PONTO DE INTERROGAÇÃO A imagem do Cairo que a literatura popular de bolso (tipo romance policial) mais massivamente divulgou entre nós foi decerto a da sua monumental estação de caminho de ferro, atulhada de viajantes, mercadorias, ferroviários, pedintes, vendedores ambulantes e exércitos de carregadores, emblema de uma metrópole cosmopolita e prenha de contradições gritantes. Não deixa pois de ser curioso que o grande mestre do cinema egípcio parta deste mesmo espaço (famoso pelo exótico fervilhar e pulular de díspares humanidades) para construir o seu quase "huis clos" já que, muito embora a estação valha simbolicamente como lugar de passagem, cruzamento (e até encruzilhada), a ficção de Chahine documenta sobretudo o quotidiano dos que lá ficam pois ali trabalham e vivem (pelo menos desde que o êxodo rural os obrigou a trocar a aldeia natal pela grande urbe). Toda a tensão entre permanência e mudança ganha neste cenário uma dimensão imediatamente alegórica posto que as sementes da diferença vêm de fora e germinam no terreno mais propício à verdadeira transfiguração: as mulheres (no "cartaz" encabeçadas pela bela Hanouna) que a sociedade muçulmana confina à vida doméstica mas que aspiram à via e à vida pública, primeiro passo para a afirmação política das suas reivindicações enquanto grupo oprimido. Ao protesto vivo encarnado pelo bando de vendedoras clandestinas, junta-se o coro ofendido dos carregadores que se organizam em sindicato para lutarem contra aqueles que pretendem controlar e condicionar abusivamente o exercício da profissão nas plataformas — de resto, a vertente "coral" é porventura uma das mais interessantes nesta obra de Chahine. Assim, o filme não marcará tanto como a patética história de um voyeur (não obstante a personagem de Kenaoui, maravilhosamente interpretada pelo próprio realizador; nos prender a todos os fios da teia ficcional) mas antes como duplo drama de uma sociedade que engendra um caudaloso lumpen proletariado, por um lado, e o terrível sacrifício dos elos mais fracos nas conturbadas épocas de mudança, por outro. Ora, as fantasias do coxo Kenaoui nada têm de chocante ou escandaloso, sendo pelo contrário comoventes (pensamos na figura do sequestrador desempenhada por António Banderas em ATA-ME de Almodovar, cujos supremos sonhos e exigências consistiam em casar, ter filhos e levar uma vida normal), enquanto as frívolas atitudes da feliz Hanouna, de todos amada ou invejada, parecem, no mínimo, cruéis. Com efeito, entre o débil, doentio, libidinoso ardina de 2ª classe e a vitalidade transbordante do casal de "free lancers" (vendedora/carregador) vinga, como seria de esperar, a lei da selva e do mais forte. Pelo que o desenlace do filme constitui um falso happy end, num tom de amargura genialmente reforçado graças ao derradeiro plano: a namorada condenada à espera e ao silêncio que Chahine transforma em figura de proa da estação — à maneira do que Jean Renoir fizera em UNE PARTIE DE CAMPAGNE com a imagem, entre todas dilacerante, da jovem esposa a remar de pé, contra a corrente da infelicidade. Essa figura feminina que remata o filme fá-lo com a força e a incerteza dum ponto de interrogação. Regina Guimarães