R 7 caderno eclipse 1 interior

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regina guimar達es

cadernos do eclipse 1 (junho a outubro 2008)


11-07-2008

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Na antiga Grécia um símbolo era um caco de barro, um caco quebrado a meio. Se acaso duas pessoas entre si celebravam um contrato cada uma guardava uma metade cada uma era parte do bocado sono beijado de barro. As exactas arestas por onde o naco de mundo em duplo fragmento se partira coincidiam perfeitamente uma com a outra. Assim caco me confesso e coro e me custo e me calo me dobro inesperada numa esquina e me faço tarde quando falo. Redonda me resolvo sem porém limar a aresta como se fora ferida com se fora fera e trouxesse em mim escondida a orla recuando à medida que se expande um pensamento de floresta. 25-07-2008

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Sonhei que não estava morta mas caída inerte no chão da cozinha. Um cheiro fétido de coisa viva teimava em desprender-se de mim. Por isso não me beijaste para me despertar... 25-07-2008

eu sou sustento de uma flecha por mim sobre uma outra desferida eu me sou outra em sendo-me ferida e me sou flecha a caminho de mim já sida 27-07-2008 4


O frufru da folha caída Abeirei-me de palavras que queimavam. Mas era eu que por dentro já ardia e não elas cujas chamas coloridas como jóias suburbanas trauteavam uma coxa melodia. Escolhi o meu vestido de cantar cantiga velha onde a minha voz cabia refrão onde o meu corpo era formiga e o desejo sem objecto de abraçar mais do que tudo me fazia antiga Usei esse vestido de cantiga buscando ideia justa que crescesse à sombra prolongada de si mesma para que um dia ofendesse quem traz o sol na barriga Enxotei com a mãozinha a mosca da fantasia que em volta de mim zumbia como se eu fora já morta às ordens de uma rainha 28-07-2008

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É com rastos que contra os rastos luto suspeitando das formas de combate e logo pouso as armas se me escuto Sinto no frio das costas os olhos cegos da terra que é costume espezinhar No escuro brilham mortiços como pontas de cigarro: são caminho e caminhá-lo Tudo me calca e me cala − por amor me hei-de apagar 28-07-2008

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Livro Triste sapato perdido de seu par no sopé do vulcão abandonado após o baile ardente da cratera Patinadora pé de galo ziguezagues costurando em pista de lágrima gelada Rochedo que não sereia Torre uivante e não princesa Menina enlutada e feia Do sapo herdei o rosto e o gosto a barro molhado de fêmea mal acabada Não chegarei a ser livro apenas tambor dorido 30-07-2008

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Águas-furtadas Aqui me tens, carimbada por olhos de invisível, combatendo a ideia de fim cessação ou limite intenção ou termo mira ou meta. Aqui me tens alvo ao negro alvo de mim lutando contra toda a fúria da definição mas a teu lado como sombra desabrida. Porque te amo escandalosamente sou túmulo de toda a finalidade. Como entender, meu amor, que a terceiros confiemos a tarefa de enterrar os nossos mortos? Porque te amo escandalosamente sou cova a cova a terra que se abre. 31-07-2008

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Chicken myself Aquilo que se pode dizer frente à portão do inferno antes que o cão de guarda nos ferre as canelas é que ninguém está livre do indizível perigo de voltar ao lugar onde por razão ou estado deveria ter sumido. Aquilo que se pode dizer acaso a pobre heroína desmereça o seu papel perdendo o pio e as penas mostrando pele de galinha é que os bichos superiores são ladrões de capoeira. Pela calada eles falam de galo cantam e comem. Em noites de pesadelo todos se viram na cama. Gira meu belo planeta enquanto voa quem pode eu me espolinho na lama. 1-08-2008

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Spider she Basta virar costas para a aranha tecer a sua teia tão bela e discreta que apetece confiar-lhe o governo da casa. Ó musa dos trabalhos invisíveis sê minha mestra e companheira. Com tuas patas infinitas tece mantilha onde eu possa nem ver-te nem ver-me e o mundo como gota em mim repouse . 1-08-2008

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que sabes tu da maneira como sou estrangeira primeiro estranha depois clandestina e como tal denunciada desnudada sepultada primeiro segunda que sabes das pĂĄginas que tĂŞm sido mortalha da falha falante da cinza sem fagulha primeiro depois garra galante dentro de ovelha velha que me viste velha bebericando o fel de seus olhos e miolos dentro da prĂłpria caveira? 3-08-2008

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meu pó de borboleta minha farinha de falena minha cortina de chuva incandescente atrás da qual o mundo se cava como um gigante abismado na sua própria pisada meu voo de alvorada minha língua doce e ignota meu portulano pintado a sangue quente de corça em pergaminho mais fino que a pele há pouco nascida sobre o riso da ferida alvo lenço agitado não em sinal de derrota mas de explosão de rebentos e de rota de uma seiva em ramo velho e vergado porque um ramo meu amor é do amor anagrama por ser a luz que se busca 3-08-2008

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Não desejo lavar-me, meu amor. Quero ser este vestido imundo indecoroso cosido à flor da nudez Sou isto que de mim brota em minúsculas golfadas este pano de suor que ao corpo se me colou Por tua pele eu respiro: se cada poro é cratera em tua lava eu me lavo me salvo 4-08-2008

Fogem-me as palavras para um sítio onde não há palavras. As tuas ser-me-ão boca e pão. 4-08-2008 13


Desimaginando A criança aprende não se sabe com quem − o escuro? a luz? o vento? a gente? A criança aprende e não sabe como que pode − em partes de seu corpo ou pormenores do seu porte − calar as dores maiores inventando outras dores às quais se rende sem perder soberania Graças a elas se exila e por sua mão regressa ao lugar onde a dor da dor começa Assim, nos encontrámos, meu amor, e a nossa infância passou a ser conversa. Há na história que não te conto um momento bem preciso mas diluído no tempo em que o pássaro de papel devora o pássaro de carne e osso. 14


Esse momento disperso deserto ou desabitado ser-nos-รก remo de vivo ramo contra o tempo e seu contrรกrio 6-08-2008

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Desimaginando ainda Na obscuridade do sangue uma noite de luta ininterrupta. É Jacob que disputa o seu nome a Deus. Jacob saiu do quarto de arrumos − aquele quarto escuro onde só brilha a luz dos teus olhos séria intensa recém-nascida. Jacob desceu à sala de aparato dourada e estreita como uma pintura flamenga e ouviu um tinir de moedas sobre a mesa. Um arrepio percorreu-lhe a espinha e logo lhe cresceu um par de asas no lugar dos pulmões. Então Jacob respirou pela primeira vez e ágil como um projéctil foi essa coisa réptil que se não se alimenta de ovos mas conhece o exílio de cada ninho. Na obscuridade do sangue uma noite de luta ininterrupta. É Jacob que disputa consoante a consoante o seu nome a Deus. 6-08-2012 16


vol e lov professor virias à tona do meu mundo maquilhado de lago tão profundo que o céu em te mirando se perdia tua aula primeira me seria sobre o peso das penas e do chumbo e de homem e mulher eu só veria o que de homem em mulher em ti havia nas minhas costas, alunos distraídos cochichavam, trocavam mil recados e a má aluna da primeira fila era eu de olhos postos no papel só sabia de cor aquelas cores com que um pintor saído de um bordel pintaria os quadrados da calçada e anjos em terrena debandada só te sabia olhando-me de esguelha tu cada vez mais olhos eu cada vez mais velha 7-08-2008

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rosa de rumos sem vento sopra o corpo para dentro abre todas as gavetas e esvazia-se no chão onde se comera o pó de uma estrela estarrecida ele mendiga migalhas catando por entre falhas rasto do que foi cantiga se amor a tanto o obriga o corpo vive de esmolas já ao comprido se estende de antemão grato se curva cabe na cova da mão cabe na cova do prato 9-08-2008

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A carne para canhão do sentido vidro que te sonho vidro fractura contra toda a transparência azul no ilimite da demência e faca de cortar respiração tantas vezes tenho dito que te amo que sem amo a senhor me acorrentei em teus olhos busco a luz que lá deixei e sou sombra de ti em lugar vago foi cântaro ou encanto o que quebrei cada vez que à fonte quis voltar? sou de chumbo, meu amor, cinzenta malha, onde se engastam as figuras da viagem desse vitral onde explodes como vaga para seres torre em véspera de marcha para de novo seres marfim e mar sem fim 9-08-2008

