R 6 caderno do poço e da gaveta interior

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regina guimar達es

maio afonso e jo達o alves


tara perdida

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Mau olhado Eu separo separo-me Contraí a doença do dividir E cada bocado é mau bocado Mas o mundo mal olhado ainda me sorri por entre as coisas que não vi

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Uma noite nossa Uma noite que nunca foi preta crescia como meia-alma e trazia na palma da mão a manhã da criação essa sim desenhada a carvão Nessa noite nossa da mais alta torre saudámos a invasão das primeiras pessoas e das terceiras nos ocupámos E à força de memória nos matámos Ó mão nua com que pena depenada escreverei a carta aos animais que me devorarão?

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Irreflexões Aqui está o dedo que não sangra e tudo quanto mora numa cidade em guerra consigo própria o instantâneo desilude a fera mas não o domador vertigem de ver sempre menor

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Take care No incêndio do hospital busco a razão misteriosa de um coração que pára e de um ouvido que ainda escuta o antigo bater irregular e doce como a brancura de uma pergunta antes de nunca amanhecer

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Gabarito Olhava de esguelha e via passar gatos etéreos ou talvez o éter de outros olhares Grande fora a fogueira frio o fogo E o susto que varrera a fuligem nada trouxera de novo A matrona migou o miolo das mamas no caldo dos filhos Agora arrota-lhes aos ouvidos para não adormecerem O que pode o raro olhar contra o desejo de ruína? Pode o desejo remar contra o mal-estar que tudo anima?

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Beleza suplicante Antes de devolver as armas antes de calar o povo imaginário que palpita na pupila de um peixe pregador alguém elevou a voz e clamou impropérios de misterioso sentido Para quem calcula o lugar que ocupa em função do infinito disponível esta voz consoladora era motivo de sobra para me chamar senhora e me mandar embora Nada me mantém presa ao chão a não ser a vontade de voar e a chama de chamar mais indigna e mais fiel porque é mudo o céu nesta fronteira com a terra e firme a terra por erro de amor Se voltar atrás pela boca morrerá o peixe Na cinza o sepultaremos com toda a pompa de uma palavra nova: sangue na guelra e o imenso mar dentro de uma pequena cova 8


Eu já não sou quem era Essa alma de amêndoa à tona cujo olhar buscava também o fundo negro da azeitona erra agora na paisagem por erro metida num envelope sob este céu em fogo inexistente Quem ao alto entrega os olhos não ignora a menina que neles chora

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O silêncio dos frutos e outros argumentos Framboesa, a dama cose o beijo aos lábios e abre a boca noutra parte onde as palavras soam a bocejo Se me trouxeres novas velhas se me levares em braços para onde eu não vejo fá-lo sem ciência e sem desejo de voltar fá-lo por vontade de morrer fora do lugar

Jacarandá e sala de aula Cadeira oferecida aos habitantes do céu para dela observarem o pôr-do-sol a roer as unhas azuis Meu soldado de intestino meu chumbo em carne de caça com cama roupa e comida assobiando ao corpo que em mim passa 10


À quelque chose malheur est bonbon? O corpo dança e descansa na tangente de uma arena deserta. Segregando leões e gladiadores a sua única pupila come pão a preto e branco e vê circo a cores. Enquanto o grão de areia fita o umbigo dos sonhos desfeitos noutros leitos.

Paiol azul e restos de tristeza Os restos de tristeza formam uma bruma espessa e pensam pela sua própria cabeça. É essa que explode e não a nossa. 11


Nós Algo nos diz, algo nos diz nus e nos veste à pressa e ao avesso. Quais fabulosos bonecos de costuras aparentes e risonha bainha alguém nos pousa no centro do mundo e da cama da vizinha.

O despotismo por esclarecer Ó hóspede maior dos meus olhos que sais para morada incerta deixando a porta fechada e aberta como esse suspiro que regressa à boca para que ela se cale caia em desuso ou simplesmente em tentação Ó hóspede mau pagador de todos os invernos colhes a lição o infinito crédito a infinita excepção. 12


A dor dormente A dor, a dormir, consigo não sonha. Abre os olhos para outros horizontes vestidos tão-só de vastidão e ouve o bater descompassado do sangue preso ninguém sabe a quem como um animal recém-nascido servido à mesa do rei. As perguntas de circunstância podem despertar a dor dormente pois ela gosta de dizer o que sente. Esbanjadas as palavras vira-se para o lado oposto e solta o sono na direcção de uma velhice merecida. Uma dor de boa qualidade pode dormir toda a vida.

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VÊ-LA-E-AMÁ-LA-FOI-OBRA-DUM-INSTANTE encore un corps encore un corps évidé un corps évité un cœur

Vagamente Entrelaçar a outros as palavras: as almas de médio porte as armas de médio alcance. 14


PAI O nariz da menina afunda-se na bolsa de tabaco e o fumador observa a subida dos anjos e das putas em azuis volutas enquanto o comedor de peixe cospe as espinhas na fenda invisĂ­vel do prato. Eu sou como a dor do fumador tenho um olho pronto a chorar na barriga e um umbigo que me liga a outra vida.

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Again / Retrato em cinzas A água fogo deitado à vez me segue e me persegue enquanto eu me busco e me ofusco na cinza de um sonho a todo custo afogado. Em que margem do sono dormirias se do mundo só sobrasse o primeiro bocado?

Meia haste É hora de ponta no sítio de nascer. A morte cresce como uma ambição e de soslaio nos olham os buracos. De onde, digo, partirão as próximas fugas de informação? 16


A dureza do poema sua pedra impolida O Pai faz-me olho grosso e deita-me as impossíveis mãos ao pescoço. Defendo-me fechando as pálpebras e abrindo a boca para nas minhas palavras o ouvir. Depois basta engolir.

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Curta incumbência e longo silêncio Cabem as iniciais na promessa do texto iluminado e o L serve de cajado a um cordeiro de ouro pequeno sonho de touro que se ilude na tosquia e descobre a nudez de cada dia onde o texto a ocultava tudo ao contrário portanto desta vez na sua rês posso ouvir o corpo santo e não o espírito do lugar viremos os olhos para a luz confusa do curral e se no amor nos confundirmos que vença o mais fraco esquartejado solar.

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Transtorno E chegados ao Paraíso procuraram ainda os lingotes de ouro. A luz que os cegava e os iluminava só podia brilhar de dentro para dentro como o vírus que devasta os campos da ficção e faz tremer o remédio à cabeceira do pensamento. E as pedras nas quais tropeçaram foram também os marcos que lhes permitiram regressar a casa.

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Make believe / lendo Burroughs Um engano, um instante de subserviĂŞncia, um sino dentro do som, um centro, uma seta, uma ausĂŞncia e o Ăşltimo descendente do sorriso.

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Correio aberto Um cacho de homens pende do ramo mais alto do sol não se lhe vêem as caras mas suas nádegas redondas sorriem. Máscara mortuária Leiam de A a Z e de Z a A. Uma mulher mostrará as pernas mas só nas mãos terá frio. Intensamente Os gostos que se discutem Alto e bom som qual coisa gasta que já deu a volta ao mundo qual vinho roubado à ânfora da carne qual fina fatia de escuta qual descoberta de uma bela frente derrubado o muro que a protegia. Prefiro o tom da súplica ao cheiro do pão nosso de cada dia. 21


Sequela Um dia uma árvore ardeu para ver se eu pegava fogo. Mas as árvores não vêem e eu só vejo quando me distraio. Saio de mim como um fumo sem fogo e trago a ideia de chama debaixo do olho.

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O outro amor Fizeram amor como deuses isto é: com o olhar. Fizeram amor como criaturas isto é: às cegas e às escuras.

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Guia de expedição O texto escrito continua a escrever-se em ti que não te esgotas no existir e nele libertas notas mais agudas notas mais graves. Poderei viajar sem o saber no som extremo desse diapasão e observar como quem beija o novo rebento de uma velha planta e nele vê o carril tão quente que avança para oeste até encontrar o oriente

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tara perdida


o guerreiro e seus trastes amestrados


Devil and the good evil God O carcereiro perdeu a conta aos dias. Em silêncio regou a planta e torturou as partes verdes extremas às quais te confiavas. Em vão se buscou o parêntese onde o poema se escondia e se copiava como o diabo do vento agarrado a uma saia e o diabo do corpo enfiado entre portas e nas moças gordas depois de mortas. A deusa miniatural não abre mão dos seus maridos e sorri entre as grades com seus dentes de arco-íris a cada olhar mais compridos.

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O correio luminoso Atrás das sombras esburacadas e das fachadas ondulantes se esconde o farrapo de quem espera fosso suspenso de fera esfaimada raiz quadrada de uma história mal calculada. Cá em baixo nas áleas de cimento e de saibro reina o espírito das formigas que transforma toda a série em senda o cordão do grão em estrada e o zero em casa assombrada.

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Três desejos Vamos falar pela noite dentro como duas irmãs e fazer em pleno dia aquilo que a escrita ensina às mãos. Aprender a fala das velhas árvores que conversam sozinhas E acolhem o raio como se fora o seu próprio grito. Ver a sílaba de baba na boca do recém-nascido. Ler na mão suada a promessa omessa de uma noite já passada.

