R 8 caderno eclipse 2 interior

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regina guimar達es

cadernos do eclipse 2 (novembro 2008 a janeiro 2009)


A filosofia do frio Em dias de sol baixo a sombra, mais negra e desenhada do que é hábito, indica outros caminhos no caminho. São estreitas essas passagens rentes a muros e sebes. Não te peço que me levantes e me faças ver do outro lado. Basta que me contes o que há com os meios de um corpo quando diz já lá ter estado. 2-11-2008

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Estado Crítico Algo que chegasse em braços e fosse levado em ombros, e se recortasse sobre a mesa do mundo como borratão de sol e despejasse sua luz crua no longo hiato de uma rua. Algo contudo subterrâneo estalactite crescendo gota a gota a partir deste texto rente ao tecto dentro da escura gruta de uma boca. Algo estranhamente feliz alguém às cavalitas e alguém de cócoras alguém à cabeceira e alguém aos pés alguém deitado de sobremaneira em noite curta e talvez primeira. 2-11-2008

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Gag Numa noite assim negra e gordurosa como vagem de baunilha as ideias caminham sobre água morta. E quando extenuadas dão à costa já soam a menos que uma errata. Porém a voz do pensamento de tudo faz ferramenta. e tudo lhe fica à mão semear. À falta da justeza das ideias e da destreza dos ideais, é preciso percorrer de lés a lés o vasto campo das impossibilidades todas elas insolentes e reais. Numa noite assim negra e brilhante como a pupila imensa de um gigante, li as páginas que os dedos não viram, olhei as paisagens que não desfilam. Senti que ao longe alguém me via. Será era apenas o nascer do dia? 4-11-2008

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Sonho acordada com a tua pele de opala essa que para ti guardas como manta demasiado estreita em noites de pavor e frio. Sonho com os teus olhos que lambem o fundo das feridas e beijam sorridentes cicatrizes com mais meiguice do que pensas com mais doce desvelo do que dizes. JĂĄ nĂŁo sei o que contemplo e o que completo risquei a giz o contorno do meu corpo e espero que uma chuvada apague o crime de ter chorado a morte de algum mundo. Porque sonhar ĂŠ chorar muito mais perto. 4-11-2008

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Freeze Distinguir o uso pleno do desgaste a noite em claro da manhĂŁ cinzenta e o lento trabalho desta contingĂŞncia de uma bofetada de luva branca. Distinguir ainda assim a dominante e o matiz que a mata em hora morta sabendo que o fantasma do presente ĂŠ alto de mais para caber na porta. Distinguir neste caos um caos maior do que a simples desordem dos sentidos. 6-11-2008

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Como se disto restasse um desenho a carvão ou um desenho na areia e as inflexões da chuva e a vaga que tudo apaga. Mas a fala intempestiva é sangue que abre caminho quando brota das feridas é sangue que suja os pés chegando onde não pode. Como se e como dantes pé de dança, pé de guerra, mendigasse uma palavra à porta de quem me guarda e me cortassem as mãos. Como se e como agora mão morta batendo à porta outra casa se me abrisse sobre as ruínas do que eu disse em jeito de fulminar. A fala de amor se trava - porta empenada e ausente uivando à gente da casa até ser apedrejada até ser pedra sem gente. 6-11-2008

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Na mina deste silêncio luz como olhos em olhos o nó cego de garganta o nós em fio de voz. Há um ir sem saber onde um torcer para quebrar e há o frio do refúgio que escorraça quem se esconde. Desforra ou desapego? Desaforo ou desafogo? - debaixo de brasa abafo por isso em cinzas me espalho. Meu amor aqui e logo meu amor ali depois são dois onde passou um veio em jazida de ouro curva muda cotovelo garrote abraçando veia fio que fora novelo mais forte fará a teia. 7-11-2008

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Ouço a voz da ânfora enterrada e de seu óleo imemorial ou de seu vinho talvez como uma dor dormente uma dor em repouso que já não mente. A criança aprende que a fala é a forma mais útil de calar e até os balbucios do olhar conseguem disfarçar frases inteiras. Ó página de rosto amarfanhado ó flores de papel murchando em mão ó livro fechado do ouvido onde enterrar o que nasceu comigo onde guardar o que nasceu depois onde escavar o que nasceu bem antes? 9-11-2008

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Jogo do galo Na quadrícula dos passeios inscrevo rodas e cruzes jogando contra os sentidos que me cruzam ou rodeiam. Ovelha negra e pesada incapaz de cambalhota entre as pedras busco a erva que rebenta na calçada. Porque não movo montanhas quase montanha me sinto dia a dia acumulada já não subtil labirinto. 9-11-2008

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O chão que piso Como os pobres molho o pão na cova onde cabe a sopa e com o resto do naco enxugo o fundo do prato. E do hálito da noite imito o frio aparato - fico mal nesse retrato de corpo menos que inteiro. Se o chão é meu caderno e o olho meu lápis rombo, escrevo agora em cativeiro correio indigno de pombo. Namoro as coisas mais baixas as que ferem a pupila arranham os meus ouvidos e metem medo aos amigos. Atrás da juba e da cauda nem mendiga nem rainha limpo as lágrimas à fralda e choro melhor sozinha. 10-11-2008

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Oolito & Sonho Pediste-me que vestisse o vestido interminĂĄvel esse este. Com rubor de face e palidez de coroa aproximei-me do espelho. Mas o espelho dormia a sono solto e eu senti-me como a irmĂŁ serpente gelada e nua duas vezes caĂ­da na mesma cilada. Uma por ti uma por mim. Disseste: ambas por nada. 11-11-2008

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Armadura Frente ao desfiladeiro, o peito debruça-se sobre o vazio e observa o curso incerto das batalhas do passado tão presentes. Maltrapilha, desgrenhada, como se regressasse de um baile de máscaras e não tivesse encontrado o caminho de casa, ouço sobretudo esse coração, não sei se meu, que bate em vão e, de tão cego, vê coisas onde não estão. Pêndulo ou fio de prumo há que dar rumo ao coração. Em que parte da visão aconchegá-lo ao último suspiro dos que tombam e logo se levantam para caírem com mais convicção? Em que parte de mim ele ficará enfim fora de cena fora de circulação e perto de ti? 11-11-2008 13