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Insolência Perguntar ofende responder mata Com gume de uma só faca cada palavra se fere um só silêncio se aguça Da lâmina se faz espelho até que fica embotada Perguntar não ofende responder não mata Da ponta ao cabo sem guarda me vi cravada de escrita curvada em linha direita Riscando rugas na voz a mando da voz fui muda 10-09-2008

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Child song Onde estรก meu bem amado essa porta que se abre para uma ideia de chama? Eis a lebre-labareda em sua jaula dourada... Quem lhe darรก de comer enquanto ficar fechada? Onde estรก meu bem amado essa porta que se abre para uma ideia de espada? Eis a espada retirada devagar devagarinho dessa ferida tรฃo antiga por onde abriu caminho. 11-08-2008

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Quando a árvore descarnada saca de armas caladas e dispara sua seiva doce eu sou tão-só tiro e queda por teu corpo já erguida desfalecida e tombada. E estou aonde não vou gasto tudo o que não tenho sou cega face de um dado rolando sobre o tapete do teu corpo reclinado ultra violeta violenta Pudera eu oferecer-te prado, floresta, clareira árvore fera e vermelha e não o bicho acossado desta penumbra tão velha ou o ramo fura-luz de mim mesma em sobrecarga. 12-08-2008

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Isto que não é meu Ser esta tensão de ponte que liga poente e aurora com o corpo dilacerado entre duas quase luzes. Ser a carta armadilhada que se leu de trás para a frente. Ser corpo-a-corpo e cara-a-cara com uma coisa tão rara que nenhum valor terá. Ser o bico da andorinha em tinteiro vazio de céu e no céu tanto de tinta. Mas querer tocar a terra com uma asa tão negra como o chão de uma palavra. 13-08-2008

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ursa de cĂŠu e pĂŠ de pĂĄgina tua estreia de estrela em alfabeto a negro 17-08-2008 24


Nesta amnésia de paredes meias os braços frouxos enlaçam a desolação do dia demasiado. Aqui entre as pernas de quem espera eu me choro por inteira e uma criança cora até à raiz da cabeleira. Cada dor me distancia e me puxa para seu oposto lado como terceira pessoa de um verbo inflexível. Partiste pela calada em busca de novas do velho mundo − sete partidas correste num só golpe desta asa. Sobe-me à boca um travo a ferro cravado em carne. Desejo dormir desperta no chão pejado de céu onde soam os teus passos. Amor, aqui me tens estaca assente em menos que nada. 17-08-2008

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Minha estrela quente e cadente revezada em teu céu sempre a galope Minha estrela trocista Minha pólvora muda à boleia de um instante arrefecido a reboque de um bosque fora de tom Meu cabeçalho de gazeta sedosa Minha roda-viva, rosa sobre rosa 17-08-2008 NAN Um antigo alarido corre as ruas nuas e nas horas douradas de agonia consinto em ser ainda esse ouvido faminto do amor total disperso como vento de verso na parte mais fraca das palavras. A idade não protege do costume de ser pedra que rola ou pedregulho que cava abismo onde havia lugar − estranha façanha. Amor a palavra não engana a fome 17-08-2008 26


NAN 2 Nesta avalanche de sul à torrente me acorrento de um dia pardo e cinzento destemperado de azul. Ao cimo se prende a ave o susto se amarra a asa e um bulício da praça me toma de assalto a casa Pobre canto de quadrado pregão de amolar facas sufoco em lugar de cisne e noite de lago em lago Pobre pescoço encostado lâmina mole de um silêncio como texto interrompido por queda de guilhotina Migando pão me esboroo miolo seco e azedo... Pudera no escuro ser em tuas mãos pão rasgado Pão de espera e de motim pão de véspera e de berma pelo nosso amor guardado 17-08-2008 27


As ideias fogem como grandes presas de caçadora sem armas que não suas mãos nuas e a cabeça a prémio noutro lado 17-08-2008

Versão expurgada Eis a face que recebe a bofetada e eis o azul que se entorna na taça transbordante dos teus olhos Eis esse machado à solta na selva de porcelana e eis a marcha de uma aragem amuada em estrada fora de cena Eis a marioneta aflita que na lonjura se agita e eis o pé no estribo doloroso a mão na rédea condoída Eis da vista a pirueta irremediavelmente trôpega e curta 17-08-2008 28


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CÔTE ATLANTIQUE Nesta longa quarentena de miragens vou sendo ruidosa e operária descalabro de obra em dormitório onde só asas doentes repousavam. Sou nudez ácida de axila da moça mais boçal, mais bera mas também viril virilha ruína em meu pequeno espalhafato e as ordens do capataz obrigam-me a despir como se fora só bruma esta pele que me assenta como um facto. Imagina se puderes fora das quatro paredes que eu sou um truque de cartas nada na manga nada na mão nada. Possa eu parecer mancha nódoa de sangue no sangue morta enrolada num mapa. 18-08-2008

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O turno de Saturno Desta linha de montagem hora a hora saem objectos que apenas se distinguem pelo defeito de fabrico. Saturno devora as pr처prias m찾os julgando que s찾o suas filhas. 19-08-2008

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Em certas danças africanas as mulheres agitam os braços como se fossem falsos e verdadeiras asas A minha enfermidade é outra braços demasiado longos para voos demasiado baixos e pernas a fingir de braços Assim se fala talvez do desejo atravessado no desejo do rio a correr dentro do rio daquilo que há onde é e não do que era uma vez 20-08-2008

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Sombra de gamo em noite engomada Só vultos atravessam então este campo de visão cortado à faca e Quando o dia enfim desponta quem sou eu quem sou tu quem és tu novelo de corpo nu em mão que não se fechou e À medida que o dia nasce apenas me sobra a face e a baba de abandono face a face dono a dono 21-08-2008

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aos dias cortar cabelo às noites cortar a cauda encurtá-los até serem tão-só esse corredor onde voo ao teu encontro para cair nos teus braços e não mais ser importante se é morte ou vida infamante o som dos passos em falso que já vem no meu encalço 21-08-2008

Vem pois, meu amor. Seja eu parte da tua refeição frugal, ou apenas a fome logo antes. Seja isto que te escrevo uma ave presa à tua cintura − manjar delicado, rijo mas terno e de pouca dura. Vem pois, meu amor, e sê meu paradeiro em clareira de floresta muito escura. 21-08-2008 34


alguns falantes mais desalinhados há muito que nos disseram que o mundo estava a acabar e estava mas o mundo continuava como obra sem empreiteiro era tapume e guindaste dava-se ares de estaleiro em cada quarto crescente janelas já minguantes e porteiros que nos dizem que nada é como dantes e um céu em rodapé colado ao céu da cabeça legiões em abstinência arcanjos de condição há muito que agora há pouco quem ama sempre procura como habitar o seu corpo 22-08-2008

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A noiva repudiada sobe ao cume da colina onde nada sobre nada onde turvo sobre turvo e levanta lentamente o peso de seus dois braços como halteres ou fogos-fátuos ou ramos do paraíso Entre veias latejantes e tremuras de joelhos ela é casta imprecação impropério proclamado Ninguém olha, chama, chora, aquela que lê nas vísceras abrindo as portas do ventre e pondo as tripas de fora. 22-08-2008

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Sonho com todas as maneiras de despertar mas acordo fora do lugar fora da vida como que recĂŠm-nascida e abandonada frente a uma porta fechada. Por isso hĂĄ algo em mim que nĂŁo quer adormecer. 23-08-2008

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Estâncias do anjo no anjo Ladrão e guarda rajada Casa em seu poente leonino depois de visitada ou devassada O anjo dentro do anjo emplumou seu sexo depenando a asa Porém entre a pena e o punhal ele segrega um rasto de insanas somas As do sexo ao terceiro sexo as do sexo de habitar uma torre com vista para um poço 24-08-2008

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Para que a carne seja e sem ver se veja Para que a carne n達o proteja Cada bocado uma boca Para que a carne seja com e contra o verbo 26-08-2008