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Retrato na posição sentada Esse cavalgar estático que de ti sobra e se desdobra quando sentada sobre a estacaria de uma cidade lacustre ou à entrada de uma sala hipóstila de mar Esse galopar vergado pelos fardos que o diabo carrega enquanto esfrega o olho da princesa cansado de amar a sua presa a ponto de a largar Esse tropeçar num beijo num bocejo e no que apenas existe entre o abismo e o ninho e a garra Esse recuo do corpo para deixar passar os seus despojos sobrenaturais... Esse olhar que para o objecto não converge pois o seu trabalho é semear imagens e ser o químico que as revela Essa mão pelo pão amassada farinha caída no regaço de uma arca tão antiga como a curva de dor da barriga Essa colisão de nuvem e nuvem no sopé do céu 30


Era Era sentença da noite eu quebrar tudo num sonho quebrar quebrar com a violência de um louco que é o único a não saber a sua loucura o único a conhecer a forma futura. Entrámos em dieta de eternidade e tu que chegaste adiantado à ideia de margem não encontras palavras para contar o insignificado da tua viagem. Era despesa imprevista esta conversa derramada em colchão de gritos de gaivota e, da fala, a pontuação ignota tanta falta nos fazia. Um pouco de decoro no riso e no choro, alvitra a antepassada que em mim escolheu morada. Uma muda nudez na prece e se para ISSO a morte não bastar espera que a outra vida recomece.

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Vizinhança Olho o pátio deles quase despido e lá estão regularmente arrumados os vasos que aqui “basos” se chamam basics da beleza avenca gerânio begónia incenso cacto maila sombra de cinza de um gato. No zénite do olhar o ponto de fuga onde graças a eles — ausentes feridos de ausência vítimas de um sismo ou de uma rara doença – o pensamento deixa de ocupar o lugar que lhe foi atribuído pela vã busca de sentido. Deus perde terreno.

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Número mágico Visitaremos palácios ocupados por proletárias chinesas e guardadores de gansos. As sanitas entupidas serão frios tronos e nos poços ao centro dos pátios ouvir-se-á a palavra de combate de conversão de diversão. Nos corredores vazios galopará livremente o cavalo inconsequente e nós olhá-lo-emos com luas de dor dentro dos olhos sabendo de antemão como chegar aos sítios onde morrer é fácil. De madrugada alguém acenderá aos pés da nossa alcova imunda a trémula chama que apenas devasta o nome secreto de uma noite casta. Seremos barro no fundo da pia negra onde se moldou o sexo e o corpo se fez pela segunda vez. 33


Chumbo, penas e papel Se me distrais conquistas-me. Se me atrais logo me perdes. Nunca mais me perguntes para que serves. Minha pena ĂŠ cor de cinza branco ĂŠ o meu papel. E o meu peso sabe de que lado nĂŁo pesar.

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Pensamento de prisioneiro Quando encher de números a parede que de ti me separa escreverei no céu e serei ave tão rara que os fabricantes de firmamento não saberão como avaliar o meu desejo de parecer não parecer questão de forma e de fundo que a outros deixo resolver em seu favor e contra a minha vontade. E se o corpo garatujar no céu que posso eu não dizer?

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Fibra óptica Isso que está deitado no texto para ser contemplado como um sono sem despertar isso que não dorme no texto mas simula sonolência e imita o massacre isso que evita o pesadelo embora saiba pesar e deixar marcas no leito isso que descansa o olhar e se veste e despe de paisagem conforme o recuo consentido isso que é sombra projectada no soalho, na parede, no tecto, dentro e fora de cada objecto isso diz que não se deve acordar um sexo adormecido di-lo agora para desdizer tudo o que antes foi lido.

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Biografia Não apanhou o comboio em andamento. Não conhecia os atalhos. Não tinha instrumentos de medida. Não procurou as saídas de incêndio. Mas fechava as portas que encontrava abertas e tinha entre as pernas a memória de um número escrito por extenso. Onde quer que pastem seus rebanhos o pastor há-de pôr a conversa em dia... E a mesma erva com que palita os dentes lhe servirá de cama e de companhia.

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O assobio na hora de afiar a faca Não sei se a falta de palavras preenche todo o vazio nem se o erro me corrige. Cada utensílio carrega a parcela de sagrado que a coisa inútil ora esconde ora renega. Para existir, não existindo, preciso de afiar esse meu lado sem uso e dar total razão de ser àquilo que escapa ao meu poder comigo se confundindo...

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Back Tu és a minha linha da frente quando te quedas atrás de mim e lês por cima do meu ombro o texto do mundo. O teu silêncio corrige os silêncios que me cabem e abrem. Agora escrevo dispersos e já não disponho da arma que mutila os versos. Pois mal empregue foi a pequena paragem na meia-estação.

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Quanto mais Quanto mais pesada a água mais rápidos os rios e o olhar que bebe das correntes nunca se sente acorrentado. Quanto mais longe da fonte mais cantantes, os rios... ... neles vi medrar pedra a pedra a vontade exemplar de não voltar atrás. E neles me subentendi qual ponto de não-retorno rota, relato e derrota dos exércitos do sono.

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Troca de narizes Adormecer e acordar fazer-me equidistante adivinhar que a mão já busca aquilo que rejeitou ou tão-só o jeito de enfiar a velha luva o tique taque de quem estuda em véspera de vexame o traço que liga o músculo à ideia de osso e grosso modo a ideia de corda à circunferência do pescoço talvez o rumo que toma a conversa até ser apenas RHUMOR.

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Underness & Above A infância que mais faz chorar é a dos sapatos. Cambados eles descrevem curvas comoventes. Novos eles apertam o coração até ao fundo da garganta. O primeiro sapato diz o desejo de viver descalço.

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Surto Cabe-me roubar estas palavras ao espelho e fazê-las exalar um perfume de epidemia. Ora, a flor de um só dia não sabe esgrimir o aroma sublime da monotonia. Ó grito de guerra colhido atrás da orelha colocado à lapela e regado pelo olhar míope do outro mundo, não cales a voz do jardim onde este em mim se dana e de ti por erro emana.

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A velha cozinha e suas dependências O fogo é exigente e a cozinheira sabe disso quando atiça as brasas e também a mãe quando habitua o seu filho à traição permanente.

O novo ofício Essa que espevita as cobras de lume e se ocupa de romper os silêncios também deseja usar as chamas como jóias e os suspiros como trajo leve ainda que para tanto perdesse a fala ainda que por menos e menos ardesse. 44


Tu Tu eras a mulher coberta de benções que sacode água antiga do capote e tinhas a vocação de vender frutos intragáveis quando em sonhos te revia e te oferecia ramos de ultra-violetas ramos de infra-vermelhos acordava com um travo de amargura na boca e a impressão de segurar o que de ti resta na mão.

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Prisão de ventre Dizíamos à boca cheia a estranheza desta passagem pela terra Sonhávamos desenterrar os nossos corpos que haviam sido esses que tinham caído de mãos agarradas à barriga

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o guerreiro e seus trastes amestrados


à risca

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Menina coberta pelo manto anto É hora de hora a hora me entender. O espelho fala-me com uma voz que me faz e faz-me olhar para dentro. Por ora, lå fico como gato esquecido do outro lado como gata emparedada em novíssimo muro de cimento.

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Higiene matinal Alguém interrompe o seu trabalho e olha de soslaio para as coisas como se o mês de junho não bastasse e o verão dos seres trancasse a porta. Alguém interroga o seu trabalho e sem dor observa duras perdas desejando ficar vivo entre os escombros ou enterrar-se na farinha do futuro para mostrar pata branca a quem passa.

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Seguindo à risca o antigo horário Falo dum certo silêncio reprimido que nem sempre se comporta como som. Como creme ele adere e se espalha e qual fuga de perfume galga os muros zelando pelo bem e o mal alheio quando ninguém se mete pelo meio. Dizem que esse silêncio educa à imagem do ouro e do chicote à imagem do pente e de seu osso. Se alguém o quebra logo ele responde com a pesada artilharia das metáforas. E se alguém encontra outro silêncio outra maneira de ignorar paredes, o primeiro em mil segundos se transforma provando à saciedade e ao mundo inteiro que só ele tem razão de maquilhar aquilo a que o corpo por enfado vem de há muito chamando sua norma.

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A mão busca o sorriso no nó cego da madeira e o olho descobre o cadáver dum bicho no simulacro de bosque. O olho julga atacar ou talvez mesmo calar sempre que a mão fala em sua defesa.

Tenores esse pequeno sol ou esse raio essa coisa instável e segura onde dura a carne que se vira amável e se cumpre o desejo de outro ensaio essa taça bebida entre suspiros esse tombo entre dois pés entre dois ombros onde ficam por roer as negras unhas e se cravam amarelas outras luas menos nítido o rosto e mais rubra a cabeça de fósforo e sua voz sumindo 52


Quando a fonte saciava apenas a sua pr贸pria sede e grande era essa sede, eu estacava a meio do caminho. Nem a luz, nem as coisas iluminadas me reconheciam. Perdera-me a caminho de casa. Perdia o caminho e ficava sentada na berma a ver-me passar e a ver-me sentada como se fora uma forma de chorar.

