nem há tempo para perceber se estamos vivos. Clara ergue-se e vai, cambaleante, fechar o complicado ferrolho da "porta-cenário". Tomada de violentas dores de barriga, deixa-se cair numa convulsão e rola com as mãos agarradas ao abdómen. Pedro e o Advogado continuam a conversar como se estivessem alhures. PEDRO Olhe, eu disso não me queixo. Desde que me tomei pai solteiro, a minha vida serenou muito. A Pipa é o meu braço direito. Primeiro, ajuda-me a seduzir as namoradas, depois ajuda-me a escolhê-las e no fim faz finca-pé para ficarmos sozinhos um com o outro. O ADVOGADO O engenheiro não tem notícias da mãe da Filipa? PEDRO Essa senhora para mim morreu. Clara enfia os dedos na boca para tentar vomitar os comprimidos. Vómito curto. Gemido de bicho a sofrer, quase agónico. O ADVOGADO Ela também precisava de ajuda. Como de pão para a boca. PEDRO Que eu saiba, nunca lhe faltou nada. Clara consegue a custo voltar a pôr-se de pé e vai agarrar o telefone que está algures pousado no chão. O telefone soa sempre ocupado. O ADVOGADO É estranho. Costumava ter notícias da Clarinha pelos pais, mas ultimamente... PEDRO Deixe lá, doutor, ela não se perde. E, aqui entre nós que a conhecemos de ginjeira, se por acaso se perdesse, não se perdia grande coisa... Pedro e o Advogado apertam as mãos, trocando sorrisos cúmplices, despedem-se e saem de cena cada um pelo seu lado. Clara agoniza em palco durante cinco longos minutos. FIM