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a vida dupla é dupla a vida do corpo todo ele ou quase todo feito de duplicações e de estranhas simetrias duas pernas dois pulmões duas mamas duas mãos dois hemisférios cinzentos dois olhos e dois ouvidos dois lados do coração dois seios também dois braços entre si tão parecidos um pé não pede ao seu par licença de caminhar nem um olho ao segundo para ver ou se toldar pode um ombro descair e um punho se alevantar pode um ouvido entupir sem o outro o imitar ombros ancas tornozelos calcanhares e cotovelos são elos da vida dupla e o sexo que nos percorre procura a face do espelho à tona do que não vê e o sexo do que não é procura o lado de cá no lugar onde se lê 27-08-2008 40


na boca não cabe a língua e a voz não cabe no corpo não escrevo: salto a pés juntos e se não vês onde caio é porque não sobressaio com o fundo me confundo à custa de ouvir me traio não escrevo em página branca 27-08-2008

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Sonhos molhados de aurora desperdício de luz a toda a hora... O dia ainda tarda e já desmente tudo aquilo que viera desmentir. É veloz em seu atraso e em seu acaso tão lento este amor. Quem de imenso amor se estranha e aceita desconhecer-se não tem por onde fugir. Fui beijada em pensamento em pensamento beijei e desde então é agora. Um beijo nunca se acaba se quem o recebe o dá se quem o dá o recebe. 29-08-2008

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«she speaks like silence» O anjo nada em seu suor. Esfarrapado de auroras, alça a perna essa que por vezes cresce e sobe até a um ramo em chamas sobe até à chama árvore. Derretem as asas que lhe eram mão na mão e agora são água de céu onde tudo nada. 29-08-2008

or bec si langue a 43


robe c fora de si o dentro de mim se espraia e se solta vela e saia e lugar onde se caia. nua nuca nua nunca nua uma. pĂŠ de lua Ă cabeceira. sonho sem molho ou recheio apenas de sonho cheio isto ĂŠ: realidade 29-08-2008

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Entre o lugar do espírito e o espírito do lugar depressa se cavam esconderijos onde a vida relativa se deita em cama desfeita e colchão de carne viva. Não sei o que me faz falar: tenho a língua presa ao chão da boca não ao céu. Tenho a boca presa a um olhar que beija. Tenho a boca presa a este desejo de ser olhar. 30-08-2008

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EUTOPIA No lugar onde as costas se quebram devagar pintarias um muro de ver e beber a sol de urina a tinta da China. Encostada a esse muro eu me sustentaria como indigente como escada ele suspiro soberano ela cinza cromåtica. Eu me encostaria rompendo assim a direcção do olhar. 31-08-2008

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La main devient alors un état de cécité de la matière tout en étant capable de poser son regard léger ou lourd. Je me surprends à te regarder je te surprends à me regarder. Je tends ma main tremblante et j’attrape ces regards au vol juste avant l’endroit où ils se sont posés. Toi seul connais le guet-apens donnant vers cet envers où je me cache. Toi seul connais ce dedans et ce derrière où je m’emmure. Toi seul saurais me dire ce que je suis vue du dehors. 31-08-2008

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no baile mandado das grandes cidades eu te procuro meu bem amado. por vezes julgo avistar-te no harpejo de uma esquina a palitar os teus dentes como para disfarçar. outras vezes julgo ver-te perdido na rouquidão duma manhã que nasceu ao fundo de uma garganta. outras ainda a correr sempre em sentido contrário de ruas desafinadas abocanhadas por cães. a música, meu amor, é o que mais magoa. no baile mandado das grandes cidades eu te procuro porque estás à minha beira. a música, meu amor, é o que mais magoa. 2-09-2008 48


Uma ilha boiando no meu colo − duro bolo ao qual falta a tal pitada de sal que faz cantar a farinha. Ao qual falta faz o forno onde a massa será forma e o desejo que então for de antemão em sol se torna. Uma ilha míope utopia − plissando os olhos não vejo. Não me vejo dar à costa. 3-09-2008

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pé ante pé para não acordar quem dorme para não acordar quem marcha se chega a uma casa sem vestíbulo tudo o que se perde pelo caminho vem colado a esses pés que aqui entram de mansinho 3-09-2008

O mundo desde há muito está a mando de quem por sua lei o amor castiga. Mas eis que uma criança ou quase repara no modo como o pássaro pousa sem motivo nem passado que não o ser olhado na pequena praça onde o céu se entorna e se demora. É veloz, muito veloz, a eternidade desse olhar vago. Vago porque atento à pressão e à supressão das causas. Olhar pois talvez regido pela razão física, isto é poética, de haver vento. 50


A criança − ou melhor: um sobressalto de criança − corre agora para o pássaro sem pedir licença ao que desdiz a sua consciência. A criança quase corre e quase tropeça na planura da praça. Uma quase criança vai no seu encalço, segunda voz da coisa viva que se obriga à rectidão das linhas e à estridência curva. Não faltará quem conte a cena onde o puro amor se oculta como uma banal ocorrência: corre que corre a criança para assustar o pássaro. Esse ou outro. Aquela ou acolá. Mas eu acredito no que os meus olhos viram: o pássaro é tão-só sinal de si e a criança corre para se assustar, perceber quem voa e quem caminha. Este lugar está de há muito sob o jugo desses que, por rumor, o amor impugnam. 4-09-2008

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O sono virá leve como um pau de espevitar o lume. Com que lençol bordado a olhos cama farei ao nosso cansaço para nela então dormirmos um sono solto e eloquente tirada de longo fôlego rapace preciso sobre presa em voo? Sono de amor não será interrompido: tantas coisas haverá a não dizer e tantas a sonharmos lado a lado. 7-09-2008

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Quando tinhas a cabeรงa noutra parte e eu estava desta a desfazer desfechos, houvera de ter aprendido a procurar abrigos no abismo. 8-09-2008

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a pequena porta está aberta: avisto o jardim por detrás do jardim o muro por detrás do muro o escuro por detrás do escuro. uma voz vinda de mais atrás ainda diz: abre os olhos e vê. e diz: levanta-te e caminha. assim me vejo andar às cegas me vejo sem lá estar caminhar no cenário que está por detrás da pequena porta. em direcção ao muro em direcção ao escuro. 9-09-2008

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O homem trabalha a terra nos lugares em que se deixa castigar. Ignora a estação donde regressa mas traz histórias de cordel e de bordel que por vezes se gaba de não conseguir contar. Ele vem, ele insinua que subiu à tal montanha que pariu a dor maior seu respectivo roedor e talvez um remoto terramoto. Ele traz nas poucas curvas de seu corpo esbelto uma epidemia de particulares. Ele fala apenas por excepção de bote perdido em bruma de bote arrimado ao pensamento de mastro apagado pela espuma de quilha encalhada no momento. O homem trabalha o céu onde a terra se deixa castigar. 11-09-2008

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Certos bichos aprendem a esconder-se na sua inata fartura de pêlos e de gordura. São como que almas de um corpo em contiguidade de sentido, lugares de leito e vala comum onde mais um menos um vem à fala por falar na voz que em redor perdura. Certos bichos são só garras enxurrada de ternura e ora um ora eu água mole em pedra dura fazem cimento de céu com voz que em redor perdura. Certos bichos são só tu mutante e amante e nu silêncio malabarista quantas bolas estás a ver quando me perdes de vista e quantas deixo cair fora de circo e de pão. Certos bichos são só chão. 12-09-2008

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toute vérité est songe tout mensonge est vérité sous verre vérité sous pierre vérité soupir 12-09-2008

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A minha rua Uma velha invisível trauteando no reduto a que chama seu jardim juízos, juras, injúrias, sem começo meio ou fim. Fala de um amor refém ganindo como se visse entrar em si o ladrão sem poder escapulir-se Da mulher que não tem filhos se diz que não alcançou... Que dizer desta surpresa de só conhecer na vida as cordas do estendal esticadas em sobrecarga para que jamais se enrede seu cordão umbilical? 13-09-2008