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Procuro o caule das flores manuscritas. Como no jogo da cabra-cega espero que elas respirem gemam ou gritem para lhes saber o paradeiro. Porém certas coisas só existem e resistem graças à força do desejo de não serem encontradas. Quem as busca apenas persiste por ignorar a regra desse jogo mal se vira logo grita mal se vê logo entorna o seu flagrante delito.

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Cortesia irmĂŁs do frio ganhando forma em pleno galope irmĂŁs da forma ganhando fome quando se apeiam a forma formiga Ă fome a cigarra e ao frio fraterno um dia se obriga

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Rosa convalescente Ainda não sei o que é não sei ainda o que foi. Crescem-me ramos malandros e logo me são podados. As coisas dizem: «Olha para nós.» E o rafeiro fareja algum cheiro rarefeito vindo da brecha que o desejo do desejo jamais fecha.

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Difícil solvência Reparar nas coisas repará-las. Parar para as ver caso elas contivessem razões de sobra. Enganar e enganar-se ficar preso ao erro como se ele estivesse contido em tudo o que parece vivo e ainda se contivesse até à ruína do resto. Reparar para que reste mesmo que o resto não preste.

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Ainda há mestres do arrependimento? O mestre esvazia os bolsos: seu vocabulário lunar voa em volta de alta torre do cimo da qual se salta e ainda não se morre. O mestre esvazia-se mete mãos à obra e pés ao caminho. Gamela de silêncio lhe vai atada ao tornozelo chocalhando. Como o tecido se desfaz de velho assim o ouvido lhe baixa a cada conselho amigo. O mestre não busca o desencontro das fontes fabulosas nem o regresso dos fogos de vista. O mestre despe nossa roupa lhe vai presa à cinta em parte rastejando. O mestre diz que a mesa é de jantar e é de jogo: se agora bem comes, logo perderás. Lambe pois o chão e pisa o corpo. De que se alimenta quem nu não vai? Olhar é meio sustento. Sonhar talvez. 58


Eras-me fera quando rainha posta acrescentavas almofadas e parecias mais alta no sofá. Teu sorriso de tridente teu nobre joelho tão redondo que mais quente o sol se punha, à primeira esquina me apanhavam como cisco no olho ou soco na barriga longamente imprevistos. Eras-me mãe rubra esfera do céu tão distante pudera...

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Andam loucos os galos Cantam às duas às três E os gatos não conseguindo imitá-los rondam o gume dos muros. Cantam às duas por quatro apetece juntar palha e ter poleiro no canto mais escuro do meu quarto. Andam loucos os gatos Leves percorrem as cristas feitas de cus de garrafa. A jovem noite fervilha medra acima dos quintais como se fora vadia parecida aos animais Seu metal frio não fere nem amedronta nem gela a corda vocal Façamos então de conta bichanemos e no sentido do pêlo acariciemos o lombo de quem dorme a nosso lado.

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Numa velha hist贸ria o nosso amor foi castigado com sono profundo. Eterno ser谩 o beijo que nos traz de volta ao mundo.


Nem tudo depende do ponto de vista. Nem tudo se funde no ponto de fuga. E, mesmo precisando de modista, Não andámos todos juntos na costura. Polvilhemos as patas e aclaremos a voz. Entre negra farinha e branca massa nem tudo passa na peneira. Grão a grão talvez sejamos nós essa coisa grossa que a rede retém. Um novo ano aí vem e o velho escangalhou-se como um bolo colado à sua forma. Que prazer eu sempre acho rapar o fundo do tacho. Nem tudo suportou a lei do forno. Nem tudo coze à mesma temperatura. E se todos já cortámos o cordão Nem todos o trazemos à cintura.

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Os deuses sempre preferem tristezas de gabinete. Quando à falsa fé nos ferem de sangue a água se tinge de céu a terra se finge e embora mais visíveis mais frágeis e mais sofríveis nenhuma dor nos atinge. Afiai flechas, ó ramos Rasgai o solo, raízes Seja eu esse alvo onde acertamos Seja eu essas feridas que me dizes.

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Il est tard. On sort de chez un ami. Dans la rue, il fait très froid. Je désire que le froid nous foudroie. Et je te rapporte des mots rêvés la veille: «les petites chaussures qui durent toujours». Phrase incomplète ou trop complète me dis-je en enfonçant la clef dans la serrure.

De súbito, sinto a companhia da chuva, e tudo o resto, por arrastamento, me faz companhia. É preciso estar a dois para ser consolado de cada grande alegria e da lírica chacina que acontece quando à nossa volta cresce o número do que é e do que há. Bendita a chuva desejada bendita a que demora bendita a que não chora e, cheia de pudor, se antecipa. 64


A mão que cura, a que apela a ignoradas formas de saúde. A mão que acena, a seu sinal a paisagem, ora se acende, ora se apaga. A mão cansada no que é mais útil se pousa e no que é belo repousa como carne inanimada agora deveras fútil.

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Um longo engano feroz como plágio belo como despedida certo como estar de pé. A que me refiro se o sentido se retira fera a forma logo espreita e a seguir se deita ao colo da insignificância simulacro de criança sinónimo da mesma ofensa? Pois a vontade de partir querer quebrar tudo antes de sair e ser objecto de estudo a este corpo celeste faz companhia e faz falta.

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à risca


outono Ă tona


Peur panique flûte de Pan odeur de lutte et douce rivière de sang Là où je brûle là où je sens naître la brute paître la belle tous deux en rut Derrière les grilles vive l’amour qui goûte la mie et gratte les croûtes Vivent les mains si elles pétrissent Et vivent les doigts qui nous envoûtent

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Uma maré de distúrbios que usamos como uma écharpe várias vezes enrolada ao pescoço e o prazer de cuspir a carne para chupar longamente o osso

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DEPOIS DE VOS OUVIR Não consigo imaginar cena outra ora ruga, ora véu de semi-aberta ostra A mente que segrega a musa – isto é: a gera e a hostiliza – à imagem do que fora descobrir ter pai e mãe filiação amante e amante coisa Essa mente descobre apenas que em si mesma não está só Se fala pode falar igualmente ser falada Desigualmente virar a página e repousar qual flor seca entre esta e outra folha

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Moulin La parole se donne pour tâche de venir après tout le reste pour savoir refaire son chemin Parfois – ô parole omise – je m’en veux de tant rêver dans la position assise Parfois – ô parole ailée – j’ai très très peur de mourir avant d’avoir embrassé les causes qui m’ont dressée Heureusement j’ai quelques longueurs d’avance sur mon corps et mon cœur en promenade se porte comme un vieux charme Ce nom CORBE qui sonne comme panier en allemand ce nom drôle et familier me permet d’entendre distinctement ma tête qui roule dedans

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outono Ă tona


cadeira

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I Mais vale rachar o cu no chão que é de todos do que pousá-lo em cadeira alheia.

II Portugal será porventura o único país no mundo onde um ditador morreu caindo duma cadeira abaixo. Por isso esperamos sentados.

III A realidade a que nos acomodamos é uma brincadeira de mau encosto. 75


IV Na cadeira do pai de seus braços deformada de seu peso mais próxima de ser um corpo aprendi a velhice. Como o vício de virtude se vestisse, ele sabia que todos os corpos são celestes. E assim cresci: sentada à direita de meu pai ou ao seu colo?

V Na cadeira nos fazemos animais quadrúpedes e contemplativos. Nela buscamos o caminho mais longo entre o corpo e a cabeça que o sustenta. E nem sempre sabemos se ela é nossa quando pensa. 76


VI A cadeira é um corpo sem cabeça. A cadeira só conta até quatro. Lagarto, lagarto, lagarto... Se posso viver sem cauda sem miolos viverei. À terceira é de vez. À quarta me sentarei.

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VII Na cadeira encontro um motivo vivo: o nó da madeira como o da garganta e os veios quais cabelos duma santa. De pau carunchoso as amamos mais cadeiras ou santas. E as dores dos homens que de pau não são ora nos merecem o prazer do medo ora o que nos resta de outra devoção.

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VIII Em teus olhos bebo deles me embriago. Se não caio ao chão é por estar sentada. Se não subo ao céu é por ser tão leve que no outro mundo me quero pesada. O espelho diz-me diferente mas mente...

IX Quero andar de gatas como ela minha cadeira primeira suspeita e suspensa como aquela ideia que nem se diz nem se pensa Cavalo sem falo sem fala a chavala... À madeira viro costas pois não serei eu a enterrá-la. 79


X Entre as pernas e o encosto sobe um capricho de chama. PorĂŠm outro desejo me chama lume brando fogo posto e toda a ĂĄgua do mundo me chora e me desengana.

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XI Em torno da cadeira a fúria circular dos insectos e um foco de luz que fere os teus olhos para sempre abertos. Paira um livro ou uma cantilena do galho mais alto cai a folha. A sombra cai e uma fome de fonte uma sede de fantasma ora nos bebe e come ora nos pasma. Era sarça ou cadeira aquilo que ardia? Mas as tábuas melhor destino não terão do que este assento onde o criador de sua má criação de novo descansará.

