R 4 mal acabada interior

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Regina Guimar達es

A MAL ACABADA texto infinito

Desenhos de Paulo Anci達es Monteiro



1 Não deveria haver dia sem um poema de amor ainda que ele repetisse o que jamais se viveu e já se disse talvez o que não se disse mas se viveu

2 Se não me deres a mão o braço o ombro a curva do teu pé e do teu peito a falta desta falta de respeito, em breve me juntarei às velhas já sem sustento de razão e coração É vê-las passear passar por lá marcar seu território ilimitado mijando sobre si e a seu lado É vê-las caminhando aridamente em zelo e em desespero daquilo que nomeiam causa própria

3 A vaga devorada gota a gota 3


4 Havia nessa aldeia imaginada nunca realmente minha nunca alheia a ponto de ser real a Vitória que nos apedrejava coberta de seu escarro e muitas moscas a Maria Maluca dita bruxa porque filha de bruxa castigada a Maria Mó bem mais roliça que pegava nas crianças como em plumas e de quem se dizia salivando que fora bela e puta encartada As loucas eram da rua os loucos eram da casa – elas dadas ao desprezo em liberdade e eles entrançando grandes gigas em lojas de noite eterna cheirando a terra batida Por ali ninguém sabia até onde se é sandeu e por que se ensandecia Assim se enxotavam parasitas em jeito de enganar melancolia: sob a boina mais coçada que já vi o nosso vizinho Alberto ficara muito ficado e um pouco mais adiante junto às alminhas da ponte entrevado atrevido cavernoso 4


José palrava sozinho em seu presépio de vime Desde então eu os carrego por apreço eu as levo fielmente como fardos escrevendo o que me verga no começo escrevendo se o olhar não tem pousio E quando falo sozinha tenho gente que me escuta sem fazer silêncio em mim E quando as pedras me falam logo outras voadoras me ameaçam E quando é quase bruxedo o que a medo digo do medo por ser tão filha de mim poderei sofrer castigo Se me fico ficada no papel pensa só meu amor que não posso maior atrevimento Em suma: levantei essa criança peso pluma doravante não sou uma uma a uma 5 A maior vaga engolida boca a boca 5


6 E tudo nasce de tão mudo gritando entre dois instantes de tristeza ou de estudo Acordo estranha a mim como fato esquecido num roupeiro e saio da cama sabendo o muito que fica por despertar

7 Hoje o arbusto da mão incendiou-se E foi preciso esfiapar o tecido dos dias a fim de proteger a queimadura da carícia do presente que é uma carícia futura

8 Poli a mão e ela fez-se pedra Afinal eu errava, meu amor, quando pensava para comigo que a ferramenta é capaz de amnésia 6


Pois todo o modo de endurecer segrega seu método – e o que é o método a não ser sinal de luta contra o esquecimento? 9 No outro teatro anatómico cosiam-se os corpos já autopsiados com linhas de texto e pontos nunca finais. 10 Valsar em fervura fria como folha que se abre na tisana Dizer bom dia ao que nos desirmana Porque difere a doçura conforme a boca da cria Porque a dor nos alivia e a alegria nos dói E a dança junta quem parte ao par que espera no escuro 11 Havia um rosto de espelho e o circo de pulgas em redor do umbigo 7


Havia um homem pendurado pelo colarinho e uma nuvem a mudar de prateleira Havia uma seara de pincéis negros e corvos azuis sobre um céu cada vez mais amarelo Havia um cheiro a texto queimado mas era apenas um farrapo de floresta a pairar

12 Visto que a vida nua é o sustento da vida vestida Visto que a vida só de vida se sustenta sob formas exemplares de morte lenta Quem diz ainda que há vida para além do sustento? Eu digo que sim porém como cada palavra Eu digo que não porém toda a palavra me come

13 Prefiro deitar-me de costas para a parede e de janela aberta de par em par como se os sonhos por lá entrassem e não pudessem escapulir-se 8


14 Sim, a língua mutilada sabe ou sente que fabrica uma voz fantasma Sim, a frase que procuro ou melhor, a frase que me encontra não se refugia nas palavras Sim, quero perder o fio ao pensamento ou enrolá-lo no meu dedo anelar para me esquecer de não esquecer