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espetei alfinetes na boneca sabendo que só eu me queixaria não eram mãos, meu senhor, estas coisas que espetavam picos nos caules das rosas − eram os maus pensamentos dos quais, alquimia incerta, ora sai pão de soluços ora choro de boneca. pela calada da noite pela palavra do dia, tu fugiste, meu senhor. neste meu negro degredo deponho a teus pés ausentes a minha cara insolente coroada de bolor. quando a fome te levar ao bulício de um mercado, em cada peça de fruta demasiado madura verás o sorriso triste desta que aqui te procura. 13-09-2008

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agradeço ao embalo do comboio este música de máquina de costura este anúncio de destino sem cartomante este bafo de fera este claro escuro de curral a promessa visual de convergência a estridência do apito que responde à ferida o vociferar do vizinho cuja penúria é mais erudita agradeço ao comboio a mortificação porque, assim me disseram em criança, quem mais chora menos mija agradeço ao comboio não haver consolo em seu caminho a solo 21-09-2008

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Em horas já sem conta de vigília rufa, pequena, a cabeça na pele do tambor nocturno e leve. O corpo quase hirto como fato posto em prova pica-se em pontos outrora insensíveis em bainhas e costuras inseguras onde o eremita espeta os seus finos alfinetes. Até que o dia clareia fogoso como boi de cobrição. Cheira a gado neste ar de madrugada de mais um dia em vão. 22-09-2008

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Afeiçoei-me à ideia de beijar a face do pão que deixei cair ao chão. Seduzir é reduzir enquanto amar é aumentar amotinar e meter os pés no chão onde amor não é chamado. Vem e traz os teus olhos de tempestade vem dizer-me que me achas um gosto a causa perdida: remendo em velha saia de mulher rasgão na tua camisa. 22-09-2008

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Agora a paisagem é espelho que ocupa uma a parede inteira e lá no meio e a medo um monte que se desenha ou talvez o instantâneo de uma fonte para onde o olhar dispara cavalos e cavaleiros. Dois a dois o sol já sobe o veludo palpável de uns degraus. Parece dizer-nos em voz alta que a paisagem é o avesso de um banho de imersão pois que olhá-la é esvaziar-se e esvaziá-la. 22-09-2008

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No ventre de alguma mãe fui vela e longo pavio ora pedra dura e dorida ora cera de alegria derretida Mas esse velho pavio que de mim longo pendia só tu por mãos irmãs o acendeste com chamas de cinza azul na tontura horizontal do dia E nenhuma parede nos foi quarta. 22-09-2008

Se as pedras não mudassem de sítio e as estrelas tombadas no chão não mudassem também de posição, eu não poderia estar secretamente contigo, ao abrigo de quem espia o tom exaltado das nossas brigas, de quem cunha moeda de troca à custa da nossa carne amante e, por isso, delicada, dilacerada, pouca. Retirei o pano que tapava a mesa de jogo dos sinais e vi que era só um tampo e quatro pernas de pau. Sacudi o pano e ele foi paisagem de ti, o céu no lugar da terra, a terra na vez do céu. 22-09-2008 64


Nada mais volúvel do que a constância − nada mais envolvido no fluir nada mais capaz de regatear o preço da necessidade. Quando se levante a um vento de soprar chamas é preciso fazer me mecha de cada dedo e luz de cada olhar. 22-09-2008 Venha a mão e a tesoura e o gume que cortarão o fio do horizonte Venha o fio de água que é já fonte Venha a justa cólera dos que não nasceram ensinados Venha o degelo dos amantes injuriados A torrente em lugar da pena, do pincel, da faca E vem tu cismático, conciso na dura cesura da luz que nos engendra e usa. 22-09-2008 65


Falo-te da malha morta deste gesto incompleto de desgosto que pontua o sobressalto dos meus dias: a agulha busca o buraco e lá se enfia, procura então do fio a correnteza puxando-o para si e desde logo o prende ao elo lasso que já havia. Se pobre te parece esta metáfora, senhor amado, uma pergunta te faço que me ocupa e, beijando os teus pés, ta submeto: preferes carne fresca ou carne viva? Uma pergunta é, como adivinhas, uma parede sem sombra... Que queres tu dizer-me − pensarás com teus olhos nublados e azuis de olhar para o céu que se avoluma. Carne fresca é essa mesma para a qual o caçador aponta a arma e o desejo de uma morte que não sua. E carne viva será será porque ser não pode no triste fingimento do presente. E sim. Será sim. Será. 22-09-2008 66


A sépia ou talvez a sanguínea alguma coisa escreverás que me fará corar de prazer até à raiz dos cabelos na corpulência sufocante da tarde. Os meus cabelos responder-te-ão num uníssono de caos e sem disfarce de serem ainda longos e já brancos. E ambos seremos apenas um sorriso em secreta transumância. 22-09-2008

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Como o filho do homem que mamou nas tetas de outra espécie, o sol nasce trazendo o meu lápis atrás da orelha. E eu escrevo nos joelhos esmurrados, na flexão dolorosa dos joelhos destemidos e velhos. Ó página arrancada a si por um vento de volúpia por um de pudor de carril sobre ravina por ira de mãe e raiva de cria e rumor de ferrolho em mulher prenha E riacho saltando entre as margens de um só dia. 22-09-2008

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Temperar é tornar mais intenso o sabor da comida. Temperar é tornar os metais mais resistentes. Temperar é tornar as paixões mais terrenas. Em minha água, verto outra água minha. Ora, o homem da terra olha para as suas alfaias e para as suas magras colheitas em vez de meditar sobre a terra a saque. Ele não pensa que o chão vai para o diabo o puxa e empurra. Ele não teme que o colo da estátua arrefeça em manhã de si mesma insegura. Ele não esconde os olhos encovados pelas profundezas do céu de sua alcova. Ele fala, por vezes, com o rigor do gesto de quem acende uma lamparina ao santo que não inspira fé ou devoção. Ele faz figas para não ter de contar com o poder devastador do pranto. Mas, em fins de tarde como este, o sol estatela-se em sua fuga e a claridade paira muito tempo como o olhar sobre nova ruga. 22-09-2008

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Palavras de pátio e cativeiro Será inventar uma maneira apenas um pouco mais violenta de perceber? Será que estamos mais à vontade com aquilo que não percebemos? No centro de um jardim real há uma pia imaginária: pia onde o pássaro bebe onde o pássaro se mira se banha e se abana; pia onde o pássaro pia. Como a moça tremendo põe termo a namoro de Verão, o pássaro sacode suas penas dispersando pérolas de água sua − gotas que serão repasto para novos porcos 22-09-2008 Adenda à raia As gentes da raia − a raia miúda entenda-se − sempre se empenharam, por actos e por factos, em apagar as fronteiras, enquanto reis e senhores levantavam exércitos e inventavam o espírito guerreiro, o espírito do bando, avesso ao do contrabando. Para que o mundo se transformasse no bolo fatiado e esburacado que já nem os ratos haveriam de cobiçar. As gentes da raia − a raia miúda entenda-se − pressentiam que a armadilha é aquilo em que se acredita para ganhar tempo. 22-09-2008 70


o teu olhar chega de tão longe para varrer como pincel de aguarela as paredes sem fissura desta cela. dentro de mim ou dela apenas pó de interminável caravana e a paisagem em perpétuo desfilar sem cor ou condutor sem etapa, sem trela. ó meu amor, devolve-me esse vinho que logo trepa e não desce da cabeça vinho de turba embarcada à pressa vinho de vulva em ventre de naufrágio. 23-09-2008

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alheio-me sou alheia apito contínuo em estação nua e feia alheio-me sou baloiço em calaboiço bojo de barco afundado punição de mão cortada e para dizer adeus aceno agora sem nada alheio-me ninguém apanha o que cai e com o chão de confunde cada passo em mim ecoa como esse tostão furado que tomba em prato de cego e até deita mau olhado alheio-me e da frente para trás me leio em língua de garra 23-09-2008

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em seu pousio, a dama endiabrada deixou crescer ideias e cabelos e, fazendo seu o enxoval do frio, de desejo se sente estropiada ó como é bom, diz ela, encostar o ouvido ao coração de quem se ama sentir fugir do peito todo o ar mexer na carne como deus na lama se o tempo é dos ódios mercenário eu desejo, diz também, pagar com a vida a quem ao meu amor já deu guarida ninguém pode velar à cabeceira da cama agora estreita de tão larga quanto mais doce a noite, mais amarga 23-09-2008