Para especular é preciso olhar ao espelho: por isso não especulo, amo. O zéfiro que me traz rouxinóis imaginários libertos de impérios que já nem, já não, semeia mísera discórdia. Mas eu não aprendo a lição. Para especular é preciso dar como certo e perto isso que apenas promete reflexos. Por isso não especulo: amo. Entre paraísos intermitentes e infernos cada dia menos quentes, o predador lê nas vísceras de sua presa. Mas oh surpresa não foi fatal o golpe de misericórdia. O sol nasce e devora e nasce tudo de uma assentada: até parece que a noite não serve para nada. Para especular é preciso ser pau mandado em baile mandado. Por isso não especulo, amo e de amor me dano. 12-11-2008 14


L’amour n’a pas plusieurs cordes à son arc Il est arc et chant des possibles 12-11-2008

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A arte de embalsamar? Se escrevo e leio em lábios ausentes Se escrevo e leio ao contrário virando contra o que escrevo aquilo que em mim não leio e desgoverno a esperança das linhas que deixo a meio É porque boda de sol em cama bordada a sombras. É por hábito de forja é por hálito de fole. Eu fui arrancada a ferros enquanto quente malhada até só ser ferramenta até só revolver cinzas e resolver-me em ferrugem. Se leio nesta limalha é porque íman ainda e uma agulha espetada onde a palavra me empalha onde a mão porém não chega. 17-11-2008

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A varredora de pensamentos Por breves instantes, a varredora olha para os pensamentos amontoados a um canto e distrai-se. Então porque o ouro do Outono hesita entre o galho nu e o céu mais nu ainda. Algo cai, pensando-se, não se sabe se de muito alto mas fora do lugar seguramente. E o movimento perpétuo que parecia suposto remoto talvez - como uma boca que se furta mordendo a palavra extinta retoma, tomando a cargo novo campo de visão faz que faz mas faz de conta. A sereia ou a estátua ou a metade de um peixe pousada em seu pedestal entoa para os mirones uma fria melodia. Não se sabe se canta em surdina se são surdos os mirones banhados na luz da tarde como em ouro de latrina. 17-11-2008 17


Porte condamnée Na ponta do promontório jaz a dama em demasia em seu repouso forçado. Chove. Chove um arroz aromático de matar fome aos pardais que voam obre silêncios nupciais. Na extrema do promontório uma alma a mais faz sinais como pedra magoada. E chora. Chora ao tempo que refreia um riso descrente e cru dando asas a uma ideia fixa. Está tão longe o som do mundo... Por muito que ela se apresse quer parta, fique, ou regresse, volta sempre ao lugar onde a terra se acabou e o texto está a acabar. 17-11-2008

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Entre dilúvio e delírio Voos mais altos Palavras mais rasantes. Mudaram de figura os sobressaltos Os golpes são mais fundos do que dantes. O braço em seu aço se tempera O olho em seu molho marinou . Ó meu ouro baço e escuro, Quanto pesa o braço que abraçou ? Quanto pesa o olho de quem espera ? 17-11-2008 O efeito já fala pela causa pela pessoa fala seu retrato e eu invento vento invento no suave declive do anfiteatro. A cada esquina vamos tropeçando no cadáver da mesma mulher. E o céu é coeso a clarear sobre a terra abalada por gracejos. Chegou a hora de recolher o lixo desviemos os olhos das defuntas - há duas maneiras de EVITAR: a passada comprida e militar e o passo curto da gueixa. 17-11-2008 19


Ingestão Breve epístola da selva do mercado e do bordel - carta de mãos mais vazias mortíferas e frias. Bem-aventurada, ó língua capaz de colar a asa ao verso do envelope. Bem-aventurada, ó faca capaz de rasgar a aresta do envelope fechado. As palavras naufragadas tocam o fundo ao de leve e depois voltam à tona. Pois o que vai e o que volta arrasta ou leva consigo muitos pontos de partida. 17-11-2008 Resta-me o mau génio dentro da lâmpada. Resta-me a saliva senil e um certo jeito de colar a cuspo. Resta-me a velha coroa de asteróides a cobra mandriona a crista e a crosta em terra assolada pelos mais violentos azuis celestes. Da solidão partem muitos caminhos do amor: raios de estrela farejando estrela máxima em noite mínima. 17-11-2008 20


Vi o abismo ao descer um curto lance de escadas. E porque o perigo é prodígio continuei a descê-las até estar segura de que não tocaria o chão. Pensei para comigo que o menos certo, o mais escasso, pode ser sabido a par e passo. 17-11-2008

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Procurei-te no sangramento cinzento das ruas e noutras hemorragias que me são constância e ânsia. O sol, inaudível de tão baixo, ainda assim me segredava que não haverias de trocar estas palavras incandescentes, esta deriva do vivo, por outras que te seriam impedimento, por outra conversa sem deflagração. Sabias que ninguém me socorria. Porém, como das muitas vezes em que me olhavas, não podias suportar que eu fosse a lâmpada embaciada pelo sopro, que eu fosse essa criança triste e feliz que não recorre à inspidez do imaginário para se sentir imaginada e só a ti pedia para ser real. 18-11-2008

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Álgicos afazeres Em baldios e terrenos ermos onde as estrelas ardem mais perto, alguém transporta a força do fruto ausente cujo sabor precipita a queda. Assim, um após um, os dias saltam para dentro de suas armadilhas. Eles treinam, homem a homem, o tiro ao alvo. Para poderem matar à distância. 19-11-2008

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Capitão Gancho Busco a companhia estridente ou surda dos livros sabendo que os leitores levam para o túmulo o segredo e o proveito de serem lidos. O leitor como o bebedor e o astro dá a cara e perde luz. Brio e brilho confundidos. Perplexo, vai observando o vale visto do cume e o cimo do sopé. Traz para o meio da cama os livros de cabeceira e adormece de costas para a noite derradeira. Na companhia é inapto, o leitor, e na cópula pálido reflexo do seu outro sexo. 20-11-2008