15 A vaga derramada pela boca desenhando esta náusea de ser mar

16 As cores diluídas na matiz os olhos dissolvidos nos olhares a retina já retida em seu humor mas só a fala para anunciar o desejo novo de ficar para trás Os olhos dissolvidos na raiz as cores diluídas na folhagem a retina martelada em seu cristal mas só a fala para estremecer como clara em redor da velha gema 9


17 Procurem os culpados e as culpas no lugar onde apenas se condena o que a todos servirá de atenuante 18 Escreve agora com os pés e lê-me com as mãos Escreve o que não te dita a consciência o que não tiveste tempo de tomar nota e rasgar o que te esgota a tinta e te põe exangue Escreve até o papel arder até o presente ter pernas para andar e olhos para se deter até o brilho longínquo iluminar as bocas por dentro até a curva da dor ser caligrafia e a carne viva folha agora lisa e logo amarfanhada Escreve com sóis de chumbo a pesar na nuca com lágrimas de lata a enferrujar-te as pálpebras Escreve para que o lago e o monte sejam desde sempre reversíveis para que a tua mágoa não se torne pública nem privada 10


para que água para que haja para que já e não 19 E sem baixar os braços os olhos e sem erguer os braços os olhos a mulher orquestra obesa e obsoleta como uma boneca de trapos ainda consegue tocar o falso tecto do cosmos Ela fala da urticária da aurora da valsa de muletas do poente da meiguice da panela e rota a chama Ela espera bandeja onde a cabeça possa ser levada à mesa e bem servida 20 Doravante o meu vestido são as curvas do caminho onde se fala sozinho 11


21 Eu abracei o pedinte em precipício o príncipe do princípio e seu coração de bobo Eu abracei o mendigo agiota o príncipe porta a porta e seu coração de bolbo enterrado em primaveras

22 De um só sopro todas as velas se apagam De uma só palavra todas as luzes e ninguém ileso sai da sala Mas saber quem acendeu e de que nos vale esse saber é o que estamos para perceber

23 De somenos importância se te deixam conservar o corpo na ignorância ignorando o ignorar 12


24 No dia em que apareci a mim mesma fazia tanto frio que julguei ser-me miragem ao contrário

25 Tomba o pó do pensamento neste trabalho de mãos e por vezes cai fagulha que ateia o lume do corpo reduzindo as mãos a cinza porque a brasa se confia a quem sobre ela trabalha Tombam visões de poalha atrás das quais multidões carregam sem um lamento passados imaginários mas também os solitários que em si decifram o rasto de futuros muito antigos Enfrenta doces perigos aquela cujas mãos tremem onde a obra lhe obedece pois todo o encanto mora na obra que se rebela desertora entre dedos e nos teus olhos mais bela 13



26 De que sonho não desperto em que sonho não acordo e com que dança de rimas te acompanho a corta-mato lançando juras de amor e sílabas às urtigas? De que façanhas inócuas me acusam tão duramente as serpentes já dormentes entre chinfrim de vogais e surdez de consoantes já minhas em demasia mas não como eram dantes? 27 Na crisálida dos mares ainda por vir a nós há muros em carne viva abraçados ao azul que é a fadiga dos olhos. Antes da metamorfose são outros os nossos mares impiedosamente calmos e dispostos a saltar da caixa onde maduram. Com ou sem asas já pulam e novos e prematuros remotos como sinais 15


pois que suas mães lamberam a espada em vez da cria. Quanto de nós se movia na pocilga das entranhas perfumada a maresia onde nada mais se ouvia a não ser o que é de mais? 28 Isto que em vão trabalha e se espalha pela página Isto que já não se reconhece pela letra tremida inclinada seca Isto que é do dia mas não do dia-a-dia que é peça de puzzle e encaixe em forma de nuvem capaz de escorraçar o céu da sua presunçosa imensidão Isto que vale a pena talvez desdobrar depois de amarrotado pois o recado está nos vincos do papel e jamais nos sorrisos de rasura Isto também já pertence a quem foi desapossado telão e boca de cena 16


porém a voz sumindo porque a luz ali refez o seu deserto

29 O texto acorda sempre mal dormido sabias?

30 E a vaga mais precisa rebenta na tua boca

31 As pernas marcham sozinhas coisa que não quer dizer que o caminho não avance mais depressa do que elas coisa que não quer dizer que a cabeça não seja já capaz de fazer voltar atrás aquilo que a ultrapassa. Sim, a cabeça cambaleia sobre o livro mas de súbito desperta e a mão quase serena retoma sem hesitar o fio da outra vida atalho após atalho. 17