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Aqueles que fazem da fúria sua força de trabalho, estou a vê-los... Nunca se prendem ao vazio que os mantém de rastos ou de pé. Não enchem o olho. Quando chegam, já vêm de mangas arregaçadas e mal temos tempo de observar a dor do seu labor. São clara labareda ou negra lenha a arder, mas sempre separadamente, desapego do lume, desafogo de vénia repetida e grácil. E brutal. Estou a vê-los. Penso no motivo pelo qual uma pessoa pode falar sozinha, encher com suas penas o colchão onde se deita e achá-lo duro. Se eu conseguisse queimar em praça íntima todos esses que comigo e em mim falam, ou pelo menos aturdi-los com a presença do carrasco, um longo sono faria o resto. Mas estou a vê-los. Eles transbordam-me em todos os sentidos, de dentro para fora e de fora para dentro. Estou a sê-los e eles estão a ser-me. À tenra idade responde o olho grosso. À velha carne o gume. Em sua finíssima aresta, se afia o fio da voz e a cantiga da qual só sobra o osso. 25-09-2008

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CIRCO O voo repetido de um punhal lançado à distância de quem dorme desenha os contornos do meu corpo em cama giratória e vertical − local de ensaio e folguedo de muitos atiradores exímios ou amadores. O meu nome atrai a praga a que não posso escapar pregada ao poste e à cama − chamam a isto lugar à luz do seu a seu dono entre nuvens a passar e nuances de abandono. Por dever rola a cabeça e os olhos a acompanhar − quem dispara não tem pressa quem vê não consegue olhar. Mas dessa dor que é um umbigo já ninguém ousa falar apenas a luz persegue o que no escuro prossigo. 26-09-2008

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Lembro-me de ser pequena e de me aborrecer e de ter grande pudor em tomar consciência dessa grande dor do estar sem entender. As grandes ideias, como bebidas fortes, sufocam quando vão na dianteira. São vigaristas, vingativas, delatoras, de si mesmas por vezes se empanturram à mesa dessas outras que mendigam a cor da guloseima e longas horas. Recordo, já maior, logo menor tremuras e ternuras e noitadas espiando na insónia do amor o pezinho de dança das ideias. Eu as amei e amo tiritantes oscilantes pendulares e venenosas partilhadas como sendo novas sombras pasmadas como eram velhas rosas. 26-00-2008

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CONTRIÇÃO Neste corpo em derrocada sou apenas pormenor que a história não poupou ao ser contada. As muitas cantigas que tu sabias de cor a quem as cantas, amor, − de trás pr’á frente, talvez − com a tua voz de lacre com a tua voz de carta? Na ruína de uma porta, de uma cor, procuro os tais animais de que outrora te falava. E também a tua luz que se acende que se apaga. Toda terra é uma torre toda a mágoa um farol − cada degrau se confunde com o passo que o galga até à extinção da escada. 27-09-2008

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MIOSÓTIS ESSES CONSPIRADORES onde cabem as palavras mais imundas embrulhadas na vil serenidade que fará parecê-las tão profundas como face em parte oculta da vontade onde cabem tão viris quase concretas fêmeas quase secretas se em dose desumana pois na nudez, ora pose, ora disfarce depressa a nova frase se despoja das qualidades que relançam o sentido indirecto indiscreto indevido página cheia ou escaldante areia destinada a vir a ser apenas vidro? 28-09-2008 78


A cheia Dizer talvez coisas humildemente fundamentais e tão esperadas ou inesperadas como ver sair do mar um ginete sem cavaleiro. Dissipar nuvens e concentrar murmúrios. Falar do tamanho descomunal dos anjos entre gotas de chuva também desmesuradas. Perceber que há uma sombra na qual não poderemos abrigar-nos porque queima. Relembrar que temos pleno usufruto do tiro que nos sai pela culatra E sobretudo afirmar que o jogo de cintura é coisa que fêmea ensina a macho − houvera o céu de tingir a terra e o Outono desta carne desbotada. 28-09-2008

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A Índia imaginada por quem não partiu O face a face lunar não tem o requinte a quente também não enfado a frio. Ruidoso desembarque de cavalos assim o silêncio me conquista. Há nele pensamentos singulares recheados de deuses de répteis e transeuntes em rua a perder de vista. Assim o silêncio me conquista com a força da calúnia pueril que mais depressa abre alas e sua bolsa de fel: boca, para que te calas? O fase a fase lunar levanta poeira de ouro sob as mais traseiras patas e o liso ventre de um touro. Ó bicho do amor tão feminino vocábulo sem língua do desdém à parede do salão sempre encostado de casa onde não bailou ninguém. Ó besta da saliva que não salva que não sara, 80


que não cola nem consola. Ó puro intestino desta escrita por excesso de excremento endurecido, a vida ecoa distante no som do primeiro grito. Se acaso no lugar onde estiveres memória da nascença se consente e a toda a hora nasce toda a gente, embala esta cria que é só choro imoderadamente. 28-09-2008

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Na noite de âmbar de uma cidade distante mas vizinha da minha cabeça, um homem todo ele crina de cometa lê nas mãos que lhe entreguei fazendo estalar o chicote da língua. Tento respirar pelos olhos que já não pela boca − a cidade dorme como um pobre chapéu amachucado. O homem que tenho a meu lado, leitor de sinais e sinas, melhor que ninguém pratica o jogo das adivinhas: o do cadáver debaixo da árvore ardente o da caveira debaixo do sorriso andante. Porém, eu lhe faço uma pergunta à queima-roupa que soa como um soco gratuito no ventre de quem anda mal comido. Em que hora, meu amor, em que lugar, haverei eu de merecer o direito a estremecer quando no mundo é manhã? Quando poderei tremer no mel dos teus magros braços contra essa noite dos tempos, essa mãe que vem tapar-nos, essa mãe que vira costas...? 29-09-2008 82


Tea leaves Como falar-te de falta da folha ressequida que não abre do fardo dos minutos minerais e da chávena rasa de rosas as tuas a chávena rasa de ruas as tuas ao relento no tampo da mesa do mundo? Como dizer-te o desejo de provar bebericar saborear a nossa infusão escaldante para que o chá de uma noite nunca acabe? 2-10-2008

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TROVAS DO RIO SEM FOZ Este arco de finas sedas tange cordas insensíveis e o meu sexo é arado de há muito enterrado em vasto campo magnético. Que farias, meu amor, se eu te dissera em segredo que me cresce este meu braço como meandro de um rio em seu delta distraído escrevendo curvas recantos em lugar de obedecer à cega voz de comando que ordena que o rio corra se espraie na imensidão e em mar estranho morra? 2-10-2008

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A Química da Biblioteca Há ovos de trovoada e vénias de velho ninho no ventre altivo da biblioteca Há ovos de opala e oral soa a impostura intempestiva a fala já dissoluta a leitura Há ovos de lua obesa urros e murros arcaicos donde a voz não sai ilesa Fala também por charadas o amor livre dos livros e o livro de amor dos vivos 2-10-2008

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Uma sibila transitória em posse de um sabor a verbo que não sabe refluir a toda a hora traz consigo o cheiro a lona da caserna e aquele jeito de galinha terna excepto a penugem excepto a ferrugem da grade excepto o bico amiúde cravado em coisa dura. Uma sibila e a sombra acorrentada àquilo que acontece: vómito, esse sim indómito, por onde segue outra prece outra pressa outra aurora 2-10-2008

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Se menos por ora será mais, sê comigo sub traída porta e não já porto de abrigo. Por onde mais sou, me dói, por onde menos, te encontro, porta sem casa por trás, já não linha, ponto a ponto maresia, mar retinto, ébria de cheiro me sinto. Se menos por ora é mais, mais quero ser por desfalque dos tesouros deste mundo. 2-10-2008

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BIG BING Um pequeno empurrão e mãos à obra logo o Éden se fez charcutaria sob a forma de uma escrita, de uma cobra, e barriga a dar horas todo o dia. Com vagar de anal ou zelo de elo de rastos ou de pé, costas não tinha, esta escrita de outra ascese que fiz minha com prazeres de ouvir crescer cabelo. Por amor se prescinde de ser estéril. Por amor se prescinde de ser fértil. Passageira em teus braços clandestina, vaga a vaga cada vez mais sibilina. Eu te saúdo, atitude desatenta, mar de gente entre fontes latejando. Possa o pó que tu pisas ser pimenta e tempero da demora e do desmando. 2-10-2008