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XII Caído em esquecimento dele se disse talvez que seu rabo não cabia na cadeira que a cadeira não cabia em sua casa e que trocara o trono pelas três letras da palavra asa. Dele se disse porventura que era rabo de pavão feito para varrer o azul. Do céu nada cai mas isso magoa o chão.

XIII Os pés ainda não chegavam ao chão ou talvez o chão deles fugisse... 82


XIV Na cadeira espero os visitantes do espírito. Na cadeira espero não sei se a chegada se a partida e assim sentada tenho mais olhos que barriga. Na cadeira sou espectadora espero as visitas da carne. Quem mora aqui? Quem mora?

XV Entre os muros habitados e o céu em acção de despejo erra um beijo. Ela não tem estofo para tanto e no entanto aguenta-se à bronca. A tonta tem os quatro pés bem assentes no chão. Ouvi agora senhores o cu e o coração. 83


XVI Não deixes que eu amanheça. Não deixes que eu entardeça. Não deixes que anoiteça. Encosta-te como quem pede e nada recebe.

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XVII A formiga tem sua canção. Sai-lhe dos pés e das tripas. Cola-se à barriga negra e não chega a soar. A formiga desafina tão fina sua cintura tão escura sua voz terrosa. É pó de poeira é seu canto. Mas trepa aos tronos deste mundo porque nada lhe pertence: nem carreiro nem formigueiro Nem carreira. Uma vida não lhe basta para tombar da cadeira. Eterno inverno lhe foi prometido. E o verão parece longo como se fora castigo...

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XVIII De nada serve a cadeira quando parte a perna. Mas com a perna de pau o pirata pode caminhar nos contos do mar imenso. Para contar cadeira faz falta. Sentada chego onde penso e a pé não sei voltar.

XIX A velha conquista a custo o direito a abrir as pernas quando se senta e a ressonar quando sonha e a cuspir os ossos quando se engasga. A velha conquista a custo o direito de mijar nas cuecas a não seguir as conversas a migar bolo no chá e a ser a bruxa má. A velha conquista a custo esse lugar que não 86


cadeira


a vida a andar para trรกs

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Diz, M茫e, Se quem transporta transforma Ou se transforma? Diz-me Que nas claras profundezas Se ouve aquele som de voz Que s贸 se consegue ouvir Quando nos surpreendemos Falando a s贸s.

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Quando eu era pequena metade monstro, metade bela tinha medo de esquecer as vozes dos que partiam ou partiriam e eu amara. Fechava os olhos e lembrava um por um o timbre, o volume e o brilho daquelas vozes já mentais mas ainda sem fantasma que se deixasse habitar. Agora, se abro os olhos o mundo desaparece e com ele meu amado; por isso os guardo cerrados, faço força para ver línguas de ouro lábios rubros e atrás desse tapete o sono de vez perdido. Existiu uma mulher com ciúmes de sua própria imagem. Essa mulher era eu mas não a miragem, nem o olhar que a olhava.

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A Mais Velha No baile de fumos e distâncias a mais velha dança aos soluços fazendo rir de si mesmos todos os olhos enxutos. A mais velha pensa assim: não tenham medo que eu tenho. Os medos medem-se aos palmos e a coragem de ter medo nunca muda de tamanho. Percebem ou não percebem? Que se lixe quem não pesca! A velha é fresca não acham? Mais gaiteira não se encontra... A velha é a mais velha. A velha é a mais velha história é o mais velho começo e o fim mais velho de todos veio mundo com maus modos e a modos que se despede enquanto dança e soluça muita parra e pouca uva. Não lhe perguntem se chora pois lágrimas come e bebe é isso que a mantém viva. Porque a vida não se escreve. 91


Da vida bebo Dos dias bebo o veneno digamos delicioso e seu efeito retarda o poente ou porventura a dura necessidade de fazer prova de vida E sou como sapato abandonado que na sarjeta se encontra sem par pela primeira vez A chuva desenha o rego que ao esgoto me há-de levar Não sei que palavra tenho – regato ou talvez regaço – para aqui me resgatar me ser e me situar.

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A velha cadela corre a mando de seu dono em vez de presas traz chinelos. Em vez de presas traz carrascos. Traz as pedras com que sonha ser lapidada por deus. Meteoros, seixos e diamantes eis o que a cadela fez descer do céu à terra que a vai comer. E se a cadela for obediente de olhos postos no chão seus ossos a outros dentes servirão.

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Sonho que o meu amor está nu deitado numa manjedoira de palha. Um burro cor de marfim parecido à sua sumptuosa pele de recém-nascido lambe-lhe os pés rugosos e frios. E eu, duvidando de ser a vaca porque me vejo como sou, digo-lhe, baixinho, à rosa do ouvido: «Menino, alguns nascem com um anjo lá dentro, outros com um escravo, outros com a sombra, apenas». Quero afagar o meu amor, mas as minhas mãos são muito pequenas. Então pergunto-me se ainda existo e agarro-me a esta imagem como se ela pudesse salvar-me.

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Aula 1 Conta-me pelos dedos da mão quanto me somas e eu te subtraio. Diz o livro único que a chuva fina afugenta a caça grossa. Do real, percebo pouco. Portanto faz lá dois mais dois.

Aula 2 Com a mão no zénite e os pés colados ao alcatrão Com formigas em carreira e a voz colada ao calor dos muros Imagino que estou de férias – férias flash, férias click-clack – observando aves imensas paralisadas prontas a cair recortadas na tua eternidade. 95


Tratado de Ortofonia para Pedras Falantes O professor de sono sonhando dizia: «Isto, menina, não é poesia. No pior dos casos, – e o caos não é para menos – é lição de ortofonia. As pedras falantes serão seus clientes. Únicos e melhores... Fores onde que fores, foge das marés dos ganda estupores que lambem as mãos e não dão com os pés.» E eu assobiei Tapando o zumbido. De troça e despeito – zunia no ouvido e estancava no peito. Uma árvore, aturdida, Me deu sua fria sombra. E eu soube que a sesta Sob rama amiga É mais bem dormida Que a noite mais longa. Em tempo vindouro Olhos, ovos pisarei Até ser capaz De não calcar nem quebrar. Antes isso que escrever e a pedra ficar de pedra. Antes isso que falar e a pedra ficar dormente. Ao esmerar-me na verdade só me lembro de quem mente. 96


Para Saguenail #30 Há olhos que vestem as coisas Antes de as olharmos e vermos Com o saber muito antigo das parteiras Que não mostram o bebé demasiado nu E antes de conhecer os ossos da cria A mãe exausta passa pelas brasas. Há olhos, como os teus, que apenas despem Porque isso herdaram de outros nascimentos E de conhecimentos menos mansos Que à carne não davam o menor descanso. Se eu virar costas, estou segura, De que o avesso se endireitará E um queixume virá rastejando A fim de sublinhar que meus pés se afastam – mas de quê? – E que meus pobres olhos já não bastam. Na dureza das camas confiámos Ou será que o corpo endureceu Antes de os olhos vestirem e despirem Para enfim devolverem ao sono O muito que do tempo lhe pertence? Dizes que invento, amor: eu vento, eu tento.

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Aquilo que pensa e avança Não precisa de sombra Para se tornar criança Nem de levantar a cabeça Para olhar por cima dos ombros Dos escombros. Ninguém aprecia a graça Do dia que corre agora E amanhã não passa... Se não tiveres espaço na cabeça Podes procurar um buraco Onde se possa pousá-la E, por assim dizer, Inutilizá-la. Terra-a-terra a palavra fria Não reconhece o caminho Que um dia percorreu Até se tornar mercadoria.

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No incêndio Pertencer à baforada. No silêncio Caminhar na cinza. No incêndio Buscar a fonte calcinada. No silêncio Escutar a água sobre a brasa. Circe cortará os braços para que lhe cresçam galhos. Circe calçará os pés para não deitar raízes.

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A caçadora furtiva Os amigos querem-se antigos Estafada é a voz que os chama Seus corpos não cabem nas fotografias Suas mãos não merecem nem a traição dum aperto nem a impressão de deserto que nos ocupa agora Os amigos querem-se mortos ou vivos Despidos os sobretudos sentam-se perto da leitura e ardem para que nós tenhamos luz na razão indirecta da sua ausência tão longa quanto amável e discreta

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O azul do céu perturba todas os seres na terra pousados. Olhai-o de relance e eis que voz do amor parece nascer na raiz dos dentes. Precisas de tocar teu corpo para saberes se existes: é essa a lição do azul do céu. Impossível cenário acima da minha curta marcha, vela pelas marcas dos meus pés, e sobretudo pelo apagamento a que chamamos caminho.