32 Toda a bagagem pousada porventura ali esquecida e alguém partindo ou chegando decerto indistintamente. Tenho na massa do sangue uma viagem doente e se não parti a quente a frio estou de regresso. Tanto é que nem reparo se já sopra um vento adverso quando uma rima pergunta: «Peregrina, onde vais?» A rima só não sossega quando é rica de mais. 33 Por uns poucos de tostões todos querem dar lições e até de graça talvez sobre o que faz e quem fez como se Eros nascera desse labor em cadeia. Nos muros arranho a pele se os roço por acaso ou por cansaço me encosto. Primeiro sangro mas logo uma crosta redesenha outro fazer que me escapa. 18


Num só caso num só corpo ANYONE ET ANONYME: temos os dias contados mas isso não nos redime. Eis onde Eros renasce mostrando a face oculta e ocultando a dupla face. 34 Não sou mulher ampulheta nem essa outra que passa quase inteira quase pura pela menina do olho e depois pelo buraco de uma velha fechadura Embirro com epopeias e com meias cor de carne e com carne cor de ideias cá vou usando esta roupa até o fio da faca espetada na ave rara Não faço saída airosa nem estudo o tom da entrada censuro este meu jeito de negar a negação tatuando três bonecas cada qual mais esventrada Ponho pausa onde não devo e causa se ainda fervo em pouca água chorada 19


em pé de guerra perdida pois não sei fazer-me cara terra sou de tão queimada

35 Sou cativa deste corpo que às claras me vai traindo e no escuro me consola. A traição é sua esmola e o consolo seu veneno. Vivalma já a galope por seu cavalo arrastada em lama de alma envolvida sou cativa deste corpo.

36 Creio no que não disseste dos instantes mais eternos roubando ingenuamente barro à voz do criador fogo a todos os infernos. Creio no que não perguntas se não obstante te ouço interpelar um ausente: a que deuses e demónios cada palavra se rende? O que eu creio não se explica pois confio e desconfio do pensamento em ferida. 20


Creio na fala cantante que se faz desentendida que plana quando rasteja e de mim sempre duvida. 37 O benefício da dúvida é um bem desigualmente partilhado. Fazias-me hoje notar que o pateta alegre, o chico esperto e o nacional porreiro são espécies em vias de expansão. Porém nem por isso consigo não temer a repartição das riquezas das certezas e várias vezes ao dia me pergunto se o fascismo não passará. 38 Dados a comer aos cães e às criadinhas Dados a comer à raposa e às galinhas Dados a comer aos abutres e aos gafanhotos Dados a comer aos deuses não aos nossos 21


39 A manhã virá com seus olhos de comer e chorar por mais escorrendo orvalhos ou mágoas de uma infância demasiado longa Virá descalça como pastora faz de conta de porcelana pintada à mão tão branca que fica à espera que o sol enfim a derreta para louvor e proveito de um ou outro poeta. Virá com frios de anfitriã franzindo fina o sobrolho de seu fio de horizonte bocejando ao receber-nos pois não contava connosco e pasma em ver-nos no átrio nus ou em trajos menores como se mas não A mais velha profissão não é parte interessada

40 Fazer mapas, pintar rugas uma só e tão digna actividade 22


Até a terra se abre quando se sente um perfume a intensa cartografia Até o chão que pisamos deseja ardentemente que o que é belo se agrave que o que é grave embeleze

41 Tímpanos e sapatos mas principalmente o ímpeto de escapar ao perfilar à marcha a cada passo militar ao ouvido médio e ao fantasma do tédio atravessando as ruas como se o ar não fosse ainda espesso como se já nos falhassem palavras para soprar justa raiva às ventas do deus progresso. Passamos de ímpar a par no vendaval que não faz voar telhados. Um vendedor ambulante escuta as nossas confidências e trazemos para casa flores murchas que oferecemos um ao outro. É essa a nossa maneira de tocar.