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Encaminhar uma haste − diz baixinho a jardineira. Curvada, já não se queixa das unhas negras de terra. Entre os dois cantos da boca só uma linha a tremer que não chega a ser palavra nem mesmo modesta emenda − muito cava, pouco lavra. E na garganta um aperto estreito e a si mesmo estranho por onde passam às vezes gritos de um ser desumano. Endireitar mais um caule − diz baixinho a jardineira. Moireja, colher não pode o que o jardim lhe destina. 2-10-2008

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Coração de lua em rua Cabeça de rua em lua Dura jornada que dura Caldo de inferno entornado. Lá fora o mundo é patrulha Pronto a matar o que mexe E afinal era só prece Lançada contra a lonjura. Uma só pergunta resta Cabe na mão e na arma: Abater talvez de frente Ou de costas simplesmente? 4-10-2008

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CARTA Meu pé de raiz dançante: entre as asas do arcanjo e os dois cornos do sátiro sopram ares de uma só nota, É cedo à face da terra: acoitou-se o nosso amor à sombra dessa cisterna que no centro do jardim pinta de azul a faiança. Tuas mãos de cinco pontas dobram a tela de sombra como se fora toalha e não lenço que se agita, nunca oceano alteroso mas já recorte de praia. Diz-me então por que me sinto apenas palavra errada nome de engenho enjeitado e enredo renegado por quem um dia chamou texto à evidência da gralha luz à escuridão da tinta. Quem te fui e o que te sou? De distância já despida ida após ida após ida. 5-10-2008 91


Quando entre minhas pernas não procuras num livro eu me quero transformar para que em mim possas ler com a crueza do olho aberto e a doçura da pálpebra pesada aquela que se baixa e que colhe o que ainda lhe não dizia nada 5-10-2008 Recorte de árvores sobre céu em desgoverno troçando do azul fundindo a negro. Cala folha joga a bluff um desapego. Aves e árvores têm entre si um misterioso trato de baloiço em balanço beijo pendular longo e ingrato em breve lanço de escadas. Se me tocas e eu te toco, se te vejo e tu me vês, qual de nós é retrato do retrato, qual de nós retiro, qual de nós retina? 5-10-2008 92


Se trinco o teu lábio superior inferior sinto esse favo e esse mel Não me canso de os provar porque me sabem a prova e me sinto minúscula rainha personagem de cera derretida em colmeia clara e escura ou em corte com a vida 5-10-2008

Os dizeres da flor Vestir e despir os sinais da carne a tanto já me obrigo e a ser de franca fancaria me instigo como se esse tributo ao fruto dentro do fruto encerrasse a salvação e não o luto. 6-10-2008 93


Sob o inferno do olhar o ser é feito de puro efeito e o estar simples defeito. Por isso o dono da cadela dirá sem paixão nem peias que o focinho tem a forma do açaime e a fome tem a forma do fastio. Sob o sol ascendente ou declinante o mesmo galope gago que prolonga os instantes, fissuras de sangue seco e já não olhos em lago. Abre-se e fecha-se a loja em cuja estreita vitrina dorme a loiça da pantera e a qualidade de fera à espera de ser quebrada. E o sorriso que se esboça é sorriso que se apaga. 7-10-2008

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Primeira água da derradeira fonte Alegre lamúria de amor e sede... Há fardos que só se largam No lugar onde se bebe, Palavras que só se deixam Nos lábios que se beijaram. 8-10-2008

Há rajadas de vento que derrubam árvores majestosas e contudo não arrancam as ervas mais franzinas e rasteiras. Há lágrimas tão negras que não lavam a noite consternada em que interiores anteriores lutam por lugares no nada. E há cabeçadas assim haja paredes onde bata o sol. 8-10-2008 95


A nau não Incapaz da proeza de nadar até à terra prometida, alguém promete a si mesmo ser sem terra e sem mar sem flutuar como ilha ou pupila sem aterrar em pistas ou no seu apagamento ou no concreto cimento de uma ideia. Alguém mete mãos à obra de boca que morde cauda de braço que afaga sombra sendo e crescendo à medida que ela se torna mais longa. 8-10-2008

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A lição de perspectiva O arauto de aurora soa a falso alerta e a parte do corpo descoberta pela duração da noite faz agora parte de outra miragem. Se ainda se avista é tão-só um ponto negro, um sinal postiço sobre a face inexpressiva de uma actriz. Ela fala fala fala sem saber o que diz e as palavras são anomalia ápice de convalescença e notícia de doença prologada − eco do passo gigante de alguém que avança noutra escala. É ingénuo pensar que ao cabo de uma longa viagem se voltou apenas com um mapa, para resgatar toda a forma, a mais déspota como a mais servil. Ainda assim é disso que se trata: enrolei-me até caber no armário, até caber na legenda. A isso chamaram prenda de menina bem criada. 9-10-2008

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Contraponto De tudo quanto não sobra resta um recado gravado por paciente canivete. Reconheço essa letra caminhante que faz rebentar palavras novas num tronco já fulminado. Passareis talvez sem poder ler, a meu lado e a seu largo, com olhos de lá estar e de não ver. No vou haveria um vem de amor que não foi dito e um dia comparece onde o mundo não se chama e a origem não se conhece. A isto se dará à vossa mesa o nome por inteiro difamado de intriga de palácio em pardieiro. Mas o pó do poente não se cola aos pés de quem não é pedinte mas tão-só esmola de esmola isto é: a voz ouvinte. 9-10-2008

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Carreiro de formigas agónicas derradeiros grãos rumo ao celeiro ou alinhavo de ideias impossíveis de ajustar ao corpo, os minutos desfazem costuras e bainhas - onde pousar repousar essas mãos que eram minhas? Da nossa casa devassada pelo sol a sol da solidão eu te quero escrever com a leveza das brasas. Será que já não lês na lividez lunar das entrelinhas? 10-10-2008

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Édipo ao leme de uma seara vê a estrada de alcatrão que ainda lá não está em lugar do que estará Édipo é pulmão em seu lagar e sete portas que babam e sangue pintando os céus contra os ventos da partida Édipo reconhece o cheiro a pólvora e a forma da vergasta do corpo da velha fúria da sombra da mulher casta Édipo discípulo de abelhas com máscara de apicultor adormece em mel amargo e em sonhos cegos avança Édipo arrasta consigo a sombra de uma criança à qual só por ironia persiste em chamar abrigo. 10-10-2008

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O machado cravado no tronco Há um pátio onde o sol derrapa. As crianças e suas sombras gritam alegrias sem motivos e queixumes exactos. Esse coro trágico não fala de amanhã e porque se espanta e se espalha do som que ao sol se levanta também não fala de agora. Parti em busca de um espelho que só me devolva imagens que se atirem borda fora. 11-10-2008

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Esta não é a via do meio nem a média aritmética entre o tijolo assente e a telha voadora. Este não é o lamaçal no qual se cava caminho esta não é a argila de lavar o caminhante. Este será grão de choro em espiga não debulhada e farinha de sorriso ainda não amassada. Machado cravado em tronco arranhadela em silvado garra bordando na tela surpresa de presa em teia Este não é o consolo de uma língua subjugada. Esta é tremura de lábios. timidez por entre dentes. Ao tempo que se suspira esfria a colher e a boca. Pouca a palavra. Pouca. 11-10-2008 102


nem oito nem mesmo oitenta sete ou nove ou um milhão perna de prosa sangrenta e um gosto renovado por olhares de colecção. em lençóis imaculados resta contarmos os pregos dormindo em vil vizinhança com membros enferrujados que não encontram parança. quem me dá folga ou folguedo folia de estar mais perto desse cavalo de pau girando num carrossel donde se caia sem medo? 12-10-2008