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na pequena aguarela desbotada dos teus outros olhos-olhos, procuro o rasto do nómada personagem lenta e coxa lenta e roxa cuja marcha decidia o traçado dos caminhos e cujo tempo esperançosamente retrocedia na miniatura negra e cinza das tuas outras unhas-unhas procuro o torrão onde te enterras sepultura em constante crescimento essa cama comida e roupa lavada cova por ninguém cavada onde cabe a terra inteira na silhueta e no perfil que ante nós breve desenhas procuro dores e dores tamanhas e o desejo de nascer e parir num só instante como se fora o dever e o direito do amante

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Toilette Com a enxada enterrada na cabeça e a cabeça afundada no regato longamente morre Em águas alheias se lavou delas bebeu sem pudor nem sede e mijou o que não lhe pertencia Seu caminho não cabia num papel cujas margens borratadas de suor decerto recordavam o odor da frase Mas a escrita já deitara a perder as funções que Abel lhe confiara em fraterno e sangrento testamento. E o texto deixou de surpreender a mão sibilante que escrevia seus dedos de serpente sufragando todo o sumo da caligrafia.

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Poder esperar até pelo beijo inesperado pelo derradeiro beijo sem jeito nem motivo pousado no ombro órfão como o pomo da discórdia abandonado num cesto como semente de profeta todo o amor cheira a incesto quando já nada lhe resta.


Depois da hora do cravo, o tempo da fechadura São duas faces da mesma lua hoje escondidas São duas faces duma moeda hoje em desuso E são braços destreinados e aquele olhar que ignora como agora distinguir entre uma velha armadilha e uma nova sepultura O corpo que o transporta é de herói antes do tempo. Não sabe se a fama o bafejou ou se é a fortuna a fustigá-lo quando se sente descarnado e cada vez mais frio. Qual olho de peixe desdenhado Qual espada em seu grande prato.

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SUITE GENETICAMENTE MODIFICADA pormenor de sonho 1 Quando os heróis regressavam a casa secavam as lágrimas e davam nomes às fúrias. Esperavam que alguém os esperasse mas em vez disso eram recebidos por multidões que só queriam vê-los de costas. E assim se quedavam para a posteridade recortados sobre fundo de lágrimas secas sobre fundo de inúmeros nomes sobre fundo de fúrias em fuga. Quando os heróis partiam eram enfim vistos de costas e ficavam suspensos no primeiro passo.

pormenor de sonho 2 Quando os heróis regressam trazem os pés sujos de oceano. Mal chegam a casa guardam os dois na salgadeira e trocam-nos por pés de água doce. Fazem-se mais leves a caminhar quase se confundem com os outros que nunca partiram e ainda menos voltaram. 106


pormenor de sonho 3 O contrário do destino bate à porta mas é pesada a mão que vai abrir. Ouve-se ao longe o pranto dos sinais e no fio do horizonte o olhar pousado não se permite um instante de descanso. Acorre à casa o bicho mais manso saudar o calor que se derrama na soleira gasta. Tudo me esquece e me escapa esqueço e escapo escapo e esqueço e a cada fim procuro outro começo.

pormenor do despertar O amor levanta-se mais cedo em sua casa agora adormecida. Sobe aos telhados de vidro e ruge como uma fera. O amor morde e deixa a marca de mais uma ferida consentida. 107


centro de mesa Eu sei como se come o resto do resto deixado no prato. E se espera já também que alguém lá reze em voz alta pelo pão, o queijo, o beijo, pela paisagem que falta.

depois do jantar Desejo dormir num quarto muito frio e ouvir mais uma vez o cheiro da lenha em mim na escuridão das aldeias.

pormenor do sono Tapa-me e destapa-me como uma chávena de chá doente à nossa cabeceira. Agora esfrio eu agora esfrias tu. 108


a vida a andar para trรกs


talism達


Pode-se ser fogo e vento e o vento pode soprar para aliviar as feridas do fogo ou para atiรงar suas dores coloridas

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Ecossistema Vem um cão a cheirar o longo sexo duma rua adormecida. Corre eufórico e entendemos que é o único ser vivo e a única palavra um piropo e o prato único o fígado do próprio Céu. Vem um cão a lamber os pés às casas cresceram pés às casas mal os donos bateram as portas mal as donas bateram as asas. Ao seu encontro virá o espectro um órfão com olhos de peixe virá de costas; deixo-te adivinhar o número de moscas que é preciso para coroar a réstia de luz dita necessária. Por fim lembrar-se-ão da mãe de tudo tão mirrada que não se atreve a aparecer em público erecta porém possuída pelo raio qual ramo calcinado da primeira árvore em fuga.

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Há uma máscara mais fina do que as outras A máscara de despir a mágoa E um breve sinal do lume Antes de se apagar. Há o estribilho da solidão E a vertigem do pássaro entre duas sílabas. Há o teu corpo deitado Num tapete de erva negra E a seu lado Uma boca donde saem Milhas de lenços de sangue. Não quero ser devorada pelo fogo porque é muito rápido nem pela terra porque é muito lenta. Olha-me com os dentes como dantes e agarra com as mãos aquilo que não sentes. Rasteja, meu amor, até à entrada como a seta adormecida ao tempo que é disparada.

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DomicĂ­lio Escrever menos Ver mais Escrever mais Ver menos. Crever.

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I O touro marcado a ferros pertence apenas à morte e tu sabes disso. Trouxeste-me esse campo semeado de chifres onde a cidade não se constrói e o luar não brilha por falha técnica. Agora há noites mais tenazes dias e dias de rabo na boca e toda a insónia é pouca. II As casas ardem no sono dos pássaros ardem com minúcia como se examinassem as minhas entranhas. Ardem o doce ruído duma velha tempestade; da minha cidade só resta metade e o que escapou é uma orelha mole à qual posso dizer as coisas mais estranhas et tu peux ajouter que je suis folle. O arco-I não é aqui. 115


Chamada à realidade O que devemos às ruínas e a esse perfume a que chamamos pensamento O que devemos às casas e a esse engarrafamento de sons a que chamamos prazer O que devemos às caves e a essa leve embriaguês a que chamamos medo O que devemos à porta e a esse olhar solícito que nos pareceu feroz porque nos chamou para dentro de nós

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Para te estatelares no meu quintal Picado pelo génio como por uma abelha foste mulher e tiveste então muitos cabelos para penteares e te despenhares do teu pedestal e tiveste então cabelos a arrastar pelo chão. Buscaste a opulência nas redondezas redondas e nas pobres profundezas.

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Se alguém me diz que a vida é assim assim assim e me pergunta se quero morrer sem saber o que é a vida respondo que sim quero morrer velha e desprotegida.

Fuzilamento Hoje medi a densidade das fêmeas a leveza da floresta e o pulso do poente em cujo regaço desfalecias. Enchi de vinho o copo e entornei o corpo. Nenhuma legenda convinha a esta página colada aos dedos como a língua se encosta ao muro de marfim. 118


Podemos ficar aqui sentados a mexer na merda com os pés as mãos lavadas em infinitas águas e a cabeça acima de si própria como coroa. Olhei a beleza e pedi-lhe perdão por as outras coisas não serem tão belas. Olhaste-me com olhos de bolor e os cheiros do bosque pintaram-se de fresco.

Avulso E tu não sabes se o pesadelo cresce ou se cresces tu no pesadelo. Pois as meninas dormem de olho meio aberto como se gastassem o saber da respiração e desacertassem o bater do próprio coração e seu relógio de pulso. 119


Caia uma corda do céu para eu subir Caia uma estrela para eu corar até à raiz dos cabelos Caiam os braços Caiam os pêlos, os dentes Caia mesmo o coração Se não cairmos do céu não saberemos pairar acima do chão.

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Retrato de conjunto Fui eleita pelo espelho. Por detrás do meu reflexo o mundo muda. Eis a breve história dum casal desavindo nem opaca nem transparente ou apenas indecente. O que se passa connosco não se repete nem sei se é belo aquilo que promete.

Amada à primeira vista Esconde o ódio porque o ódio esconde. Esconde-te no ódio para seres vista. 121


Corpo celeste Eu pisei os passos duma dança escrita no chão e passei entre as gotas como um talismã. Acordei com uma ideia fixa e satélites que em seu torno gravitavam. Pisei os pés do meu par para ele não se afastar. Oh planetas incandescentes Oh conceitos queimados vivos Oh torrões de terra atirados ao céu. O corpo abeira-se da árvore que lhe estende os ramos. O corpo sonha uma árvore habitável e um planeta deserto qual casa dançante nem tão longe nem tão perto.

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A in disciplina da morte Somos em nós inúmeros mortos Os nossos nós que já morreram E os nós outros que se perderam Ou se perderam de nós. Que fazemos nós para não os perdermos? Que fazemos para não nos perdermos? Que faço eu para não te esquecer Nem te deixar morrer? E que faço de mim Cada vez que chego ao fim?

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A prosa ideal do futuro Por que choras muro quando eu quero que as noites se atropelem? Teu pranto é de pedra. Pudera… E eu não posso deixar de ouvir-te pois rio com vontade de chorar e choro com vontade de continuar. Ó muro da velha casa que te vergas para apanhar uma coisa brilhante. Moeda? Estrela? Bilhete? Um instante? Um alfinete? Ou uma dor lancinante? Entre ti e mim medrou a fina flor da fúria por acaso e por incúria. Também ela dobra a espinha e abana a cabecinha e murcha de paixão pela mão que a colheu como eu. Também ela nasce e morre numa brecha no dia em que o dia não começa.

