Quem tramou o quê

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QUEM TRAMOU O QUÊ? A despeito de o título, sob forma de pergunta, nos incitar claramente a procurar a(s) resposta(s), é provável que a crítica seja levada a descurar a trama — aparentemente demasiado simples, com o detective, o inocente e o mau da fita — em favor da urdidura — a proeza técnica, o prazer de reviver sem má consciência as emoções infantis do desenho animado —, levada pela abundância de obras e documentos facultados pela produção. É certo que, tecnicamente, o filme marca uma etapa histórica, melhor dizendo, surge como um coroar de esforços, na medida em que não aposta na inovação mas na multiplicação, a um nível inédito, de efeitos anteriormente inventados. Contudo, esta super-visibilidade da proeza técnica não deve esconder a verdadeira trama, latente sob representação alegórica da ficção policial. OS «TOONS» O desenho animado é mais antigo do que o próprio cinema. Constituiu a primeira forma de reprodução do movimento e, em relação ao cinema, possui, ao mesmo tempo, mais e menos potencialidades: Mais, na medida em que, não estando submetido a nenhuma limitação, a não ser a própria audácia do desenhador, pode animar todas as coisas e assim escapar ao racional; Menos, na medida em que, não tendo a capacidade de reproduzir o «real», apesar do movimento bastar para criar uma emoção forte, esta última nunca possuirá o peso que a ilusão de realidade confere ao filme. Contudo, historicamente, o desenho animado desenvolveu-se não só criando códigos tão limitadores como os da ficção cinematográfica, como copiando os códigos da dita ficção. Convém acrescentar que muito rapidamente se confinou a uma função menor — a curta-metragem para preencher o espaço ante-programa — e a um público minoritário durante longos anos — o público infantil. Apesar disto, logrou inventar, através do exagero sistemático tanto do movimento como das situações, um universo de fantasia. Os produtos mais interessantes aparecem aliás, em regra geral, quando o desenho animado ultrapassa a vocação que o sistema social lhe atribuiu; desenhos animados para adultos em que o irracional resvala para o imoral. ROGER RABBIT é, neste sentido, um produto intermédio: trata-se evidentemente dum filme para adultos — a intriga é complexa, baseada em noções de herança demasiado abstractas, para ser entendida por crianças; as referências são desactuais — personagens dos anos 30-40, como Betty Boop, Droopy, etc. — os carácteres são habilmente desviados — maldade de Donald, problemas sexuais de Baby Herman, etc. (inspirado em Tex Avery) — e as citações cinéfilas são numerosas — a própria Jessica Rabbit é um composto de Verónica Lake (pelo penteado), de Rita Hayworth (pela cor do cabelo e pelo discurso: o «I was drawn that way» retoma o «Don't put the blame on me» de GILDA) e de Laureen Bacall pela altura e pela voz grave... No entanto, os motivos que levam os «toons» a agir não são nem a caricatura nem a representação de um absurdo equivalente ao do mundo do pós-guerra, antes se prendem com um fim gratuito pelo seu carácter absoluto: provocar o riso. Não só o riso dos homens — ficticiamente companheiros de aventuras mas essencialmente espectadores (a cena-chave do cabaret é, a este nível, emblemática) — como o seu próprio riso. Ora, o riso dos «toons» é uma animação, uma criação do desenhador humano: a ausência da personagem do criador num universo ficcional que reproduz o meio da produção cinematográfica (ou seja, da sua própria produção) faz do «toon», já não um produto da actividade humana do espectáculo, mas um símbolo da autonomia do mundo ficcional cinematográfico; o riso dos «toons» é pois a afirmação de que o cinema se basta a si próprio. A COABITAÇÃO A mistura, em proporções quantitativamente similares, de elementos e de personagens humanos — ou «reais» — e seres desenhados constitui obviamente a característica principal do filme. Após uma nítida separação entre o «frente à» — o mundo dos «toons» — e o «por detrás da» câmara na sequência inicial, as personagens animadas penetram no espaço «real» e convivem com os humanos. Esta coabitação torna-se muito rapidamente natural aos olhos do espectador — nisso reside o êxito do filme —, graças a três processos: 1) A natureza dos «toons» é ambígua. Eles


