A INVERSÃO DO SENTIDO DA HISTÓRIA Peter Greenaway começou por ser conhecido dentro dum ciclo restrito de cinéfilos como cineasta «experimental». O Festival de Vila do Conde programou os primeiros filmes da autoria do cineasta britânico em que a sua estética se revela e desenvolve rapidamente, tal como a iremos posteriormente redescobrir de obra para obra. A estética de Greenaway caracteriza-se logo à partida por uma atitude irónica na qual o legado de uma certa tradição é simultaneamente reivindicado, reinvestido — quer se trate da simetria dos enquadramentos compostos pictoricamente, herdada do documentarismo inglês (os filmes de ficção aprofundarão aliás a referência à pintura), ou da montagem rítmica baseada nos tempos fortes duma frase melódica clássica, herdada da mesma escola de cineastas documentais (e os filmes de ficção alargarão esse parti-pris à própria encenação concebida como coreografia, com os movimentos no espaço a corresponder aos andamentos melódicos) — e pervertido, isto é desfasado do seu objecto — com particular relevo para a função do comentário, desde estatísticas do «suicídio» na África do Sul projectadas sobre fundo de paisagem campestres inglesa, em WINDOWS, à «estruturação» do mundo pelo imaginário Luper, em VERTICAL FEATURES REMAKE, passando pela epopeia gaélica transportada pelos ribeiros de WATER WRACKETS —. O verbal introduz a ficção no seio das imagens, mas é contudo por sua vez objectivado, reduzido a uma presença gráfica e logo dado como índice de manipulação: as narrativas e conversas de DEAR PHONE aparecem escritas e são por conseguinte lidas, não podendo pois soar naturais; a escrita adquire uma presença essencialmente gráfica; as imagens suscitam o verbal mas o verbal não passa duma imagem. Donde uma distanciação particular, imposta ao espectador, que se me afigura ser a característica constante dos filmes de Greenaway. As obras de ficção — a partir de O CONTRATO (cf. «Elogio Incondicional» in A Grande Ilusão nº 2/3) — retomam a estrutura repetitiva em torno de dois elementos (acções) paralelas, que variam cada qual até ao esgotamento das séries: desenho da propriedade, sob oito ângulos, e interlúdios de fornicação com as proprietárias (O CONTRATO); numeração até 100 e afogamentos dos maridos (MARIDOS À ÁGUA); traição do marido e refeição, esta última enquanto modo de compensação (CÓLICAS DUM ARQUITECTO) ou cerimónia de humilhação (O COZINHEIRO, O LADRÃO, A SUA MULHER E O AMANTE DELA) que em ambos os casos culminam no sacrifício, etc. A evolução que se nota em relação aos primeiros filmes advém, por um lado, da proliferação dos elementos no enquadramento, por outro, de uma encenação «total» na qual os movimentos de câmara, a pose dos actores — que entram na composição sem representarem propriamente —, a mudança de iluminação, a frase musical e o andamento ficcional devem aderir uns aos outros, em simultâneo, para juntos formarem uma unidade: o plano. Pouco a pouco, Greenaway elabora algo definível como um cinema barroco, porventura rococó, que na sua profusão esplêndida e agressiva se opõe a todos os realismos empobrecedores. S.