NEM NEM Poder-se-ia definir Charles Cros como um homem dos sete instrumentos. Nem exclusivamente cientista – mas genial inventor da reprodução das cores em tricromia, da gravação dos sons, que propôs melhoramentos da tecnologia do telégrafo e se preocupou com a resolução do problema das comunicações interplanetárias – nem exclusivamente poeta – experimentador no plano formal do poema em prosa antes mesmo de ter conhecido Rimbaud, autor de versos como «Amiga luminosa e morena», que Eluard considerava um dos mais belos da língua francesa, ou «Rosas, rosas, rosas» em que a pujança poética emana da simples nomeação. Enquanto poeta, nem meteoro – como Isidore Ducasse, Tristan Corbière, Alfred Jarry ou Arthur Rimbaud – nem pilar institucional – como Stéphane Mallarmé, Théophile Gautier, Théodore de Banville, Paul Verlaine e, claro está, Victor Hugo. Em vida foi conhecido como mistificador (fumiste), humorista e galhofeiro, participante em todos os clubes de insubmissos (insoumis) da boémia parisiense da terceira república: os «zutistes» 1, os «hirsutos», os «sujeitos reles»2, os «hidropatas», etc. O amigo Verlaine não o inclui na segunda edição dos «Poetas malditos», dedicar-lhe-á tão-só uma das suas monografias da série «Hommes d’aujourd’hui»3. O seu reconhecimento póstumo vem sobretudo de uma querela de patente: Cros patenteia a descrição do seu «paleofone» na academia das ciências antes de Edison construir o seu «gramofone», mas o americano fabrica o instrumento e difunde-o no mundo inteiro antes de Cros ter podido aperfeiçoar o seu protótipo. Assim, a «academia Charles Cros», criada a seguir à segunda guerra mundial, recompensa anualmente a melhor gravação musical em França, nas categorias «jazz», «música clássica» e «canção». Poder-se-ia dizer que, em termos de conhecimento e reconhecimento público, toda a obra de Charles Cros se reduz a um único poema: Le hareng saur4. Foi por tê-lo ouvido uma vez recitar esses versos que Coquelin cadet5 propôs ao poeta que lhe escrevesse «monólogos». E foi, muito depois da sua morte, a inclusão desse poema na «Antologia do humor negro» de André Breton – que todavia o não citara nos «manifestos» – que formalizou a sua integração no panteão dos poetas pré-surrealistas. Cros foi fadado à nascença pela musa e pelo enguiço – sendo que este último decorria de um absoluto desprezo pela grana e pela fama: para ele, o cabaret fazia as vezes de salão literário. A vida de Cros foi condicionada pela miséria extrema, aquela que não lhe permite produzir os protótipos das suas invenções, aquela que o obriga a mudar de alojamento em média de três em três meses – dos quais dois de renda não paga –, aquela que o leva frequentemente a dormir na arrecadação por cima do «Chat Noir», aquela que irrompe em inúmeros poemas seus: (...) Só mesmo os meus cabelos são de prata. As almas que desejo como amantes E as estrelas estão muito distantes Morrerei sozinho no meio da sucata. («Conclusão» in Le coffret de santal) (...) Distraio-me a ver, abrindo as minhas gelosias Lojas, luvas, trufas e cheques com validade Onde há muitos zeros a seguir à felicidade Valendo eu tanto como os bispos e os reis Os directores das finanças e os coronéis 1
Termo inventado a partir da interjeição «zut!» que significa algo como «ora poça!», «chiça!». Em francês «les vilains bonhommes». 3 Literalmente «Homens de hoje». 4 «O Arenque defumado». 5 Coquelin filho, já que seu pai também era actor. 2