Na sexta-feira passada vim a este mesmo cinema ver pela segunda vez o filme de Manoel de Oliveira. Tendo sido convidada dizer algumas palavras de apresentação e dado que já "conhecia" o filme, era minha intenção tirar umas notas durante a sessão. Mas, como sempre acontece com os filmes de Oliveira, o segundo visionamente foi ainda mais emocionante do que o primeiro. Deixei-me enredar nas imagens e nos sons e... adeus apontamentos sarrabiscados no escuro. E aqui estou a falar, em nome das minhas emoções. Que me perdoe o mestre. O PORTO DA MINHA INFÂNCIA acaba com a imagem de um farol. Falou-se de uma auto-referência ao DOURO FAINA FLUVIAL, de resto explicitamente citado no filme, e parece-me certo que a intenção lá esteja, como está a música de Emanuel Nunes, autor da mais recente banda sonora do célebre primeiro filme. Contudo, mais do que essa continuidade no rodapé da obra, parece-me que o farol contém aquele valor de duplicidade, tão caro a Oliveira, que faz com que cada coisa seja, nela própria, dual. Antagónica. O farol é, enquanto sinalizador da terra firme, instrumento de segurança. Mas também é emblema da consciência do perigo (se não fosse arriscado abordar uma costa, o farol de nada serviria). O farol emite um feixe de luz, exactamente como o projector de cinema. E se colocarmos em paralelo os dois objectos, tendo em mente o que anteriormente se lembrou, logo nos saltará à vista a profunda inquietude do gesto do cineasta ao oferecer-nos esta imagem final. Como o farol guia quem pelo mar se encontra e se perde, assim o projector emite um feixe que tanto exprime o seguro recorte de uma imagem pensante, como pode exprimir a incerteza de um sinal de alarme. O que nos leva a outras citações. As mais vizinhas, de escritores do Porto, como Camilo, Garrett ou Nobre. Valores tão seguros quanto inquietos, de cujos livros se filma a lombada. E eles parecem velar por nós no seu altar, contudo infinitamente dispostos a agitar as nossas consciências de cidadãos do Porto e do Mundo. Mas leva-nos igualmente à citação maior, do poema de Casais Monteiro sobre a Europa, verdadeiro grito de protesto e esperança, lançado das profundezas de um século que exilou as consciências e ressuscitou o mais abjecto obscurantismo. Abro um parêntese para dizer que a Europa sempre foi tema de poetas, o primeiro dos quais Victor Hugo e que, de alguma maneira, também é isso que o cineasta nos recorda. O texto de Casais Monteiro, um par de Oliveira, que neste filme lhe dá fraternalmente a mão, faz por assim dizer "pendant" à balada de Guerra Junqueiro cantada pela voz imemorial Dona Isabel Oliveira. Entre o absolutamente pessoal e o decididamente universal se constrói este documentário que, apesar de produzido no âmbito de 2001 Capital da Cultura, em nada cede nem à pompa bacôca, nem ao inferno das circunstâncias. Aliás, será de realçar que Oliveira faz questão de clarificar a sua distância, introduzindo a sequência irónica de homenagem a Paz dos Reis em que as costureirinhas protegidas de Santa Catarina são substituídas pelos operários que, infelizmente ficarão para história da cidade como sendo de Santa Engrácia. Não resisto a terminar revelando o imenso ciúme que senti da Dona Isabel Oliveira ao ver este filme. Qundo um homem-artista põe na voz da mulher com quem vive os acordes que evocam a sua infância, é um pouco como se dissesse que ambos se confundem nesse tempo de eternidade que é a meninice. Feliz essa mulher... Obrigada, Manoel por nos falar assim do amor. Por nos falar assim do medo e da perda, e de tudo quanto é gerador de sossego e desassossego, de tudo quanto é intransmissível e, por isso mesmo, nos obriga a escrever o mundo. Regina Guimarães