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42 A mãe agarra nas profundezas para levá-las até aos píncaros. Não desce desses cumes onde já nem paisagem se domina a não ser quando nos passa a mão pela testa. E nesse instante acreditamos que somos apenas uma ponta de febre e que nós e a febre passaremos com panos frios na testa com panos quentes no peito e um grande pano branco em último caso. 43 Caminhamos por uma estrada cada vez mais larga calcetada de olhos cada vez mais claros e quase semicerrados. 44 O bom é o inimigo do bom mas dizem-me que não existem inimigos apenas adversários e rivais. São tantos os sinais contrários que não basta apagar a luz para ver no escuro. 25


45 Um ramo de rosas e de rins ou um lenço talhado no pulmão em vez de juras de amor ou de uma canção alheia mas aprendida de cor. Um raminho de tiques e tremuras porventura escondido atrás das costas como arma de amador em busca do crime urgente que é mostrar o seu amor a toda a gente. E também o trajecto e os atalhos entre a coisa que se colhe o instante de oferecer e o sumir pelo chão dentro frente a um olhar fulminante. Presente fora do tempo não se deve agradecer ninguém se sinta obrigado a gostar do que lhe é dado disfarçando o desprazer. Quem anda de flor em flor com pedras dentro dos bolsos e recados amorosos – nunca entregues, nunca exactos talvez não saia do sítio... Só lhe restam as desculpas tão curtas e esfarrapadas 26


de ter colhido beleza e de ter guardado o peso que era preço da colheita. Se a vida assim se estreita entre o fardo e a fadiga entre a palavra e o castigo é porque cada delito tem como único fito poder ser surpreendido.

46 Dormir, meu amor, sabendo que é possível despertar Depois acordar sabendo que se pode adormecer. Numa certa manhã clara ou numa noite cerrada os cabelos despirão o roupão que é seu disfarce e o púbis sorrirá por entre seus raros dentes por entre seus véus e lábios e dentes ainda quentes.

47 Debaixo de chuva e sol uma derradeira vez a criança esconde a cria 27


Dois guardas rivalizando em maldade e grosseria descobrem o esconderijo onde a criança deixou memória da sua voz Ei-los que levam a presa e a largam no lugar onde terá de arrastar a laje da sepultura e encarnar no seu cadáver Ei-los que a fazem comer a terra que a comerá até morrer de asfixia Ei-los que obrigam a voz a conhecer donde veio e a confessar onde está

48 Trago por vezes no peito uma janela fechada embaciada fria. Uma janela não: um retábulo tão delicadamente pintado que eu mesmo precisaria de ir olhá-lo muito ao perto para ler todas as cenas em vinhetas descoradas 28


profusas, douradas, pequenas. Talvez entre rosas de toucar e molduras e caixilhos eu pudesse encarar facetas da tua vida sem face, nem ferrolho, e também da vida outra minha outra vida incauta. Porém isso que trago no peito não o posso visitar. Ando perdida nos teus olhos e tu não mos emprestas.

49 Há os que trazem uma flor na boca e uma boca na lapela. Há os que transportam um motim dentro da barriga e cada vez mais abaixo todos os santos ajudam a que esses cada vez menos ogres trepem o feijoeiro mas o desnível das águas e não haver quem descenda de ninguém. Há os que plantam livros 29


no lugar de árvores correndo o risco de verem nascer todos os filhos todos os filhos todos os filhos. Há os que nadam em dinheiro mas o desnível das águas e a boca a lapela. Há os que se amotinam contra os filhos e julgam viver num livro contando as folhas das árvores como se fossem dinheiro. Há os que não descendem nem concedem mas consentem calando a flor desfolhada pétala após pétala e nem as águas os levam. Há os mais santos que os santos não ajudam porque toda a santidade nasce abaixo da barriga. Há os ogres jogados a feijões entre nós na barricada porque o motim tarda e o risco nos atrasa. Há os que trepam mas o prazer de cair o desnível 30


e a vertigem de ser toda a água.