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Olhando para trás para encurtar caminho, o amor rasteja como palavra debaixo da língua e língua debaixo de lustre em casa sem tecto sob a noite estreita e contrafeita. 21-11-2008

O actor e a sua fala todo o terreno é demasiado convincente para descrever a areia grão a grão. Pois ele pisa as palavras antes de pisar o chão. Assim eu não. Pago com a vida a pronto a minha delinquente eloquência sabendo que és, meu amor, anfitrião de um mundo segundo e hóspede do meu. 21-11-2008 25


No centro do claustro, um poço, e um pescoço de cisne que se curva para beber água inquinada. Em redor da sede, arcadas reumáticas, pilares corroídos por longos silêncios e pequenos ruídos. É pelos orifícios do seu corpo - esse lugar tenazmente ambulante, lento e recalcitrante que o aedo alimenta quem o escuta e de escuta se alimenta o seu lamento. Porém sopra um vento de resinas e de ervas e de algas, absurdamente terrestres e marinhas, a que ele pode chamar lembrança ou talvez falsa lembrança. Então, desenhado com o dedo e já não com a língua, o seu canto é de terror poroso e soberano. Ele sabe que o real é seu soldado; coube na cova de um ventre, fez girar o ócio dos moinhos, arrancou rios a fontes taciturnas e façanhas a cavalos de pau. O seu canto é travessia a vau. 22-11-2008 26


Olhar a flor, fosse ela única forma do mundo tão exacta e descabida que lá cabem tantas outras - inclusive as que obrigam a cheirar antes de meter o nariz no bolso. Olhar a flor, esperar que da corola salte o grifo e o centauro, e que o pólen se resolva em duas vezes fénix e fogo a toda a prova. De olhos me fiz esses bichos incrustados no meu rosto que me servem de repasto analfabeto e ora me saciam de concreto ora me empanturram de desgosto. Porém o desejo nasce de desejos que desejam nascimento. Tão cinzenta esta massa, este cimento, entre pedras de muralha primitiva viva aresta que se esconde em ângulo morto. E no fundo da garganta que é apenas falso fundo de gaveta uma sede de ser folha em infusão de floresta. 22-11-2008 27


é leve a mão que oferece o vaso incomunicante onde a boca se fere e se desenha a gota amarga-me a língua reduzindo à sua pequenez a fala adormecida na garganta porém, se bebo vem-me à cabeça a tua orelha de orquídea e uma ideia aleijada quase líquida também se bebo, a cabeça pende para o lado onde o sol bate quer ele me aqueça ou me mate procuro o anjo do chá nascido no maxilar de uma manhã desdentada assim corrompo talvez o ritmo fluido da prosa vertendo este veneno que nunca faz marcha atrás numa fonte duvidosa 23-11-2008

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O meu amor procura uma história de floresta negra e azul negra e verde num pedaço de carvão. O meu amor é inflamável e solta gritos de bicho quando se faz labareda e se imola em quarto estreito atrás de porta fechada. Para que sejas floresta bela em mim desembestada. Para que sejas clareira a corça de lá não fuja e o lobo de lá não saia. 24-11-2008

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Mas a floresta é também estaleiro de outro mundo e quem se perde lá dentro entre ramos e andaimes não saberá se a obra continuamente acrescenta ou antes se desmantela. O meu amor segue o eco de sorriso ou assobio e cora até à raiz porque imagina ser visto e já não mais protegido pela tocha dos seus passos e já não mais encoberto por panos de céu aberto e galhos que rebentaram do mel escuro de seus braços. 24-11-2008

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Depois do incêndio no pequeno teatro de sombras, paira um cheiro a anjo revoltado e o olhar ele mesmo fumo ele mesmo fagulha dispersa já não sabe por onde começar a ver. As sombras medraram e são agora maiores do que a tela e bailam doidas e enormes doidas e informes fora dela. Porém, as sombras buscam o fogo central ou seja: o caminho mais curto entre o olhar e a assombração. Entre o olhar e a asa. Entre o olhar e a mão. 24-11-2008

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o sol é poente onde não se nota e da orelha rubra do silêncio saem léguas de lenços como memórias moles. há pessoas, penso eu, que se contentam com as cores da verdade bocejante enquanto eu, demente, me vi reduzida ao vexame da verdade na mentira como ruga entre todas mais amável. a criança crescendo em seu baloiço levanta as pernas cada vez mais alto para não tocar o chão nem derrapar nos sinais que apontam para o céu. já o leite em sua fúria ferve e uma neve eufórica lhe serve de penumbra. 25-11-2008

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Dias decrescentes Neste silêncio de pedras a monte e pernas à mostra, era preciso opor outra ironia ao fel que faz as vezes de destino. Neste silêncio de espancamento e cara a condizer com a careta, era preciso dar sinal si acenando com um sim ininterrupto. Neste silêncio de pano em bastidor, me vejo bordando a arame farpado. 26-11-2008

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puxei por linhas de fuga e pela porca miséria a que chamam perspectiva sobre seara cinzenta pairavam lendárias pragas ou nuvens muito recentes fui contrição de cigarra por interposta pessoa no carreiro da formiga cravei os dentes no texto mas soube-me àquele grão que alguém untou de veneno e no silêncio do silo como se fora na tripa toda eu me esvaziei da palavra e da pronúncia da escrita como renúncia e trilho de penitência 26-11-2008

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era eu e eu apenas o leme desse navio fantasma era eu sua tormenta sem humana proporção e seu mastro vertebral era eu o vagalhão que fazia rir gaivotas nas minhas cordas vocais era eu a terra ignota biscoito podre e salgado para rato do porão resta ditar à distância se encalho num recife despida e despedaçada se me calo lá no fundo depois de ser saqueada 26-11-2008