gozam ao mesmo tempo das propriedades das personagens animadas e do estatuto de personagens humanas: Baby Herman, Roger Rabbit, Dumbo, etc., são actores. 2) Todos os «toons» são iguais, mas alguns são mais «toons» do que outros, ou antes, alguns «toons» são animais — Roger — ou objectos — Benny — enquanto outros têm formas humanas — Jessica. A estranheza «contranatura» da coabitação de Eddy — homem — com Roger — Rabbit logo «toon» — vai ser apagada por uma apresentação gradual de outros pares «mistos» — Roger e Jessica, ambos «toons», mas o primeiro bicho e o segundo humano; Baby Herman e a sua nurse, o primeiro «toon» humano e a segunda toda ela humana... — que culmina com a cena do quiproquo entre Eddy e Jessica — em que a oposição dos sexos cria uma situação cliché, anulando na essência a oposição —a partir da qual, momentaneamente, se estabelece uma rivalidade entre Jessica e Dolores. Promovida ao mesmo plano que a relação conjugal intertoon Roger-Jessica, a coabitação Roger-Eddy, «toon»humano, comunga da mesma justificação — uma vez mais o riso —, na medida em que Jessica consegue incarnar o estatuto objectal das stars humanas reduzidas ao sex-appeal e porque os humanos conservam, por estatuto, uma superioridade no mundo real — Roger precisa de Eddy. 3) Os homens do filme, mesmo antes de se verem submetidos ao ritmo próprio dos «toons», surgem como caricaturas pelo excesso de convenção com que foram «desenhados» — o detective, o produtor, etc. —, pela forma como se «movimentam» no mundo — Eddy é apresentado como uma criança na maneira como se desloca de eléctrico —, pelo exagero das situações — a parte do escritório ocupada pelo irmão falecido está coberta de pó — e pelo exagero nos pormenores de encenação — fato de M. Acme, iluminação de alto contraste, etc. Os humanos possuem, no fundo, as características dos «toons» — a infantilidade, o ridículo (cena das fotografias-recordações de férias de Eddy e Dolores, e submissão dos seus actos aos códigos do cinema (*). O par Eddy-Dolores é, à escala humana, tão cinematograficamente estranho — num universo em que os heróis se impõem tradicionalmente pela sua capacidade de plasmar um ideal fabricado de virilidade ou feminilidade — como o dos «toons» Roger-Jessica do qual são a réplica. A coabitação só funciona, no fim de contas, em razão da «toonidade» essencial do universo cinematográfico. O conjunto do filme ilustra a capacidade que o cinema tem de ficcionalizar o real captado. THE «DOOM» O mau da fita é talvez o seu ponto mais fraco. De tal modo caricatural no tocante à aparência que a revelação final da sua natureza de «toon» não constitui profundamente nenhuma surpresa; o vilão encarna, simbolicamente, uma ideia demasiado complexa para não ser incoerente: representa a traição da essência «toon», quer dizer da ficção cinematográfica, pelo real extra-cinematográfico — ele quer destruir a «toon-town» para construir a auto-estrada que foi efectivamente construída à saída de Sunset Boulevard; simultaneamente, figura um certo tipo de «toons», concebidos por computador e destinados sobretudo a programas televisivos, vindos do Japão ou da Coreia, essencialmente mecânicos e violentos — a mão-machado que se transforma em mão-serra-eléctrica é inspirada nessas séries com heróis robóticos. A escolha técnica de uma animação manual por parte dos produtores reflecte-se na representação ficcional da vitória dos «toons» contra o traidor. Portanto, o juiz encarna ao mesmo tempo o princípio de realidade que os autores atacam abertamente, e um certo tipo de ficcionalização (cuja violência e mecanização reflectem demasiado as do mundo moderno) que se tem vindo a implantar em detrimento duma ficção ou mais doce — Walt Disney —, ou inofensiva pelo próprio excesso de absurdo que a rege — os «toons» MGM. Ao querer destruir este mundo mágico, o juiz assina a sua própria condenação à morte — o que seria do juiz dos «toons» sem «toons»? (todo o mundo sabe que a Polícia precisa de malfeitores para justificar a sua existência) —, mas o filme não desenvolve esta incoerência que poria em causa os códigos que lhe são subjacentes. O filme parte pois do cliché, do reconhecimento do cliché que Deleuze descreve como etapa necessária para a renovação da estética cinematográfica (in «L'imagemouvement», último capítulo) mas para defender, pelo contrário, o regresso à «imagem-acção» e à ficção inofensiva — porque pretensamente desligada do real, visto os seus autores não assumirem que o imaginário seja uma projecção das estruturas sociais de produção — que esta veicula. Assumindo uma opção oposta aos novos cineastas americanos, como Scorsese e Coppola que a


partir da denúncia do cliché se lançaram na contestação dos valores ideológicos ficcionais defendidos pelo cinema (com as figuras do «winner» e do «loser» à cabeça), Spielberg reivindica um espaço próprio de «recreio» — com toda a infantilização que esta concepção implica — e restaura o sonho da fábrica hollywoodiana — as Major Companies com as quais, depois de ter persistentemente tentado entrar em concorrência, se associou para a produção deste filme. A vitória final dos «toons», que aniquila a maldição («doom») e os seus projectos de auto-estradas, afirma-se como negação do real. Os interesses financeiros e ideológicos — o juiz é julgado corrupto logo que se descobre que a sua firma tanto lida com transportes como com cinema; ora tal é, de facto, a situação dos estúdios hollywoodianos, actualmente — devem, da mesma forma que o desenhador de «toons», permanecer ocultos. O filme representou um investimento programado para um prazo mais longo do que é costume na produção cinematográfica. Apresenta-se como um acto de fé nesse modo de ficcionalização e, num momento em que o espectáculo de cinema, enquanto mass media, se encontra em crise, coloca a questão da origem dessa crise. Mas, ao optar pela ilusão, auto-condena-se a não encarar as respostas reais. S. (* ) O trailer do filme mostrava aliás uma cena que, curiosamente, desapareceu na montagem final, na qual Eddy , se via transformado em «toon», mais precisamente em porco. Uma cena dessa ordem, ao eliminar definitivamente a barreira entre as duas essências de personagens — transgressão efectuada unicamente pelo mau da fita e, ainda assim, da sua aparência «toon» só são dados a conhecer os olhos — anulava também a problemática da coabitação que urde o filme.


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