50 Esteja eu toda eu doente de mim mas em ti sã e por ti salva.

51 Ao que nunca foi preciso atribuímos razões passando elas a ser atributos do que é e não falhas do que foi. Ao que já não é preciso se encontra segunda mão mas só havendo duas por pessoa até à data não temos mãos a medir. Ao que não será preciso se abre curta excepção e a criança chama o choro na sua cama gelada porque aqui não é chamada. Movem-se mundos e fundos para dar força de lei 31


ao véu, ao vento e à vénia promovidos a destino enquanto vai nua a vida. Caminhamos sobre cacos de velhos moldes quebrados até só restar o pó e todo o nome do barro nos saberá a farinha.

52 Porque me faço feliz desta estranha plenitude de estar a morrer de sono mas contudo atrasar a hora de adormecer e de morar por instantes em casas adormecidas que não apenas a nossa pois à vidência me entrego das casas que se adivinham. Da crista do meu telhado e das fissuras do tecto saem vozes do torpor onde há muito se purgavam desde esse tempo em que o sono lhes parecia castigo. As vozes soam mais alto do que me é permitido 32


tomar de amor e de assalto e ferindo o meu ouvido comigo fazem um pacto. No vermelho me revolvo sou fera afogada em sangue até que meto a cabeça no buraco que me aperta como ponto sussurrando em meu teatro deserto.

53 Precisa muito o olhar de ser sempre passeado mas eu desejo parar no lugar onde antecipo que este olhar tão volúvel me não permite pousar. Como alguém encarcerado no carro que conduzia no instante do desastre, assim cativa me sinto do olhar que me guiava largando se agarrava uma forma de volante. Oh via láctea e dúctil, entre curvas que são rectas para a luz cegar a vista poderia o condutor 33


saber onde acaba a pista num espaço que se transforma em tempo de caçador?

54 Trouxe estrelas de comer e dentes de mastigá-las. Mas estão de fora as tripas.

55 Nem do sexo imposto nem do sexo a contra gosto talvez de quando em vez do sexo oposto ao oposto.

56 Trazes um cisne no nariz um canto do olho no céu da boca um riso nascente nos rins um lago oculto na nuca e uma cascata na nudez do ombro. Por isso estar aqui contigo é sempre estar noutra parte. 34


57 A máquina de escrever. A máquina de lavar. A máquina de matar. A máquina de costura. A máquina do costume.

58 O que eu estou a ver com uma nitidez ensurdecedora é este chapéu de feno sobre a cabeça em labaredas.

59 Pólen servido ao almoço e vitral servido à ceia? Pode uma ideia ou uma jóia nunca vir só como a desgraça?

60 Sento-me perto do fim do sonho com a mão no travão e o coração na ribanceira. 35


61 Esculpir por abraço apenas apertando contra o peito longamente todas as coisas achadas e suas causas perdidas como se diz das meninas nem tidas nem

62 De noite me transmitiram segredos de tinturaria. Mas eram segredos tão secretos e indecifráveis que agora me pesam como roupa molhada que nunca viesse a secar.

63 Este é o barco de bolso – não navega mas tresanda a oceano. Sabe a sal e a ferrugem mas nunca atracou no cais nem regressará à praia. Este é o fato do náufrago o que nele resta de alto mar e nenhum lugar para os golpes baixos. 36


Este é o banho de revelação no qual a imagem leva milénios a fazer-se bela aparecida. Este é o areal e nele se esvazia o desejo de ampulheta.

64 Olhei a custo o espelho como se fita um inimigo sem segundas intenções. Porém não pude decidir se a multidão ficara atrás de mim ou se saltara para dentro sem eu dar por ela.

65 São precisas duas pessoas para essa terceira que nos atravessa.

66 Numa canção de embalar é possível conversar com anjinhos de rapina e cordeiros tão ferozes quanto eu. 37


Numa parábola coxa apanhei em andamento um comboio indesejante e valho então quase tanto como a tua opinião envergonhada. Numa fábula imoral já desenhei o vazio a teu pedido: pastando na vez da vaca inchando na vez da rã sem chegar a rebentar.

67 A beleza que se exibe não se expõe e quem se expõe à beleza ficará para moldura. Pestanejo frente à luz mas não sei se o céu se apaga. Sei apenas que outro céu me lança novos sinais quando volto a abrir os olhos. – os meus velhos olhos de abrir e fechar.