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Chuva de molha-tolos a mãe pergunta a seu filho: - onde aprendeste a mentir? - foi nos teus olhos volúveis que sempre se desviavam jogo de rabo de saia jogo de esgar e de esguelha. se não caibo nos teus sonhos, bobo da corte me sinto, bomba de festa se minto presença de antimatéria. pela frente ou pelas costas a vida escarra respostas cobrindo de mil insultos as minhas pobres perguntas. e eis que, ginasta dos factos, as juntas numa só praga. entre grão e gafanhoto quem me larga e quem me agarra? a mãe pergunta a seu filho: quem te ensinou a contar? - se conto, acrescento um ponto, perseguindo o que não fiz, algo me deus e me diz o brinquedo que desmonto. 36


em teatro de curral imperam dores de corno e as dores de cotovelo por falta ou excesso de zelo. nem coro, nem pisco os olhos, quando fito o sol de frente mas ardo como um papel em minha ira eloquente. e eis, exĂ­mia ginasta, que a tua esmola de amor sempre que eu estendo o chapĂŠu no fundo de mim tilinta. a mĂŁe pergunta a seu filho: quem te ensinou a calar? 27-11-2008

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Qu’est-ce que la grâce? dói-me de tudo um pouco até mesmo a alegria aleijada de ter dois pés escorreitos até a velha flauta dos meus ossos dói-me não ver um palmo à frente do nariz e saber que o nariz não é meu dói-me não ser bando não ser O bandido e dói-me a barulheira dos olhos seu pousio sem repouso no silêncio desabrido dói-me a palmada nas costas dói-me o sorriso furtivo dói-me a carta extraviada dói-me lê-la em voz baixa e dá-la como perdida dói-me lê-la em voz alta com a voz amarrotada dói-me a cópia de Pandora e dói-me a mão que abra a caixa 28-11-2008 38


ballet frouxo a providência mostra agora o seu dente postiço e tão dourado que todo o ouro cabe em seu sorriso pode a carne calcular este passeio entre o aquém do amor e seu além entre as reservas do olhar e a cegueira? posso eu desta mira desviar-me extraindo a bala perdida que dorme dolorosa na barriga? posso eu parecer-te passo em falso? virei costas ao abrigo e ao abismo porque tu chegas sempre antes de mim sentindo-me seguir no teu encalço. 28-11-2008

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uma filha dilecta estão tristes os meus cabelos. por vezes choram tão copiosamente que eu fico encharcada e tiritante como uma estrela esfriando à velocidade da luz. as mães são aquelas gajas prestes a serem abandonadas mesmo quando são maninhas mesmo se ervas daninhas mesmo que filhas também não de si mesmas e então do mal o mesmo elas ficam pelo caminho a caminho do caminho caídas como cabelos como lágrimas. viradas como páginas. 28-11-2008

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O frio das tocas o espírito do gato que não tive ronrona sinistro debaixo do soalho e a pele inspirando e expirando por olhos e poros faz coro com as tripas da casa. há lá fora ramos a arder e fantasmas que podem apagá-los. há lá fora passos a doer e fantasmas que podem apressá-los. há lá fora poças que sorvem o céu cantando como espelhos secando como bocas. há cá dentro um fora que a toda a hora cresce. 30-11-2008

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falo ao espelho sem reverso - é ele que faz perguntas e numa só todas juntas. penso agora sem dizer que a dor de dar à luz não se escreve e logo esquece mas contudo permanece como forma de doer de saber digo também sem pensar que agora sou apenas crista de estepe cinzenta ondeando sob o vidro e formo comigo mesma um casal envelhecido sol nascente ou sol poente como o caminho me curvo e me agarro à dura encosta muito envelhece quem ama mas não descansa quem gosta 1-12-2008

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falo-te com a voz escavada pelo silêncio com a voz de quem não consegue ouvir-se voz de soprar a vela e enterrar a espada falo-te com a voz arranhada de um canto que durou inoportuno em noite inoportuna voz de veia em vela inchada voz de mastro ao qual ninguém sobe falo-te com a voz do sono interrompido com a voz do sonhador abatido em sonhos voz de perna interminavelmente coxa voz de criança prematura e roxa falo-te com voz de falsete e cipreste com voz de quem se descarna ao tempo que se despe e não consegue juntar toda a roupa ensanguentada. 1-12-2008

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Às vezes, a música morde a nuca e cai com o peso de uma cortina por onde trepam macacos invisíveis. Às vezes, a música perde as estribeiras e salta para fora do deserto ou para dentro da cama acordando tudo o que já em nós dormia. Às vezes, ela esquece o seu estribilho e esbanja-se em refrão que lhe é alheio, em bocas de salão e papo cheio. Mas o corpo é lugar de resistência em mil fios se enrola e chega ao rubro e eu digo para comigo que basta a nossa música para aquecer o mundo. 3-12-2008

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às vezes acho o meu corpo onde não o abandonei onde tu não o deixaste nem escondido nem à vista é por obra do silêncio que farejo a sua pista como uma alma ele se ergue vela de seda puída e sobre andas caminha sua marcha aluvial não segue rumo de foz nem desanda rumo à fonte pois todo ele deseja ser ócio e afã de margem onde refrescas os pés 4-12-2008

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tomar-te pela cintura como por mar encrespado fazer um uso pleno superlativo indevido de todos os meandros que te são carne e corpo despenhado contra a sucessão dos dias tomar-te pelo braço ser planta trepadeira assim tu foras jasmim alecrim e rosa dormideira sufixo de sebe gemido de cancela suor de cedro hífen de noite ácida jardim andante ao cabo de mim 5-12-2008

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debaixo das telhas, das traves das ripas, das tábuas do sobrado, das pedras da calçada, dos azulejos, das lajes, dos lábios há vermes cuja escrita não nos cabe decifrar desperto com uma dor de cabeça intensamente rosa sobre rosa e no pólen das japoneiras em flor encontro a primeira estação a sua deflagração agora a retardador. 5-12-2008

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o sol nasceu baixo e rente ao horizonte ficou a ruminar brumas como um motor ligado na lonjura ou como um astro apeado em plena marcha do mundo quando um raio mais afoito faz uma breve rábula por entre nuvens, penso nos teus pés mais rápidos do que os meus pensamentos e neste tormento de seguir não um caminho mas este cambalear por entre despojos jóias e armas pesadas este rastilho de nervos em campo de batalha e penso no ícone único frente ao qual me abismaria numa interminável oração: o de um homem esventrado em suas vísceras lendo o sentido do presente. 6-12-2008