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Figura tutelar E ora vem a real costureira tirar medidas a sua majestade para um vestido que não se fará. As cidades submersas do amor dão cambalhotas debaixo de água e os antigos carrocéis giram nas veias cansadas da madeira. Escreves com letra miudinha numa página arrancada ao grande livro ao livro frívolo onde eu morro e morro sem premeditação. Escreves no estilo arrojado e frio dum beijo entre as pernas entre as pernas calculado para a festa do inverno. E ora vem o tecelão com o rolo de seda debaixo do braço para o vestido que a rainha não usará. Escreves porque também sabes que ninguém te lerá.

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A menina descobre um dia que atrás do espelho não está ninguém. Assim me ardem os olhos de nada ler. A servidão das palavras não me poupou a outros trabalhos que das mãos alheias para as minhas passavam. A menina fugia e as nossas vozes não a encontravam. Sua sombra cresce no céu cada vez que sonhamos imitá-la. Vi o sol sepultar-se em mim e nascer veloz no mercado negro coroado de setas beijado pela menina e pela boca de outros atletas. Há na palavra escravo um espelho que me obriga a escrever. E a única certeza é a de não me ver.

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O início do ensaio Nesse instante as mãos desejam ser maiores do que o corpo que afagam. Porém o corpo não pára de crescer. A pequena mãe que nele traz não se cansa de morrer e cada esboço de fim fica para trás. Neste instante as mãos descalçam as luvas o corpo despe-se das carícias e no lugar dos mais belos abutres já só voam as palavras. E no sítio dos comboios já só passam silvos e suspiros e um exército de janelas invisíveis.

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Só nos responde a força do atrito e um coração que rompeu a sola e o rufar aflito do pequeno tambor que não foi à escola. O que dizemos desliza pela superfície polida dos espelhos; por isso e por aquilo nos devolvem imagens deformadas: é a morte cansada de subir escadas e uma brisa que desirmana os cabelos e a beleza a espezinhar de vez a origem das coisas. Sopra, então, sopra quando o meu corpo se veste de ferida e a minha voz embargada desfolha aquela flor que se despe para eu ser amada.

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O outro mundo O outro mundo não tem vigas nem alicerces cabe num olhar que estuda a mão e no rosto que por nenhum outro trocavas. É como miolo desse pão que cresceu muito e sacia sem pesar pão de eterna primavera cozido em luto de forno negríssimo de todas as cores pão de favores e de nos saborear por dentro. O outro mundo falta a todos os encontros sala de visita imensa e fechada mapa desenrolado a teus pés aromáticos. Julgas que é pó, meu amor? Ó suor dos pêndulos Ó forca dessa carne de cantilena Carne infantil Carne de refrão de floresta Carne para canhão Nem explode nem presta.

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Mal ou bem O dia não envelhece. Se lhe falta ou lhe sobra cor sabe-se lá… No cárcere do crepúsculo morrem as palavras do pai. Não as últimas. Mais atenção, disseste menos intenção. Ou terei eu percebido mal? E os próprios gestos perdem sincronismo à medida que se sentem observados. Assim os homens perdem amor quando se sentem amados. Por fora falam as folhas trémulas no eterno pino da Primavera. Falam por fora dos velhos ninhos e dos novos campos de devastação. Ó aprendizagem do desgosto lenta como a mudança de estação.

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Abrir mão Agora a tristeza não é secreta cheira e soa a lição de moral. O soldado morto diz à namorada amo a tua mão comprida e a tua pequena ferida. O céu está rouco ou será a minha voz que falha e tudo atrai a si como um precipício. Há muito que a cabeça vai à frente e eu atrás a mimar um animal doente. Ela conversa com alguém e esse alguém não sou eu. Porém esse corpo que deus não me deu também quer ser meu. Está louco o sol e a tristeza já não é discreta aula de dança aula de morte que entra pela janela aberta.

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Partes mestras E o corpo poderíamos decompô-lo em mestres e discípulos se as palavras não fossem espezinhadas antes de serem mal ditas. Porque só reconhecemos como nosso o vaso de asa quebrada e uma certa ave de asa caída e o pano de céu que nos tapa a vista como se fosse uma ferida. Porque guardámos o novelo de todas as linhas de horizonte para que nada nascesse atrás dum monte. Porque era agora a hora dos que em breve não serão e do que é belo e breve em vão. As árvores também ocultam o caminho directo para o céu. Elas desenham sendas no chão e também aquilo que parece mas não é prisão. 132


O tradutor fala a palavra doutro na língua sua de si. Na outra palavra tropeça e tenta levantar voo. A língua de fogo lambe-o até aos ossos e ele demora a renascer das cinzas. E agora assina mão assassina. O tradutor fala a palavra fim na língua do pai na língua da mãe. Mas quem não faz assim? Quantos somos? Quantos fomos?

São São palavras com a cabeça a preço Pequenas manchas a alastrar Ditas alto fazem rir Mas baixo fazem corar. E são bichos que atravessam a estrada Na noite da longa mamada. 133


Túmulo profanado Ela disse estou morta mas meu pai é eterno seu túmulo será pilhado no próximo inverno. Ela disse sou a primeira a matar de mãos agarradas à barriga pois a regra do jogo a isso obriga. Ela disse nos meus sonhos há casas e casas e um quarto secreto onde sempre nunca se vai nem de longe nem de perto. Ela disse há uma frase instável no meu sonho onde sempre nunca se vai excepto para mudar de casa mudar de asa mudar de pai. Ela disse é preciso mudar de casa e deitar os sonhos fora ou queimá-los como outrora e arder na mesma brasa.

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Ela disse truz truz truz e brincou com os dedos na madeira contou atĂŠ trĂŞs virou-se morreu quem se mexeu e quem olhou danou-se.


Mutilações O artista engana-se engana-se esquece muito e pouco faz por isso a sua obra tem mais fundamento tanto faz. O artista veste-se de fantasma e erra na floresta. Os ramos rasgam-lhe as faces e os galhos mais baixos abrem-lhe os pulsos. Quando volta a casa, desfigurado dá murros na mesa ou bate na mãe morta ou na filha que não passa da cepa torta. Esta é a sua obra também eu não sou capaz.

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Mutilações Escreve agora a música que os muros trauteiam como eu dilapidei o meu tesouro. Desenha agora a árvore que rebentou por dentro. Mostra agora o coração com uma flecha no centro. Vivi de brilho e cuspi ouro pela boca. Se ninguém me quis prender foi porque não dei caça não dei luta nem falei em razão de força maior nem sequer do futuro que me escuta. Este livro custa a abrir e aquela porta a fechar. Desata agora a chorar mesmo sem querer mesmo sem sentir. Chora por tudo o que não está para vir.

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Um anjo com cabeça de macaco não subiu ao céu donde caiu. A cada sorriso sua estação e a cada pedra sua interrogação. Para ires onde eu vou não precisas de caminhar. Eu também não me viro para trás quando quero saber donde venho.

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Arca de Noé Entre o meu e o teu olhar não há um caudal nem uma palavra completa. E o próprio ar é um cárcere onde o corpo cativo não desperta. Colhi os sinais da terra e vendi-os aos vendidos. Eram lapsos de luz caudas sem lagarto rabiando, falando de boémia rabiando, falando de abstinência e do que morre em nós depois da urgência.

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Primavera no Pátio Depois da tempestade de estuque os dias começam a crescer e no bosque mental despertam obscuras rainhas africanas. Quatro cães bem maltratados tiram a limpo o meu caso: com os olhos estou mais perto e com as mãos aperto… Depois da tempestade de cuspe os dias começam a medrar e no bosque em carne viva há moiras encantadas e moiras de trabalho. Na cave arranco a cabeça e no sótão deixo a alma dos sapatos.

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Plantaste no céu todas as estacas zero. Depois dançaste sobre as campas e cada passo media uma distância que já não existia. Dançaste agarrado a uma ideia antiga ou a uma mulher nova. Largaste mão de mim mas eu segurei-me nos teus pés e fiquei pendurada no céu ao contrário ao contrário.

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Não fomos feitos um para o outro. Fervemos em pouca água pouca mágoa. E voltamos ao degrau escorregadio onde fomos mimados. Ao degrau polido onde os nossos pais nos abandonaram quando eram jovens e nós éramos velhos. Rolámos pela escada de opala ou ficámos a mendigar uma esmola de pólen ou apenas a pedir que dissessem mal de nós e nos deixassem sós. Não sei se a casa estava fria ou a cabeça cheia mais vale uma mão vazia do que uma ideia.

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Retrato-robot Vim tão depressa que ainda não estavas. No teu lugar uma planta esguia crescida no escuro uma pérola a perder o oriente um buraco num muro muito quente.

Robot-retrato E Deus poderia ser representado Forte e bem alimentado Como um animal reprodutor Um bicho não se sabe, se violado Pelo desejo ou pela dor… 143


Retrato-retrato Alguns falavam da educação pelas imagens e eu de como a palavra mar a certas horas lembra o ricochete das baleias ou o sol morto por uma bala perdida ou simplesmente a tristeza do sexo.