68 Sem cerimónia virás – será vires a cerimónia. 38



69 É tarde no lugar donde partimos e cedo a cada instante em que buscamos a maçã no rosto das origens. Não te aflijas, meu amor. Na bagagem que preparo há carícias de chapéu e lamentos de luva. Preto e branca. Olhando para trás mais uma derradeira vez que nos sabe a eternidade, recordamos as crianças algemadas como anjos turbulentos e nós com ferramenta de ladrões soltando umas e outros a fim de que nos perseguissem. Assim um simples olhar furtivo – último dos primeiros, primeiro dos últimos – basta para ser beijo e talismã.

70 Levo nesta bolsa que cosi à mão 40


príncipes e sapos e patinhos feios. Mas temo ou não temo os olhos dos olhos cavando à socapa dores e corredores até à escuridão imediata?

71 A gratidão não tem forma e antes de ter medida sobre o perdão nos informa abrindo alas onde fileiras havia. A gratidão não produz os signos com que exprime ao devorar os sinais ao acender outros fogos nos olhos mais obviamente mortais.

72 Se eu te começasse pela infância fazendo do pudor de ser pequeno nossa moeda de troca ou nossa troca sem moeda 41


E se te eu infindasse pela infância fazendo romper as águas entre pernas afastadas como montes derivando fugidos ao oceano E se a meio do teu sonho me acordasses dizendo o que em repouso se permite dizendo o que se admite ao despertar entre corpos já vestidos de seu corpo entre corpos já despidos de figura Não estarias no meio onde não mora nem morreu a virtude de estar vivo e a soberba de dormir em alto mar Possa eu suspirar por outros meios inspirando e expirando o que me come sem fome de consolo ou de alívio

73 Lentamente dolorosamente como um rapaz que muda de voz sem que se lhe alterem os traços e os trejeitos, tentamos calcular por alto e de cabeça o contrário abstracto e concreto da fatalidade 42


Mas faltam-nos números falta-nos o ar frio que fere os brônquios à hora em que são toda a carne e todo o canhão Falta-nos a vontade de mudar de sítio para estarmos menos à vontade e sobretudo menos à mercê da vontade

74 Sei que no céu se multiplicam os pontos e se suprimem as linhas. Sei que de lá nos desce a toda a hora mais um prato sem fundo mais um poço sem sussurro de desejo. Mas faltam cordas à lira e ramos à sarça ardente. Aqui na terra. Ainda quente. Ou cada vez mais quente.

75 Com pés me canso e descanso até que se confundam os teus braços e pernas numa margem já longe da página. 43


76 A cabeça pesa sobre os ombros como uma culpa ou um fruto mais pesado do que a árvore do que o planeta. Ah mas esse bocado tão doce escorrendo na garganta até à asfixia é a palavra que o fruto não diz e a cabeça não concebe. A cabeça sairá da órbita talvez se espatife contra um muro negro pois a sua frase alheia vai largada a grande velocidade e quem carrega no pedal vai ao volante de um piano vai ao volante de um sol infinitamente poente. A cabeça pesa sobre os ombros e o fruto rola rival com exageros de esmola.

77 O tempo fala por cima de outra fala – mal se escoa a mercadoria logo se muda de cara o mercador e de poeira o feirante. 44


O tempo fabrica uma parecença tão gritante como a injustiça – não sai de cima das bestas de carga que andam aos pares por gosto de assimetria. O tempo tem truques de algibeira e internamentos para cura garantida e cheiros de farinha azeda com séculos de futuro em vão. O tempo corta na casaca antes que ela seja virada para que eu diga com propriedade ó tiro que me sais pela culatra sabendo que não uso arma nem arma alguma me tem a uso.

78 Não sair da casca não sair da cama não sair de casa não sair de cá Ver o que os poros vêem ler o que os dedos lêem rir como as rugas riem ser como os nervos são Pensar em estado de choque dormir em estado de guerra 45


falar em estado de transe amar em estado de sítio Mas que não se note

79 Os segredos bem guardados servem apenas para ensinar a perda a quem guarda? ou Os segredos mal guardados servem apenas para ensinar a perda a quem revela? ou Os segredos partilhados servem apenas para ensinar a perda a quem partilha? mas todos os segredos são de estado e o estado só prospera na razão directa da perda de memória entre dois ensinamentos 46


Os segredos de beleza servem apenas para maquilhar as perdas colaterais entre duas ou mais lições da história

80 Em contrapartida esta tempestade de há muito estava dissolvida no copo. Todos os dias lá molhávamos os lábios a medo e soltávamos um rugido à maneira dos homens cansados que se tornam selvagens aos olhos dos mais próximos. Em contrapartida desta água se diz que não nos beberá.