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Flutuando sobre linha de água como íbis algemado a lótus, a tua caligrafia repousa numa retina retinta - olhar rasgado de ninfa no caudal de um rio à deriva. Acima e abaixo dessa linha, o sol ora se esconde ora se mostra - onde fica o horizonte e onde a costa onde a nudez atrás da fechadura? Mas é no esgoto da margem que a imagem mais pura exerce a sua chantagem: toda a coisa que merece esmorecer de seu filho busca a farda e o fantasma. 7-12-2008 amor penteia-me os cabelos quase brancos quase velhos com os dedos desenriça os meus nós cegos como o tempo em terra de mim planta a sua dura enxada desenhando o olho único que uso oculto na nuca amor penteia e semeia e canta 8-12-2008 49


Litote haverá um velho anjo em vez do jovem espantalho e um manuscrito apagado em lugar do firmamento os répteis e as aves terão juntado os trapinhos por não haver diferença ou ofensa entre quem voa e não pensa e quem rasteja pensando haverá uma conversa um longo mastro tombado de cujos nós brotarão novas folhas, novos lábios e haverá uma pergunta: mais vale morrer de pé ou simplesmente deitado - caminhando sobre o céu ou pelo céu caminhado? 8-12-2008

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Jogos de saciedade Na penumbra do salão de jogos o derradeiro ultraje é o traje de passeio enfiado à viva força no corpo gelado e hirto. O moribundo já viu a cor da corça amarela e o gás azul da gazela - o seu sopro imperceptível não apaga a luz da vela que serve de cicerone e sol à sua demência. No imenso firmamento que é tecto desse salão primeiro brilha o reflexo e só depois a ausência, suprema subversão das garras do pensamento cravadas no firme chão. 9-12-2008

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Nada mais belo e difícil que os olhos de alguém que olha assim transformando o mundo em quarto nunca habitado e em cama sempre estranha. Se a cobra nos morde a cauda e a obra nos morde a corda por instantes quero ver como quem já só acorda por excepção e não por regra. Do invisível vestida te arrenego castidade do destino abusadora. Pois moro dentro do corpo onde me aperta a demora. 10-12-2008

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A fome, meu amor, a fome ensina quais os caminhos do corpo mas também pode impedir que vamos ao seu encontro. A fome, meu amor, obriga a ver o tumulto como obra de soldados e bailarinas, eles pesados e frouxos e elas miniaturais. No bricabraque e no esgoto buscarei grandes figuras que devorem as demais - isto é a fome da alma aos saltos cada dia mais mortais estatelou-se no palco e tanto faz que não faça e tanto faz que não faz. A fome, meu amor, rumina os dedos que brincam a as palavras que doem. Procuro a figura enorme que engole sem mastigar e defeca lentamente. Dura e escura essa figura do corpo preso ao presente. 11-12-2008 53


Natividade Manhã é cabra com bode dentro vento de ventre e ventre de vento: o astro baloiça entre nascentes e todo o conhecimento é mútuo. A cabeça que não dorme diz à outra que dormiu que a manhã lhe fugiu como presa amedrontada rumo à feroz madrugada. Eu sei de fonte insegura que as palavras, amor, ferem a forma dos lábios daquela que fala e ferve em sol de pouca saliva. Elas diferem de si elas diferem o som, cavando covas, cavernas, crateras, canais, caminhos onde os lábios de quem escuta cuidam que falam sozinhos. Elas diferem de mim e até o fim as difere como se nasce de infâmia e se é levado ao abismo agarrado pelo pé e largado pela garra. 12-12-2008 54


Certos rios têm cabeleira para além de seu leito e seu caudal. De meandro em meandro, esses rios abrem água às águas de outras fontes e seguem o seu livre curso desgrenhados como mendigos esfarrapados como príncipes. Todavia, bem antes da foz, eles parecem prestes a esvair-se, a entregar-se aos mil braços do delta. E esfacelam-se já não contra a margem, já não pelo ímpeto de comer a terra ou de correr para o mar, mas porque é preciso dividir-se aquém do desejo onde reinar. 13-12-2008

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entre o sujeito e a pessoa o pequeno hífen que encerra uma vontade dita férrea entre o sujeito e a pessoa uma crispação de ordens gritadas, uma calma de orelhas moucas e a hipótese remota porque tão pronta a usar de um deles sobreviver ao seu ímpar, ao seu par - o mais frágil ao mais forte, o mais atado ao mais hábil, o mais falso ao mais fiel entre o sujeito e a pessoa uma alta barricada mas todos os lutadores combatem do mesmo lado lançando pedras e dores ao boneco já blindado que lhes serve de inocente sorrindo como um culpado 13-12-2008

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calcetei com pedra dura a rua onde jĂĄ se espera que mais uma vez eu caia rua sem sol nem saĂ­da onde se trocam olhares que rolam e se atropelam beco onde apenas pernoita o eco de uma derrota mal dormida como uma velha anedota contada em voz muito baixa 14-12-2008

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há uma noite imensa por cima do que em mim ainda pensa ela pende, a noite e eu penso talvez para ser mais perigosamente por baixo da noite que se adensa todas as ruas alheias se abraçam e eu não saberei por onde seguir com a minha aldeia e a minha ideia debaixo do passo debaixo do braço que embaraço este, meu amor, dever confessar que não gerei coisa que a mim não regresse como sombra acrescida de nada e a nada acorrentada 14-12-2008

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Crisálida quando uma casa desaba os ratos saem do ninho e rabeiam no entulho fora de sua coutada. minha casa a céu aberto calafrio de paredes ao arrepio dos fios que ligam a nuca à nuvem cama me seja pequena melhor nela caberei e corpo que não conheço ao meu amor colarei e porque só recomeço no lugar onde falhei procuro uma forma plena como uma luva perdida de sua mão de seu par do jeito de calcular vazio ao invés de vida 15-12-2008