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Garatuja de comida sobre brancura de prato debicada, talvez lida, por bicho planador ingrato. Entre bálsamo e ferida ignoro o atalho exacto − ingénuas dores interiores e pensamentos gritantes fazem do corpo palhaço. Olha o espantalho plantado em terra por ti plantada que a ti mesma afugenta. Olha que ver não se paga o pasto da vaca magra. 12-10-2008

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O dia veste-se de escuro para rondar e ser notado. O sonhador sabe que o seu sonho cola à fibra das febres de almofada e o pesadelo decide a própria ideia de quarto com vista para a ronda e para a rua estrangulada onde soa ainda o trote da égua do esófago. Mas o sonhador não sabe deslindar a regra de um jogo que prossegue à distância de anos luz desse plano inclinado onde as causas rolam pelos olhos dentro e as imagens de mundo se enrolam como papel chamuscado que não ardeu a partir de um centro. Esse ninguém que lhe bate à porta anuncia não o fim da ronda mas o render da guarda. E não poderá ser noite na sua cela inexacta. 12-10-2008

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há anjos velozes, outros lentos há o passo travado do ponteiro e além da barricada o contínuo tiroteio quase soa a pedido de desculpas desde logo formulado mas por azar incompleto o caminho para as lágrimas está muitas vezes cortado por longo sorriso discreto de tão directo como gume obedecendo fraca a carne e fraca a faca passou o mês das estrelas cadentes sem deixar rasto e passou o mês dos frutos quase prestes a cair em silêncio de cilada há um anjo que não passa em tempo de guerra − mas qual delas? − não se limpará a casa 13-10-2008

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céu de estanho amolgado nas bordas aleijado de nuvens é mais fácil pensar que o temos em comum do que partilhar a terra não fui talhada como aquilo que é belo para viver debaixo de redoma sou apenas sintoma da terra: ânfora onde se guarda algo que se esquece algo salgado saturado como o grito incomestível a prazo 14-10-2008

ECILA ET SÉLICAN Hier soir, j’ai mangé un petit carré de chocolat noir en pensant à toi. Comme quand tu me disais «manges-en juste un petit bout avec moi», alors que je n’en avais pas envie. Puis il était bon ce bout dont je n’avais pas envie. Tu ne l’as pas compris. 14-10-2008 107


O dedo do falcoeiro fugido ou fugidio talvez paisagem em fuga ulcerada pelo riso negro e profuso de um rio como voz intermitente ele corre só e corre somente corrida se faz corrente ou talvez apenas margem onde melhor se ri por fim correndo nesse sentido das águas e gargalhadas pode alguém chegar à fonte donde já só brota o fio do horizonte? 15-10-2008

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era longe esse lugar para onde sem aviso me levaste não sei se pela tua mão não sei se pelo meu pé nem sequer sei se lá me abandonaste levaste-me até ao lugar onde o amor devia devorar-me mas eu fui devorando o amor como se fosse idioma de comida cada vez mais fera o amor era 15-10-2008

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houve muros rasurados a tumulto e outros há onde o sol incide e reincide como crime cósmico ou simples lide falo-te de efeitos de magia aparecer e desaparecer rastejar e voar a um só tempo alcateias e rebanhos confundidos em dia mais longo e mais cinzento falo-te das tribulações dessa amante pícara esbracejando como moinho sobre o pano esfarrapado que lhe era fundo e castelo e monte e prado falo-te da imitação da limitação e da acção contígua a esse fora de cena que faz as vezes da vida 16-10-08

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o corpo separado de si mesmo e da divina porcaria de cada dia o sabor separado do paladar e o vírus da raiva separado da marca da mordedura o som das vaias subindo como um sol de pouca dura mas um sol três motivos que me levam à suprema ingenuidade de fazer uma pergunta pois, pensamentos à parte, há quem porfie na arte de distinguir claramente a consequência pesada da consequência profunda nem a criança se cala quando lhe dão um brinquedo nem a causa muda as fraldas de seus muitos pacientes acamados pois, pensamentos à parte, o pensamento desgasta o lugar donde se parte um motivo que me leva é um motivo que não leva nada debaixo do braço 16-10-08 111


o que diz a boca antes de ser beijada lua negra dita nova céu sem cova onde de olho fechado alguém embala e ignora fale-se grito e faça-se silêncio à volta da cratera desta cara em lava fria lavada por mão de negra de mãe negra agarra que é cria, agarra larga que é presa indefesa outros a virão caçar em noite de lua acesa 17-10-08

A criança sabe que a lua não tem costas, conhece o som da maçã debaixo do dente e o ruído da terra seca debaixo da sola. 112


O vento todo ele é comovente e todas as camas lhe são estranhas, como se entre lençóis sobrassem vestígios daquilo a que chamamos negócios escuros. A criança sabe mas onde anda ela que não a vejo à janela de parir seus filhos agora que a vocação de ser travessa se esgota na travessia de um só dia? A criança julga haver lugares onde ninguém a vê, descobre-os quando deixa por instantes de ser vista e nesses ápices conquista notícia de semente e tormenta sobre ilha. A criança tem um companheiro que dizem imaginário engasga-se comendo as palavras de ira que lhe põe na boca e fica eloquente quase roxa quase rouca quando alguém põe uma pedra sobre o assunto, esse único assunto de conversa. A criança apita porque tudo passa devagar com tanta pressa. 19-10-08 113


neste longo meandro que é ourives de rio e pedreiro de cais quase se aprende a lição da meia estação mas corpo não luta contra o fardo e metido a caminho como obstáculo em marcha ou sinal de obras em curso ou ou ele entende o lado esquerdo e o direito até a margem caber dentro da jaula peito 19-10-08 Sol sob o sol molhado e mutilado eu te espero e aspiro o ar onde paira esse sorriso de gigante essa demasia que não cabe em corpo Em lugar sem sombra nem abrigo brilham rugas mil, tão finas e tão fundas de teus olhos que são astros com luz própria enquanto a minha pobre claridade é eco e cópia 19-10-08 114


Em sonhos indecifráveis alguns operários do destino falam de ter e haver tempo como se aquilo vejo pela frente fosse tormenta por exclusão de partes e mares muito interiores no ventre do capitão. Um empurrão bastaria para cair no passado resvalar na cova fria de lembranças sem fulgor buscando nova autoria. Quem cai não passa do chão disse às vezes quem me amava nessa infância que restou recta curva berma estrada meio de locomoção. 21-10-08

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Paleta de dores Há dores de todas as cores: umas nadam, outras não. Umas venda, outras mordaça, com lentidão de cegueira ou com nudez de rajada. Há dores com pulsos tão grossos que remam contra as ideias, outras engrossam as veias como vagas sucessivas cativas de um labirinto. Rosas e roxas de prosa amanhecem por malícia anoitecem por renúncia a serem de nós extremas a serem de nós externas. Como barcas sequestradas em águas turvas e baixas em águas sempre trementes transportam a carga podre de outras dores mais influentes. Há dores que são espantalho farrapos de cor a metro e embora afastem as aves atraem cantos estranhos onde se afiam as garras. 23-10-08 116


Entre zénite e nadir o sangue se vindima rente à terra, mas tu caminhas com pernas de bétula combalida pensando o desenho de um sorriso como se fora a espada e a estocada e uma aragem de boca entreaberta frágil oferta que a teus pés chegou fechada. 28-10-08

O corpo não se agita, nem acena, mas vai entornando a cada esquina o pouco que em si transporta. Pura curva, longa vénia, o passado não cabe no rasgão que lhe é apresentado como porta. 28-10-08 117


Calça coturno aquele que quer falar a quem o olha de frente afivelando a careta de uma multidão compacta e discreta. A criança, é sabido, procurou quem se escondia atrás do espelho, não a face de quem vê mas um espectro astucioso que só existe de costas. Não havendo nada a ver virou-se para a boneca. Arrancou pernas e braços, cortou-lhe dedos, cabelos, e cada parte perdida soou a sinal de vida. A criança é inconsolável − porque não chora a boneca. 28-10-08

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Ó hemisfério na sombra de um planeta em convulsão dentro da minha cabeça Ninhada de velhos ovos e aves em asfixia Cozinha de solidão e lixo por companhia Abro o caderno das ruas fútil herbário de Outono e desejo dormir dormir por entre folhas um sono sem vértice sem aresta Um sono de vapor na orla da mínima floresta 28-10-08 A alegria despiu-se para entrar pela porta do cavalo e o seu galope travado foi escrita de bastidores. O amor não tem fachada, nem janela furtiva sobre si aberta. Onde o texto salta um elo o amor vai ser morada. 28-10-08 119


