Próxima paragem

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PRÓXIMA PARAGEM Surgido cronologicamente como um contraponto útil à BELA IMPERTINENTE de Rivette, O SOL DO MARMELEIRO de Victor Erice caiu porém dum céu bem diferente. Eivado de pedantismo esteto-parisiense (do género «toma lá, se não percebes, limpa ao cu»), destituído duma desejável reflexão sobre a relação entre o artista e o seu modelo (ou, quanto mais não fosse, entre o cineasta e a sua actriz), o filme de Rivette dava a ver aos «maus-entendedores» como é violento, sensual e misterioso aquilo que à maioria dos não-artistas permanece vedado, ou seja os abismos da criação. Nenhum chavão me parece suficiente para descrever os lugares-comuns de uma fita que consagra uma boa metade da sua duração ao aspecto mais duvidoso da encenação, a saber: as poses de E. Béart, num tempo que se distende até sugerir a cadência do real, destinadas a servir de inspiração à mão dum pintor contratado para os esboços mas que a câmara não revela, contudo supostamente electrizadoras do génio de M. Piccoli que se limita a pintar a macaca(da); tudo isto se passa entre silêncios e suspiros realistas, na intimidade dum huis-clos onde a câmara, sempre bem vinda, penetrou para grande gáudio de algum voyeur menos sonolento. O trabalho de mistificação de Rivette é perfeito, na medida em que foi levado a sério por especta dores e críticos. Mas o discurso sobre o retrato é nulo, sobre a pintura reaccionário. Erice evita desde logo o obstáculo maior que Rivette galgara com a desenvoltura de um lorde inglês em cima do seu cavalo (a imagem foi, acreditem, escolhida a dedo) ao optar por um modelo vegetal — o marmeleiro —, objectal — comprado num horto qualquer pelo pintor — e passível de uma modificação ao ritmo das estações (coisa que não acontece com a escultural E. Béart). Porque é de facto difícil tecer um discurso fílmico coerente sobre pintores e mulheres, maridos e amantes, pintura e cinema, arte e carreira nas escassas duas horas e tal de que um filme, pouco mais do que padrão, dispõe. O trabalho do pintor em O SOL DO MARMELEIRO é mostrado em paralelo com o desenrolar das obras na casa, com o trabalho manual dos operários que se cruzam com o artista, sem hostilidade mas também sem que se estabeleça comunicação. O artista pinta no quintal enquanto os operários labutam dentro de casa. O primeiro é pois «expulso» do espaço íntimo — quedar-se-á lá fora contra ventos, chuvas e invernias — para consagrar os seus dias ao objecto no qual cristaliza toda a sua energia de criação/reprodução. Quanto mais se torna evidente o exílio (representado pelas intempéries) em relação ao abrigo do lar conotado com o isolamento, mais fica patente o naufrágio numa interioridade de que o vegetal-modelo se demarca, evoluindo exasperantemente, mudando de contornos e de cor conforme as condições climáticas, escapando à pincelada minuciosa, esquivando-se em traiçoeiros jogos de luz e de sombra, furtandose às referências e medições que o pintor estabelecera. Nesta desesperada corrida contra o tempo — metáfora maior da forma — o criador sai derrotado mas não perdedor, porque ganhou a plena fruição da superfície dos dias através do suporte-tela. Plenitude tão-só partilhada em sublime tagarelice com um amigo que vem juntar-se a ele e perder-se também, em raros momentos de contemplação do arbusto depenado, num ambiente de subúrbio Zen, onde se constrói a lucidez da não-obra enquanto única concretização possível da obra-prima. Entretanto as outras obras de cimento e gesso acabaram, o artista regressou ao lar restaurado e o filme espalha à nossa volta uma deliciosa sensação de desconforto, verdadeira expressão da vida, quer sejamos artistas ou não. Todos os meios terão sido insuficientes (Erice recorre mesmo ao registo vídeo) para a realização deste poema visual, vindo da grande Espanha do picaresco e longe das movidas visto que proclama a necessidade de parar o tempo para não parar no tempo. R. G.


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