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Numa tarde muito fria alguém falava assim da invenção da poesia: «Os primeiros poetas que eram deuses iletrados inventaram o Inverno sem me prevenir. Então, o meu coração laborioso esculpiu dores de cristal e gelou doces suspiros. Depois, os primeiros poetas tiritantes inventaram a Primavera sem me avisar. Dores e suspiros derreteram e eu quase me afoguei nas minhas obras. Mas o meu coração laborioso verteu toda a água que sobrara em frascos de solene transparência em vasos de sublime opacidade. Por fim, os primeiros poetas com todas as letras inventaram a estiagem à sua imagem e semelhança. E eu tive água para matar a sede e perfume de suor para refrescar as fontes.» 16-12-2008

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Lettera amorosa Hoje é o dia em que te peço que recebas esta desconhecida que vive em mim e vive a minha vida como se fora uma fervura uma pura fervura. Peço-te agasalho e talher e tecto, peço-te um olhar directo sobre isto que te peço. Se por desmando ela se fez notar onde nem sempre existia, se por náusea abafou onde julgava desabafar, foi ainda porque te buscava em mim, à luz da vela que queima os dedos e os olhos e se derrama no quarto primitivo, via láctea, via táctil, acto com vista para acto. 16-12-2008

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Anamorfose Não me peças, meu amado, um amor de bastidor, um fel de sombra e segredo, sentenças, sentidos idos e um mel de corpos celestes. Não me peças, meu amado, o silêncio retalhado e respectivas costuras, cilícios nunca usados pela minha carne impura. Não me peças, meu amado, saúde e cheiro a incenso ou doces subentendidos pois eu tresando ao que penso como fedem os vencidos. 19-12-2008

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Globe-trotter Lentamente a claridade despe o seu manto de polvo cativo em aquário e descola as ventosas do meu longo devaneio. Eu sei que há formas de lucidez que são apenas o preço a pagar pelas inúmeras cabeças que a insónia decapita. Estou sóbria de mim, isto é: ébria de ti 19-12-2008

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Apertar as pernas e cavalgar a náusea como se, como se não fosse possível tirar o cenário a limpo. Agarrar-se ao declive da calçada com banhas e tremer e transbordar da roupa demasiado usada e justa. Aumentar o desafio da passada e diminuir a largura do abismo. Assim pensa que não pensa uma velha saltimbanca e a minha míope estrela estrangulada na anca. 19-12-2008

nos teus braços não é preciso pensar mais baixo nos teus braços não é preciso baixar os meus nos teus braços não é preciso barro, meu amor 19-12-2008 64


Entre ser e um ser entre ser um e não ser o sal grosso da equidistância que nos guia que nos galga como jangada tão leve na curva dura e vazia da vaga. Porém, terra a terra, a trémula excepção à regra firme é a forma mais vital da paciência e só a ela me agarro, meu amor, quando temo não chegar a outro dia. 19-12-2008

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Pedinte em cidade estranha que mendigas outra vida e buscas a companhia do lugar insinuante onde a noite se mistura com a palidez do dia, eu puxarei a carroça das cores e dos cansaços como bicho da velhice feito ao avesso da estrada e ao defeito dos ossos e em floresta fantasma serei fantoche de tronco folha a folha desfolhado fervura fria de seiva a caminho da fogueira 19-12-2008

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Há estrelas tão brilhantes que logo chamam a fala e o vómito. A elas pergunto se este é um escuro de teatro ou um escuro à flor da pele como o pó de um caminho que alguém pisou sozinho. Há estrelas inconstantes que já mordem a poalha do olhar que as persegue. A elas pergunto se esta água corre abstracta ou se dorme em velho odre fabricado com a pele da ternura mais exacta. 20-12-2008 Graças a efeito raro e contrário à perspectiva quanto mais longe me encontro mais me sinto sob mira. Sopra um vento que parece ter sido domesticado, vento de fuzilamento - cada bala matará uma matiz de cinzento. 20-12-2008 67


Há uma hora em que as outras moribundas já conspiram e se entregam todas juntas à infamante tarefa de roubar entoação às minhas poucas perguntas. Eu bebi os segundos do quadrante onde o sol matinal queima as pestanas. E agora bebo a água da bacia onde o mundo já lavou os pés e as mãos. 21-12-2008

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«... quando éramos tão sós que ninguém nos via... » António Pinheiro Guimarães

a certeza de ter sido trocada de ter sido vendada e vendida esquecida numa cesta ou numa cela é veneno nessa flecha que trespassa a carne do pensamento e o pensamento é então a pura indisciplina da razão: ele quer sair à rua gritar de espanto mudo e rebeldia como se caísse da lua no saco roto da fantasia e o pensamento tem recantos encantos que são terrores carnes tenras, carnes rijas, postigos, poços, gavetas, leites mornos, duras tetas ele é marcha vagarosa fiorde flácido e gelado mas dedo de falcoeiro recado em pombo correio e fragrância de ressaca

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de mim para ti caminha derrapagem, despistagem e geada sobre brasas com mais bocas do que asas mais asfixia que aragem é possível sufocá-lo petrificá-lo à nascença fazer com que ganhe calo apedrejando o amor seu motivo e diferença 21-12-2008

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lá fora a força suspirante cheira a masmorra: os olhos traem os olhos e os homens não se parecem com os homens encostada a uma parede vacilante observo o silêncio de alguém que se desnuda e desejo carícias que me dispam desta pele e me deixem em carne viva 21-12-2008

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Idioma sei de uma boca onde as palavras já não vão beber sei de uma palavra tão breve e infinita que não cabe na boca e nela se perde em perpétua reescrita ora redoma de riso cristalino ora rainha sorrindo decapitada, essa palavra circula contudo à boca pequena como um beijo de lua sobre uma face da terra adormecida ela mora no fundo do ouvido e na ponta da língua afiada não diz nem tudo nem nada mas diz sempre desde sempre como flor talvez culpada de não querer ser cortada 22-12-2008