Paragem do coração Chuva das últimas pestanas Neblina nupcial cortada à faca E agulha de ouro em palheiro Esta é, meu amor, Uma estação levada à letra. E este é o meu coração Fumegante Descarrilado. 28-10-08 Não sei se tema ou teor deste voo turbulento − entre azul menos azul e cinzento mais cinzento −, encaro a melancolia como investida de touro chifres, ventas, cascos, lombos... O céu não desanuvia mas contra as nuvens gigantes dos ossos faço orações e dos cabelos tapetes. Ó meu anjo estivador a que barca confiaste a tara das minhas falas e o fardo do meu desastre? 29-10-08 120


Ele há coisas que se pedem apenas por desencanto e ao tempo que as choramos em maré alta de pranto força é que percebamos que nunca nada se pede apenas se dá o flanco. Retomando o que te peço a pó me reduzirás pelo inverso processo do verbo amassando o barro do sopro enfunando o verbo do barro beijando a voz. 29-10-08

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A Velha Menina A velha menina não usa colares à volta do pescoço. Usa palavras algumas em desuso todas elas atravessadas na garganta. E essas jóias falantes corruptela de seu nome elas as usa como trela. A velha menina cambaleia como um naufrágio ambulante domando ursas menores na laguna agora seca de sua antiga retina. A velha menina arranca os dedos quando fala. Suas mãos sangrentas aplaudem a queda vertical de estrelas menos seguras cujo brilho é fraco e falso e de luzes menos puras no seu encalço. 30-10-08 122


Canção da chuva rasgão ininterrupto de cortina - a flor seca tão murcha quanto erecta não tomba do alto do seu caule ainda. Só a chuva cai assim indecisa entre o aprumo cortês e uma ligeira embriaguez, entre cortar a eito e soçobrar. Só ela se entrega decidida e doce à face visível do limite. E a flor que foi nos confins dos jardins deixar-se-á fustigar. 31-10-08

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Índice Na antiga Grécia.................................................................... 3 Sonhei que não estava morta................................................. 4 eu sou sustento de uma flecha................................................ 4 O frufru da folha caída........................................................ 5 É com rastos que contra os rastos luto.................................. 6 Livro...................................................................................... 7 Águas-furtadas..................................................................... 8 Chicken myself..................................................................... 9 Spider she.............................................................................. 10 que sabes tu da maneira........................................................ 11 meu pó de borboleta............................................................... 12 Não desejo lavar-me, meu amor............................................ 13 Fogem-me as palavras........................................................... 13 Desimaginando..................................................................... 14 Desimaginando ainda.......................................................... 16 vol e lov.................................................................................. 17 rosa de rumos sem vento........................................................ 18 A carne para canhão do sentido......................................... 19 Insolência.............................................................................. 20 Child song............................................................................. 21 Quando a árvore descarnada................................................ 22 Isto que não é meu............................................................... 23 ursa de céu ............................................................................ 24 Nesta amnésia de paredes meias........................................... 25 Minha estrela quente e cadente............................................. 26 NAN....................................................................................... 26 NAN 2.................................................................................... 27 As ideias fogem como grandes presas................................... 28 Versão expurgada................................................................ 28 CÔTE ATLANTIQUE........................................................ 30 124


O turno de Saturno.............................................................. 31 Em certas danças................................................................... 32 Sombra de gamo.................................................................... 33 aos dias cortar cabelo............................................................ 34 Vem pois, meu amor............................................................... 34 alguns falantes mais desalinhados........................................ 35 A noiva repudiada.................................................................. 36 Sonho com todas as maneiras de despertar........................... 37 Estâncias do anjo no anjo.................................................... 38 Para que a carne seja............................................................ 39 a vida dupla.......................................................................... 40 na boca não cabe a língua .................................................... 41 Sonhos molhados de aurora.................................................. 42 «she speaks like silence»...................................................... 43 robe c..................................................................................... 44 Entre o lugar do espírito........................................................ 45 EUTOPIA............................................................................. 46 La main devient alors............................................................. 47 no baile mandado .................................................................. 48 Uma ilha boiando no meu colo.............................................. 49 pé ante pé............................................................................... 50 O mundo desde há muito está a mando................................. 50 O sono virá............................................................................. 52 Quando tinhas a cabeça noutra parte................................... 53 a pequena porta está aberta:................................................. 54 O homem trabalha a terra..................................................... 55 Certos bichos aprendem a esconder-se................................. 56 toute vérité est songe.............................................................. 57 A minha rua ......................................................................... 58 espetei alfinetes na boneca..................................................... 59 agradeço ao embalo do comboio........................................... 60 Em horas já sem conta de vigília........................................... 61 125


Afeiçoei-me à ideia................................................................ 62 Agora a paisagem é espelho.................................................. 63 No ventre de alguma mãe...................................................... 64 Se as pedras não mudassem de sítio... .................................. 64 Nada mais volúvel do que a constância................................. 65 Venha a mão e a tesoura e o gume........................................ 65 Falo-te da malha morta......................................................... 66 A sépia.................................................................................... 67 Como o filho do homem......................................................... 68 Temperar é tornar mais intenso o sabor da comida.............. 69 Palavras de pátio e cativeiro............................................... 70 Adenda à raia......................................................................... 70 o teu olhar chega de tão longe............................................... 71 alheio-me ............................................................................... 72 em seu pousio, a dama endiabrada........................................ 73 Aqueles que fazem da fúria sua força de trabalho... ............ 74 CIRCO.................................................................................. 75 Lembro-me de ser pequena e de me aborrecer...................... 76 CONTRIÇÃO....................................................................... 77 MIOSÓTIS ESSES CONSPIRADORES........................... 78 A cheia................................................................................... 79 A Índia imaginada por quem não partiu........................... 80 Na noite de âmbar.................................................................. 82 Tea leaves ............................................................................. 83 TROVAS DO RIO SEM FOZ............................................ 84 A Química da Biblioteca...................................................... 85 Uma sibila transitória............................................................ 86 Se menos por ora será mais................................................... 87 BIG BING............................................................................. 88 Encaminhar uma haste.......................................................... 89 Coração de lua em rua.......................................................... 90 CARTA................................................................................. 91 126


Quando entre minhas pernas não procuras........................... 92 Recorte de árvores sobre céu................................................. 92 Se trinco o teu lábio............................................................... 93 Os dizeres da flor.................................................................. 93 Sob o inferno do olhar........................................................... 94 Primeira água da derradeira fonte........................................ 95 Há rajadas de vento............................................................... 95 A nau não.............................................................................. 96 A lição de perspectiva.......................................................... 97 Contraponto......................................................................... 98 Carreiro de formigas agónicas.............................................. 99 Édipo ..................................................................................... 100 O machado cravado no tronco............................................ 101 Esta não é a via do meio........................................................ 102 nem oito nem mesmo oitenta.................................................. 103 Garatuja de comida............................................................... 104 O dia veste-se de escuro........................................................ 105 há anjos velozes, outros lentos............................................... 106 céu de estanho........................................................................ 107 ECILA ET SÉLICAN............................................................ 107 O dedo do falcoeiro.............................................................. 108 era longe esse lugar .............................................................. 109 houve muros rasurados a tumulto......................................... 110 o corpo separado de si mesmo............................................... 111 o que diz a boca antes de ser beijada................................. 112 A criança sabe que a lua não tem costas............................... 112 neste longo meandro ............................................................. 114 Sol sob o sol........................................................................... 114 Em sonhos indecifráveis........................................................ 115 Paleta de dores...................................................................... 116 Entre zénite e nadir................................................................ 117 O corpo não se agita, nem acena........................................... 117 127


Calça coturno......................................................................... 118 Ó hemisfério na sombra ........................................................ 119 A alegria despiu-se................................................................ 119 Paragem do coração ............................................................ 120 Não sei se tema ou teor.......................................................... 120 Ele há coisas que se pedem.................................................... 121 A Velha Menina................................................................... 122 Canção da chuva ................................................................... 123

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