Robot-robot Tenho vergonha do papel demasiado nu do dia demasiado branco e das pragas que rogo ao fogo como se as palavras fossem pontos cardeais e os meus inimigos meros sinais tu e mais tu e mais tu e tu cada qual no seu no seu canto antes de começar o jogo. Tudo muda de tempo tudo muda de estado. E nada a nada poderå ser comparado nem mesmo as cinzas dum dia mais cinzento. 144


E o destino vinha em retalhos lembra-te, bocados pequenos e poucos olhares despidos, inadvertidos. E o destino poisava como uma jรณia pesada no peito outrora coberto de beijos recheado de suspiros. Comeรงava a ser tarde ou fazia-se cedo entre duas salvas de tiro ou o tempo fazia-se em segredo nos teus lรกbios pintados a fumo nas palavras somadas ao passado ao presente envenenado.

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O fim encontrado à pressa Uma coisa que se vê ao longe uma imagem que se perde quando nos olha de perto e vibra em nós como miragem doutro deserto. Sacrificámos o fim como um animal para o comermos e não nos fazer mal. Peixe sem espinhas, a tristeza refeição de velho… Não é preciso apetite para me abrir a boca nem motivo para acabares o prato em silêncio nem morte para estares vivo.

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Uma luz que faz os pássaros parecerem pintados no céu e a boca pintada na cara e todos os erros irreais. Não me olhes com esses olhos de quem viu o céu e fugiu de susto. Com essas lágrimas furtadas aos olhos vizinhos mal azul da porcelana verdes tormentos das pedras dos dias escuros sem noite das noites claras sem regra.

As moedas tilintam no bolso do velho e a chuva diz algo que está certo trajo de gala mortalha da rainha do deserto. 147


Les arbres passés maîtres dans l’art de s’agiter saluèrent une femme plus longue que le chemin que tu devais parcourir. Toi qui as traversé tes propres flammes pour bâtir une tour de cendre.

Et toute sa vie gisait sous son lit pas moyen de l’éveiller ni la moindre envie. Les femmes faisaient des petits gestes et de grands efforts tandis que nous dormions à l’ombre d’un combat. Nous n’avions point raison pour ne point avoir tort. 148


Casa redonda Mente quadrada Dei voltas à casa do meu pensamento mas não encontrei a entrada. Lá dentro o meu amante estropiado bebia bebia como quem dá um recado e depois fica calado. Dei voltas à casa da única entrada porta incerta porta errada.

Quem cospe fogo também se apaga. E a palavra disparada para dentro da boca não quer dizer nada 149


Qualquer coisa ao sul Ficara na cama a dizer barbaridades com a eloquência dum bêbedo que não quer voltar para casa. Agora a forma é fugidia como a terra destapada estátua jazente dum delfim anfíbio fruto mirrado de árvore ausente.

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Dois homens vêm à fala na boca cheia da floresta. No inverno queimaremos as nossas paredes que tanto queriam ser de papel e lamberemos os dedos como gotas do último mel. Deixa-me, amor, ser osso e sê tu a carne do começo. E vamos de mãos dadas com o caos traçar círculos à volta dos objectos ou lançar corpos no charco. Depois iremos pescá-los com o mais belo barco.

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Um pássaro alisou a ruga do fato cinzento e caiu no céu como no fundo duma cisterna. Caiu como fio de prumo como pedra mágica primeira e eu soube a parede enquanto tu disseste as coisas sem rede. E se deus não der ao menos empreste.

152


Eu não sei contar: A velha perderá um dente na sopa. No inferno da escrita arderam as ideias. Com este papel limparei a boca. Eu não sei contar: lido bem com os buracos e sua língua lunar com a falta que fazem os sentidos achados ou perdidos. Ó mortos sentai-vos e ajudai-me a explicar isto que não resiste às palavras. Porque eu voltei da fonte de cântaro vazio e matei a sede a sangue-frio. Ei-la aqui deitada a meu lado a sede mas eu não sei contar o que houve entre a fonte e este lugar.

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Nos teus dezassete anos Será que entre saltos e sobressaltos vais tu brincar com a alma já que eu não pude? E que depois ma vais trazer embrulhada num jornal quando eu não souber ler? Quando a minha letra tremer como o bailarino oculto a que todos sabemos desobedecer. Não vejo e não creio porque o meu corpo está cheio dos breves beijos que te lançaram dos anos-luz que por ti passaram e do sol que foi mamar a outro seio.

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Eu não queria deitar-vos neste papel de hospital nesta cama branca que me cheira mal. E será que eu precisava deste instrumento que me deixa ver cadáveres em tudo o que mexe e a fresca angústia da infância em tudo o que já não cresce?

Trocas de calor Podem as vésperas falar com a espiral branca do pirata e as mascotes de amanhã virão em geração espontânea. Podem os olhos vermelhos ver o mar e os lábios azuis beijar a lua. Possam os velhos descansar no meio duma frase que não seja sua. 155


Oh amor de todos os amores ácido como um banho quente longo como um naufrágio doce como sumo de floresta. Não se pode estar na poesia como numa prisão pobre contagem de cada dia pelos dedos duma bela sem senão e nenhuma parede onde riscar o par do número par. Nenhum espelho nem a vontade de o quebrar.

De todas as águas a mais fresca é a que corre pela espinha abaixo aquela que apaga as luzes e acende a chama das plantas aquela que se verte gota a gota na boca de deus até ele morrer na companhia dos seus. 156


Um corpo abandonado nem sempre evoca o areal de ouro onde deu à costa. O observador não sabe se o corpo está vivo ou morto. Um pequeno animal cãozinho, coelho ou castor vai lamber as orelhas do náufrago que estremece. E aí se decide se a história recomeça e qual. Se o olhar se corrompe se a cadeia de feras e esferas se interrompe.

A forma é uma doença da matéria A forma é fome. Dorme, meu menino, dorme. 157


O espĂ­rito da noite como um imenso caracol segrega a sua concha e nela incrusta ideias e estrelas. 158


Longe da fonte Longe da foz Apenas uma vingança de águas frias E uma marcha de palmípedes Fora do lugar. Bichos e mais bichos Obrigados a voar. É este olhar Que nos faz duros por dentro. Que nos faz lentes De aumento.

Uma salva de aplausos Ferida pela luz de palco a criança busca olhares no chão trevos, seixos, beatas restos duma antiga canção vinda do frio ou talvez aninhada na curva dos rins onde dorme o estio. Qual é, criança, o dono desse punhal com que a luz esgrima o vazio? 159


Eis aquilo em que custa a acreditar: é o eco dum saber antigo ou apenas o rasto da passagem dum velho inimigo? Entraria pela porta principal se a tivéssemos e logo nos despiria com o olhar mineral desse sol que petrifica. Entraria… Só nos resta fingir que estamos mortos com a perícia de alguns objectos subitamente animados na fronteira dos sinais onde se cruzam oásis e desertos.

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KWMKWAT Esse pássaro que traz no bico uma laranja anã Esse rapaz que para mim caminha Esculpindo o teu sexo num pedaço de madeira Esse pano azul que cai roto de nuvens Quando em mim vigias um feliz acaso Esse silêncio amachucado de lenços Essa avalanche de ratos e violetas Essa penumbra de outros quartos E a luz rasante que nos traz de volta.

Aqui entre nós que ninguém nos ouve Na distração das estações senti que algo em ti tremia como o papo duma pomba de fogo. Falavas da lei do desgaste e as penas caíam com gestos de chumbo e vénias de ouro. Saías da fartura dum celeiro e debicavas o grão raro e enterrado que se conta pelos dedos duma mão enquanto o ogre do inverno come a outra. 161


Prepara-se um número de magia: as luzes baixam para mal se ver e crescem as dores do poente. Uma mulher filiforme engole milhas de pentes e serpentes. Depois, ah depois é o mais belo: a casa de fogo conversa com a casa de papel. Quem não quer ser pastor não lhe veste a pele.

Os textos preguiçosos O corpo não pára para ouvir os cães que uivam à sua passagem. O corpo é assaltado por um exército de pequenos camponeses e pelo ritmo gasto dum sapateado. O corpo cresce para não caber para doer. Mas o corpo cabe onde não sabe. 162


Dom da forma Atrás da grande porta entreaberta da grande boca que se cala a água escuta-nos e não o contrário.

Pais de algibeira Neste silêncio talvez inquebrável talvez estilhaço duma antiga explosão as raízes do céu desprendem-se buscam outro cativeiro. E os bichos brincam com os filhos mortos. 163


Penélope ou a Péssima Esposa Eram feridas ou fisionomias isso que tu perdeste no beco das estrelas frias? Talvez o caldo primitivo a arrefecer e o demónio do corpo a querer morder a cauda. Para te fazeres monge gastaste o burel até ao fio ficaste nu e passaste pelas brasas. Mas o corpo precisava doutras casas e da usura dos sítios confidentes e de sentar-se à beira da cama como o anjo com cio que vela o delírio das palavras doentes palavras unhas e palavras dentes de quem nos ama. Entre nós e os nossos rastos um imenso areal ou uma tela preta ou esse amor que se desfaz todos os dias embora ninguém nos prometa.

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Da próxima vez descerei a rua vestida de texto ou despida de viúva a ouvir os piropos do sol a queda das grandes flores e dos frutos assassinos.