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A resistência dos materiais Certos ninhos feitos de pouco mais do que penas e vento atravessam sem danos o Inverno. Mais robustos do que fortalezas eles resistem não resistindo aos frios e às chuvadas que os fustigam. Neles se deixam restos de plumagens e penugens que resistem não resistindo. Pedaços de céu e bocados de chão continuam a entretecê-los pois a ideia de corpo que lá mora não é mortalha de ideia por muito que ela não pese e por nada que ela valha. 22-12-2008 SUMO No tempo em que eles pendiam como pequenos lustres muito escuros, os pequenos cachos eram parecidos a beijos amuados e redondos de loba dentro do covil da boca. Mandam os entendidos em poder de compra que já não haja fruta da época. Mas eu pousei as mãos na pedra quente do Outono e senti nos dedos gelados os grãos da língua como sementeira e o toque daquilo que se deixa comer. 24-12-2008 74


Luz de eclipse Tenho o travão noutra língua no meu íntimo estrangeira onde dor não faz elipse por andar amordaçada e as palavras se empregam por vezes à revelia do sentido que lhes falha. Tenho a bastardia crua da fase em busca de lua, cratera e não mais face pois o tempo não recua - ceia depois do massacre. A morte não faz ideia de uma ideia que a mate. 24-12-2008

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O sorriso do terceiro braço subterrâneo este mundo onde a água não consagra nem absolve ela corre sem rugas como o longo vestido do baile em que a rainha não dançou ela corre sem destino que não o aprender a ver nas trevas com olhos nas mãos e mãos nos olhos ela corre de uma fonte para outra fonte e goteja em suores tão delicados que o pensamento deixa de ter margens e é já pura carícia aquela que faz e desfaz nós cegos soltando sorrisos de carne no sufoco do corpete no aperto da palavra porque sempre será pobre a mais opulenta fantasia 25-12-2008

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Plasticina Voltar em sonhos à casa sabendo que lá não está e banhar na sua inexistência tão descaradamente poética e real. Nadar no grande charco negro circo de pupilas e girinos onde o sol se afunda a pique como leão em chamas saltando o arco feroz do novo dia. 26-12-2008

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Desalinho proveito de não ser e já não fama a custo de mim mesma me desgraço temendo o sol poente que derrama sua baba canina em meu regaço eu me crispo ao despir-me peça a peça por fantasmas de fantasmas aplaudida cumprimento muito mais do que promessa sangramento sem magia de ferida não entendo o que me coube mas persisto numa mão a cebola, noutra a faca com um olho choro a mão que mexe nisto com o outro choro a mão que me faz falta 26-12-2008

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Charlatanismo meia coroa, cara e meia uma rosa a meia haste malga rasa, praça cheia sentença de sol rasante gume, cabeça no cepo, se o carrasco se encobre o mundo está bem à vista, pobre encostado no pobre o carro à frente dos bois antes depois de depois mão fechada sobre esmola enquanto a cabeça rola a alma esvazia os bolsos onde sobravam uns trocos de um trago engole a moeda que cai na fenda da boca mas toda ela se gaba mas toda ela se baba mas toda ela se troca até de bazófia arrota onde está, ninguém lhe toca 27-12-2008

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Bleu Blanc Gris choro o vinho que não se derramou choro o leite que não escorreu nas pernas choro a árvore tentáculo que um raio queimou viva e os pássaros de chumbo que nela limam as garras choro o pudor que desperta em pé de guerra choro o poder de torcer até quebrar choro a costela da contorcionista cravada na raiz do coração e dou uma volta à pista como quem pede perdão 27-12-2008

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O outro do outro no sonho desta Como numa história de vilãos e de vileza a cada página apagada, a cada passo reacesa, ele queima os papéis que o comprometem na lareira do seu quarto deixando apenas um minúsculo pedaço que o denunciará. E eu que não tenho história apenas a ruindade que me faz insegura ponho as mãos no fogo pelo veneno pelo antídoto pelo filtro ou tão-só para as aquecer. 28-12-2008

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Postura & Impostura O corpo amante desenha primeiro a falésia e o eco que lhe corresponde, estropiando palavras de almanaque, a palavra para, a palavra onde, como se as frases de amor fossem sombra e silhueta de cavaleiro desenfreado. O corpo amante usurpa primeiro letra miúda ao som do oráculo, imitando o rugir da jovem pitonisa, o som do cabelo e o som da brisa, como se as frases de amor fossem também fóssil e feitiço de um modo menor da língua. Seja eu carta e conversa pólen de olhar inquieto pé ante pó dispersa. 29-12-2008

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AGNUS DEI Mirage dans le miroir, tu es allé là-bas mais tu ne regardes pas si j’y suis. 29-12-2008

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Destapar a cabeça O dia nasceu branco sobre branco com chuva miúda caindo no pêlo de um cavalo abstracto. Das mais rasgadas janelas vultos pardos atirando comida à sombra dos cães. Os pés, as mãos e os olhos caminharão sobre brasas. Sentiremos comichão na consciência recordando a tábua solta por onde o corpo passava roçando farpas e ferrugens esfregando as ventas nas nuvens. E meditaremos sobre os pregos e o som do apedrejamento, sobre o pássaro debaixo do lenço sobre a magia de pensar ainda que ele não está lá. 1-1-2009

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Dispara o coração antes da boca palavras magoadas à nascença. Mas amanhece, meu amor: corre que corre a lebre da febre e todo o lugar é celeiro semente intensa mesa escrita em espelho. 1-1-2009

Procuro muitas vezes ao escrever aqueles embriões da narrativa que despontam desafinados a cada despertar - indistinção de hora e obra e lugar que só a partir do limiar do tempo se deixa avistar ou aceitar. Procuro também a musa anestesia, arcaica ou futurista, pouco importa, para que a musa me ajude a arrombar esse vazio onde os outros vêem porta. 1-1-2009 85


