Por um triz se morre

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POR UM TRIZ SE MORRE O título do filme de Nanni Moretti — QUERIDO DIÁRIO — remete desde logo para uma das vertentes temáticas deste seu surpreendente trabalho: um diário íntimo decorre da consciência do peso e da leveza dos dias, da sua contagem decrescente, da necessidade de lhes dar sentido e afecto através de um registo que contém o encanto do segredo mas também a apetência de tornar público um discurso subjectivo elaborado na esfera do privado. O diário, como a carta, é, para além desta óbvia ambiguidade, um género «à part entière» e a impressão de semi-caos que o filme de Moretti produz resulta porventura de não se tratar de um género dominante, arrogante. A «intimidade» proposta pelo género «diário» implica à partida que a obra se dirige não a uma elite mas a um público de eleição, na acepção de afinidade electiva, ou seja, aos virtuais amigos de Nanni Moretti que o autor, por evidentes limitações espacio-temporais, nunca virá a encontrar de outro modo. De resto, a questão central colocada pelo filme parece ser a da comunicação, ou melhor, das novas formas de incomunicação, que vão da inépcia pedante do discurso de uma certa crítica (no campo do cinema e alhures) à incapacidade de escuta dos terapeutas (que conduz à impossibilidade de diagnóstico médico), passando pelo efeito de clausura observado nos especialistas (uma «vida» dedicada ao estudo de James Joyce) e nos toxicodependentes de televisão (claramente aparentados com os mais sisudos «especialistas») ou ainda nos anarquistas-eremitas (filiados na corrente do regresso ao «natural»), sem esquecer a maravilhosa categoria dos pais de filhos únicos (completamente impotentes na relação parental porque demasiado preocupados com abstractos modelos de «pedagogia»). Toda esta galeria de tipos mais ou menos molierescos surge contextualizada no berlusconiano reino do audiovisual, em que a mediatização do desejo é tão intensa que a personagem do mal-amado presidente da câmara de Stromboli, ansioso por contratar Storaro e Morricone para transformar a sua ilha num produto audiovisual com poentes e efeitos musicais dignos duma superprodução hollywoodiana, não está tão longe assim dos nossos lusitanos vereadores municipais que pretendem dotar as cidades do interior de fontes luminosas e imponentes rotundas. Em contrapartida, o espontâneo impulso que leva o protagonista Moretti a querer cantar e dançar ou filmar apenas casas e ruas romanas (já que é tão difícil «tocar» o coração das pessoas) consegue revelar-se despropositado pois não obedece a uma sinalética de comportamentos convencionais. Porém, graças ao cinema, alguns desejos de Moretti são magicamente realizados no ecrã: ele encontra na rua a sua heroína de FLASHDANCE e junta-se ao número do conjunto de música ligeira, saltando para o palco com desenvoltura. Face à barbárie do mundo dominado pelo terrorismo dos media e pelos códigos que os media divulgam, o cineasta experimenta um retorno a canais de comunicação menos largos, a formas de mensagem menos massificadas (para evitar «engarrafamentos») e ganha a aposta visto que, neste caso, ninguém haverá de redarguir que a fita passou para salas às moscas. É que, embora QUERIDO DIÁRIO nos apresente uma série de episódios francamente cómicos na sua maioria, a terceira parte deixa-nos o travo amargo da constatação que por um. triz se morre numa sociedade em que a comunicação se tornou a primeira fonte de produção de riqueza e onde perversamente se perdeu a capacidade de ouvir, ver e compreender. Amputados que nos encontramos desta vocação, somos obrigados a pôr em causa os próprios fundamentos de uma forma de expressão baseada na imagem e no som. Não admira que Nanni Moretti inclua nas suas deambulações uma romagem ao monumento degradado a Pier Paolo Pasolini, cineasta, que curiosamente a A Grande Ilusão modestamente tenta homenagear neste número. Convocar a vitalidade de Pasolini, a urgência da sua obra moldada sob o signo das cinzas e do fénix adquire pleno significado num filme que namora e roça os motes e as estruturas da epopeia, encenando a reminiscência das viagens de Ulisses e da descida ao inferno de Dante. R. G.


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