81 A criança pensa que pode contar para que o sono não a interrompa. É a sua forma sui generis de impedir o pensamento através do próprio pensamento. 47


Ao perder esta crença a criança perde também não a inocência mas a vontade de perder a inocência. 82 A vaga agora sem água. 83 Outrora eram tranquilos os livros de cabeceira e pesados os pés da cama. Não voavam a pique sobre a flacidez da almofada as imagens do que está para vir e as que aí estão para serem vistas doendo a quem não sente. Não voava o anjo cego. Nem escondia a arma branca entre as pernas brancas. 84 Desejo tão intensamente confundir-me como entregar-me ao que me faz confusão. Isto é: tudo. Acima de tudo. 48



85 Estão vazios o terreno de aviação o pontão de embarque a cadeira do barbeiro até o chão que eu pisei e onde já me pisaram. Mas como o horror ao vazio tem natureza tudo me parecerá cheio de vazios incompressíveis a tal ponto que a partida e a chegada serão no mesmo ponto obrigatórios e sem sentido previsto ou imprevisível. Esvaziando nos vamos ou será que voltámos esvaziados antes de arredar pé?

86 Tocado o corpo todos os sinos lá dobram – chocalhinhos de cordeiro sinetas de chamar servo calafrios carrilhões arrepios campainhas e silêncios profanados Tocado o corpo não se levanta fulminado pelos ecos 50


que não despertam o espaço mas fazem correr o tempo com conta peso e medida ou só com pressentimento 87 Penso no trabalho dos loucos imune ao que nos parece vão aberto ao que não parece e composto tão-só de pormenores de tiques de estilo de soluções de recurso É lá que se talham sobre os corpos os mais belos fatos de passeio e os factos de cerimónia enfiados à pressa como se o mundo estivesse em atraso e a comida estivesse a acabar É lá que se fabrica à mão a imitação das origens e tudo quanto é desnecessariamente necessário a começar por a acabar em Penso no trabalho dos loucos pois louco é todo o trabalho incluindo o simples gesto de olhar para a frente de olhar para trás de olhar para o lado 51


Também eu me pergunto ao que venho quando já estou onde não estou ainda Também eu interrogo onde não sei perguntando a quem não pode responder 88 Acordo alagada em madrugadas e logo ouço da boca de quem não sabe de nós que terei de sorver toda essa luz toda essa água onde amor e amor de amor me vão mantendo à tona. Mas entre nós o comércio de estrelas extintas não se esgota. Acordo transida desse frio que perdeu a língua. Não posso senão reinventá-la. 89 A prosa devota das direcções segue o seu caminho traçando rota e apurando o faro. Porém a poesia puxando pela cauda está ganindo à nossa porta. 52


90 Alguma eternidade se perdeu entre o dia de hoje e o dia de ontem entre o suspiro contido e a pessoa mutilada pregada a um álbum como uma borboleta quase enorme quase exótica. Mas quanta eternidade se poderia acrescentar àquela que só rara e imediatamente vai estando disponível para o que o pensamento dela possa fruir? Sim, meu amor, à revelia de quem julga há quem se sinta eternamente culpado por haver quem julgue e também quem muito se enterneça por haver quem perdoe aos que não perdoam. Pois, meu amor, a impaciência não é o grau zero do medo. Aqui entre nós: ela vem pé ante pé essa hora estreita e suficiente esse buraco do tempo em fechadura. O lobo vomita o cordeiro pelos ouvidos e ele sai balindo sem saber se acabou de morrer ou de nascer. 53


91 Os donos do tempo espetam a navalha bem afiada no pão. E descobrem que todo ele é côdea seca ou inesperada como uma pergunta de algibeira. Os donos do tempo levam o sexo até à fronteira em que ele muda de em que ele muda para. E o preço dessa epifania é o aperto de um abraço no vácuo. Ou seja: onde o vazio faz seus filhos para que nós os criemos.