Às vezes leio onde não devo os meus olhos são guiados como por uma carícia outras onde não sei nessas línguas e lugares em que o eu não é meu 165


Educação do olhar Ao príncipe do sexo inconsolável pedi um espelho. Mas ele deu-me uma espada e disse: na lâmina te mirarás

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Dente do sizo Corria, corria esbaforida e ninguém vinha atrás de mim para dizer: chegaste. E aquela que eu trazia no meu sexo sabia que se pode nascer e morrer dum sorriso. Que se pode cair mas não escolher para que lado.

Uma boneca que canta que dança que cansa que se cansa Boneca sai do meu colo dorme agora esse sono a solo Há textos inimigos por isso se camuflam e não correm todos os perigos. 167


Caminho com infinitas precauções para não despertar essa coisa que dorme e mexe para não acordar em mim o desejo de a despertar. Um pedaço de carne sempre comove mas o sangue é voz sem fala que diz tão só aquilo que cala.

168


Os pássaros são feridas abertas no céu Delas escorre um sangue azul e espesso Que banha a cabeça das árvores E torna melancólico o prazer de ver. Claro que é incestuoso o nosso amor Sobretudo quando copiamos os pássaros E lambemos as antigas feridas Para deferirmos novos golpes Neste céu a nossos pés caído. Nós esvaziámos os corpos dos anjos E enchemo-los de penas As nossas penas Que são apenas Um pobre jogo de palavras.

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Noite contrastada Às vezes a noite cai com carinho outras é preciso empurrá-la. Com a noite aprendi a cair e a esvaziar-me por dentro como um velho bolso. Com a noite aprendi-me a ti e falei à estrela que semeia amor na primeira página do almanaque. Embrulhei-te numa longa estrada de baunilha e foste eternamente percorrido por bandos de aves aleijadas. Todas as chamas se apagaram e eu escrevi à luz de outras escritas: chamei a mim palavras extintas perder perdoar palavra caçadora e palavra presa onde se morre sem susto e se mata sem surpresa.

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Entre Douro e Nilo Seria a dura pedra que adoça o oceano Mas prometo Só derreto Noutro colo. Seria a dura pedra onde se agarra a flor E todas as cabeças que se viram Para ver passar o teu silêncio. Seria a própria promessa de roubar Isto é De olhar. Seria o bocado de barriga mineral E o fim da confidência sussurrada Isto é O início do mundo Antes da sentença estar lavrada.

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Casas da alma Era uma vez um homem que nascia pela boca e uma menina cuja boca mudava de tamanho e ninguém achava isso estranho. Era uma mulher desta vez ou uma árvore que usava o corpo até ao fio. Nunca o despia fizesse calor ou frio. Mas amanhã distraída por nada e por tudo inspirada ficará nua. Um sonho a castigará e a noite pálida de mais para ser escrita perder-se-á na primeira casa ou na primeira sílaba do regresso.

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Funções cessantes Trazido a mim o príncipe começou a despenar-se e eu olhei fixamente o alguidar como se o sangue me toldasse e o sol nascesse da minha retina mão negra que se agita antes de ser amputada mão branca-branca que repousa depois do amor mais nada excepto a rebeldia das cores.

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Identificação do céu e das entranhas O céu tem muito por onde crescer e não saber. Como um exército de frutos a secar na plana surpresa dum terraço eu espero que o sol sangre do nariz. Sou o lenço e o que lá ficou de antigos suores e a memória das aflições e das perdas indolores. Por que vezes penso que a noite deixará de olhar para mim e eu não poderei ler os livros que não me decifrarem. Ó doce submissão ao descalabro, ó segunda letra da asa, se o céu bater à porta eu abro o livro mas não abro a casa.

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talism達



Índice

tara perdida

2 Mau olhado 3 Uma noite nossa 4 Irreflexões 5 Take care 6 Gabarito 7 Beleza suplicante 8 Eu já não sou quem era 9 O silêncio dos frutos e outros argumentos 10 Jacarandá e sala de aula 10 À quelque chose malheur est bonbon? 11 Paiol azul e restos de tristeza 11 Nós 12 O despotismo por esclarecer 12 A dor dormente 13 VÊ-LA-E-AMÁ-LA-FOI-OBRA-DUM-INSTANTE 14 Vagamente 14 PAI 15 Again / Retrato em cinzas 16 Meia haste 16 A dureza do poema sua pedra impolida 17 Curta incumbência e longo silêncio 18 Transtorno 19 Make believe / lendo Burroughs 20 Correio aberto 21 Máscara mortuária 21 Os gostos que se discutem 21 Sequela 22 O outro amor 23 Guia de expedição 24 177


o guerreiro e seus trastes amestrados 26

Devil and the good evil God 27 O correio luminoso 28 Três desejos 29 Retrato na posição sentada 30 Era 31 Vizinhança 32 Número mágico 33 Chumbo, penas e papel 34 Pensamento de prisioneiro 35 Fibra óptica 36 Biografia 37 O assobio na hora de afiar a faca 38 Back 39 Quanto mais 40 Troca de narizes 41 Underness & Above 42 Surto 43 A velha cozinha e suas dependências 44 O novo ofício 44 Tu 45 Prisão de ventre 46

à risca 48

Menina coberta pelo manto anto 49 Higiene matinal 50 Seguindo à risca o antigo horário 51 A mão busca o sorriso 52 Tenores 52 Quando a fonte saciava apenas 53 Procuro o caule das flores manuscritas 54 Cortesia 55 Rosa convalescente 56

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Difícil solvência Ainda há mestres do arrependimento? Eras-me fera Andam loucos Nem tudo depende do ponto de vista Os deuses sempre preferem Il est tard De súbito, sinto a companhia da chuva A mão que cura, a que apela Um longo engano

57 58 59 60 62 63 64 64 65 66

outono à tona 68 Peur panique 69 Uma maré de distúrbios 70 DEPOIS DE VOS OUVIR 71 Moulin 72

cadeira 74 a vida a andar para trás 88

Diz, Mãe Quando eu era pequena A Mais Velha Da vida bebo A velha cadela corre a mando de seu dono Sonho que o meu amor está nu Aula 1 Aula 2 Tratado de Ortofonia para Pedras Falantes Para Saguenail #30 Aquilo que pensa e avança No incêndio

89 90 91 92 93 94 95 95 96 97 98 99

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A caçadora furtiva 100 O azul do céu perturba 101 na pequena aguarela desbotada 102 Toilette 103 Poder esperar até 104 Depois da hora do cravo, o tempo da fechadura 105 SUITE GENETICAMENTE MODIFICADA 106 pormenor de sonho 1 106 pormenor de sonho 2 106 pormenor de sonho 3 107 pormenor do despertar 107 centro de mesa 108 depois do jantar 108 pormenor do sono 108

talismã 110

Pode-se ser fogo e vento 111 Ecossistema 112 Há uma máscara mais fina do que as outras 113 Domicílio 114 I O touro marcado a ferros 115 II As casas ardem no sono dos pássaros 115 Chamada à realidade 116 Para te estatelares no meu quintal 117 Se alguém me diz 118 Fuzilamento 118 Podemos ficar aqui sentados 119 Avulso 119 Caia uma corda do céu 120 Retrato de conjunto 121 Amada à primeira vista 121 Corpo celeste 122 A in disciplina da morte 123 180


A prosa ideal do futuro 124 Figura tutelar 125 A menina descobre um dia 126 O início do ensaio 127 Só nos responde a força do atrito 128 O outro mundo 129 Mal ou bem 130 Abrir mão 131 Partes mestras 132 O tradutor fala a palavra doutro 133 São 133 Túmulo profanado 134 Mutilações (I) 136 Mutilações (II) 137 Um anjo com cabeça de macaco 138 Arca de Noé 139 Primavera no Pátio 140 Plantaste no céu 141 Não fomos feitos 142 Retrato-robot 143 Robot-retrato 143 Retrato-retrato 144 Robot-robot 144 E o destino vinha em retalhos 145 O fim encontrado à pressa 146 Uma luz 147 As moedas tilintam no bolso do velho 147 Les arbres 148 Et toute sa vie 148 Casa redonda Mente quadrada 149 Quem cospe fogo 149 Qualquer coisa ao sul 150 Dois homens vêm à fala 151 181


Um pássaro alisou 152 Eu não sei contar 153 Nos teus dezassete anos 154 Eu não queria deitar-vos 155 Trocas de calor 155 Oh amor de todos os amores 156 De todas as águas a mais fresca 156 Um corpo abandonado 157 A forma é uma doença da matéria 157 O espírito da noite 158 Longe da fonte 159 Uma salva de aplausos 159 Eis aquilo em que custa a acreditar 160 KWMKWAT 161 Aqui entre nós que ninguém nos ouve 161 Prepara-se um número de magia 162 Os textos preguiçosos 162 Dom da forma 163 Pais de algibeira 163 Penélope ou a Péssima Esposa 164 Da próxima vez 165 Às vezes leio onde não devo 165 Educação do olhar 166 Dente do sizo 167 Uma boneca que canta 167 Caminho com infinitas precauções 168 Os pássaros são feridas abertas no céu 169 Noite contrastada 170 Entre Douro e Nilo 171 Casas da alma 172 Funções cessantes 173 Identificação do céu e das entranhas 174

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