92 Nestes dias de mau tempo e de frio pelas frinchas de grandes trinchas pintando a cinzento aquilo que era cinzento, o pensamento não se distrai com seu próprio sol. Todo o nosso devaneio se organiza como livro que não leremos 54


pois não será devolvido o corpo do náufrago a quem teme reconhecê-lo. Porém estará tão ausente o livro livre de sê-lo nas nossas longas conversas que elas nos darão abrigo noite debaixo da ponte ponte debaixo da noite músculo tenso remando rumo à margem que recua e arrasta consigo a tinta. Nestes dias de mau tempo deixa que o livro não tenha desejo de ancoradouro. Não saberemos então se o abrimos ao fechá-lo ou se ele nos abriu os braços.

93 Se alguém fizer de nós o seu deserto o seu novelo de caminhos a sua hora de marcha elástica a hora elástica a marcha 55


Se alguém fizer de nós sua miragem há-de o espelho responder-lhe desafinando mas cantando alto com essa voz perto de quebrar que é a do amor mesmo sem objecto

94 Viste que me enrolo e rolo e como embrulho apressado já nada transporto ou guardo quando chego ao fim da anca da rampa Há pequenas montanhas que se escalam a cavalo num riso cristalino às costas de um sorriso embaciado ou simplesmente olhando fixamente por detrás de uma vidraça por onde a vida não passa mas tudo o mais corre para o estado de graça

95 Estás a ver digo eu que nada vejo se estou vendo o que ainda não te disse de cada vez que falo e não te beijo pudera eu dizer quanto não visse 56


96 Sou falha de elegância em cada falha eis um defeito que decerto não perdoas Gosto dos santos da casa e dos milagres de rua Como besta suada regresso ao curral descarregando o mundo à minha porta Dirás que estava morta e até já de cansaço me fazias dançar ao som deste silêncio de sereia e cera e de corpo subindo ao mastro

97 A janela deixada aberta mas não por referência aos olhos que já não fecham A janela de par em par mas não para rebaixar o ladrão e os seus cem anos de perdão a partilhar A janela à altura do convés A janela à altura do porão A janela oscilando como proa 57


Mas o mastro agora chama horizontal e a nossa cama na casa das máquinas e a nossa casa mar adentro Vagamente vaga.

98 Há pessoas muito novas sob a pele usada chorando lágrimas escaldantes talvez até escandalosas São como dinheiro debaixo do colchão e não se gastam mesmo se precisas pois a vida não lhes faz ou fez sinal Por vezes ouvimo-las gritar durante a noite quando tudo grita e ninguém tem força ou destreza para abafar o silêncio

99 Retomar o mesmo caminho para responder aos que declaram caminho e caminhante apagados do mapa Retomá-lo magoadamente sem reconhecer o timbre do que foi a voz do pai dispondo intermináveis rectas e o fumo denso das curvas. Retomá-lo ignorando o proveito 58


e a perda a que o proveito obriga pois entre dois litígios o maior entre sujeito e sujeição Retomar o caminho da leitura e cruzar-me com o censor riscando a lápis azul linhas de céu no texto onde só havia terra terra a terra terramotos de bolso arquitecturas de sementeira estátuas derrubadas em praça pública salas de espera apinhadas de antigas crianças prazeres de homem curado em cama de doente afazeres de mulher doente em floresta muito virgem conversas de curandeiro dobrando esquina após esquina paisagens enroladas como bandeiras no rescaldo do motim Retomar a escrita que descamba que leva descaminho e me faz regressar ao fim contra o princípio cavalgando o meio contra toda a finalidade disfarçada de galope contra a dama pintada de sangue ao cabo do torneio contra o infinito treinado no pó do picadeiro para uso dos que ditam polegares indicadores e golpes de misericórdia Retomar o refrão de uma canção de amor trauteada até fazer corar as casas 59


entoada até as árvores crepitarem assobiada até choverem ninhos no desgoverno ébrio da marcha no desmando lunar dos caminhos de sol nascente a sol posto de estrela em estrela extraviada e na noite serpentina onde estala outro chicote sobre uma frente tão bela que jamais oculta as costas

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