Presentes de Passado a Futurar um palácio embrulhado em papel de jornal um livro de cabeceira envolto numa mortalha musical uma sebe de rosas bravas abraçadas por brisas a esbracejar uma seara mineral suspensa numa bruma de âmbar um violino enleado numa farta cabeleira branca um coração enterrado num palimpsesto instável um pedaço de terra virgem encaixotado num sótão um texto arcaico plagiado pela mão de uma criança órfã uma velha fonte a cantar de uma caixa torácica 1-1-2009 Lancei palavras ao fogo para o atear e para que isso acontecesse na minha presença Noutro lugar eu era estado de sítio refrão em fuga sob chuva de cinzas e de brasas Escondida à vista de todos como ardósia na penumbra da taberna, a minha chama não queimava casas ou celeiros pois mecha e fuligem me antevira coisa hirta e sem origem negra no negrume ao invés do lume claro e cru Lancei palavras ao fogo para o atear e para que isso acontecesse na minha ausência 1-1-2009 86


Sonho réptil Sim, agora vejo a espada e a mão que a empunha e a paisagem que se esbate até não ser a partir desse ponto onde me foco. A espada tem um rato espetado na ponta - ora pende, quase solta, ora aponta, quase tonta. Todo o raciocínio se obriga a vaticinar as várias sendas que guiam o forasteiro até o sítio donde se torna visível mas protegido de quem não está atento ao elo entre o pé e o pensamento. De dedução em dedução, a razão escorraçou do céu os pássaros mais pesados para que as suas asas demasiadas não tapassem a luz com que os caminhos se governam. Basta rastejar à face da terra para entender esse episódio. Porque ser réptil é outra maneira de ser ave, trazer na carne o gelo mudo dos cimos. Cravo as garras na lama e escrevo ainda sol fechando os olhos. 2-1-2008

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eloquente, contarás esses segredos que só por mero acaso foram meus estarás sentado. o pássaro mão mais trémulo e ferido do que ontem terá pousado nos teus ombros belo e útil como o esqueleto de uma frase. dirás sem rodeios de orador que a palavra dada não se olha ao dente. dirás o coice das patas traseiras de um bicho que corre para o fim do texto. dirás o aceno que já não chama a vã tormenta da pontuação. e olharás os meus olhos rasos de água fechaduras já míopes e velhas cuja chave confiada à tua guarda sabias desde sempre extraviada 3-1-2009

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caminhavas como uma mulher vestida de nudez - a dela ou talvez não levavas contigo o que era leve - e teu ou talvez não ias pela noite obesa e azeda bússola doida em bolso já furado dizias que avançando poderias espiar a incubação da madrugada deixaras de antemão de estar sujeito à pressão da causa à impressão do efeito 4-1-2009

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o cisne derrete o canto no olhar da mulher nenúfar ovo de ouro em vez de ouvido é um canto sem vírgula um lamento que se prolonga pela mulher dentro e toda ela se torna vício de fundo e de forma esquecimento de ser ventre e toda ela se entorna se enterra até aos joelhos se dobra até ao pescoço o mesmo canto adormece quem deseja despertar num lugar que desconhece excepção à regra do canto em lugar fora do tempo em cisne em lugar da lama o cisne derrama o canto em charco dentro do charco e morre fora de si 5-1-2009

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Um breve voo de corvos espalha sementes de noite rasurando o que era dia. «Esta sim tem serventia, pernas feitas para andar e pés de fazer caminho», garantem rindo à socapa os donos do nosso tempo; e pintam de eternidade um sol que pode travar a luz do acontecimento. Nascerá onde se esconde este sol em sofrimento vela embrulhada no mastro... Somando horas à noite solidões à companhia já o astro se desvia do seu imprudente curso e da curva onde se escreve um voo reincidente. 5-1-2009

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flor inflexível nascida no peito da derrocada sobre esse monte de entulho que tapa a vista que corta a estrada flor inflexível à terra arrancada a ferros possas tu não ser colheita mas tão-só recolhimento possas tu não ser usada como mais uma ferida eu te desejo austera atrozmente colorida ferozmente perfumada e se te descubro murcha travando o passo pressinto outros sentidos da marcha 6-1-2009

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Pilotagem fitar o fim e naufragar no meio vendar os olhos para ver se não ligar à terra para não ser carga mudar de margem e ficar em falta bater à porta e ser alvejado uivar de amor para perder voz apodrecer para aparecer cair de sono e abrir caminho trazer à tona e aprofundar seguir em frente para duvidar cortar caminho para haver atalho trepar paredes e desmoronar 6-1-2009

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Acaso cospes sementes na boca que te devora? Há frutos que endurecem até quase petrificam e só passada a estação caem redondos no chão. Frutos de todos os frutos agarrados a seus galhos buscam na dura inverna que varre falas e folhas a estranha sabedoria das ofensas repetidas ou prazer agravado da pura desprotecção. Rola, fruto empedernido, nas asperezas do chão e leve te seja a terra mãe de toda a podridão. 7-1-2009

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Quebra-cabeças No cimo do meu telhado oiço canções de embalar e um berço a baloiçar ao ritmo do coração. Ó terra, tatuada de estradas chamamento e não morada é talvez o vento que faz a vela e não o pano e não o pensamento. Porém mais vale uma ceifa de máximas do que a sua demasia armazenada. E mais veleja o olhar do que barco em alto mar ou arca em longo dilúvio quando sem querer se pousa e querendo se detém. Em seremos não seremos menos que razões de sobra, menos que um quebra-cabeças de saídas sem entradas e de estradas tantas estradas que à força de se cruzarem parecerão apagadas. 8-1-2009 95


PROVAS DE CONTACTO O meu amor arrancou seus amuletos e sentou-se num muro de pedra seca, dizendo para consigo que o mundo é feito com os pés, que o mundo é feito em cima dos joelhos pelos velhos mais novos pelos novos mais velhos. O meu amor olhou o mundo, distraído e atento ao mesmo tempo e, como que para desfazer um equívoco, ele sorriu-lhe mexendo apenas um minúsculo músculo. Um cão lazarento quis lamber as mãos rosas e nodosas do meu amor que logo de tirou o açaime invisível. Mas em lugar de gratidão, o bicho mostrou-lhe os dentes. E o meu amor não soube responder à letra aos sinais que o mundo envia e ao ultraje ciciado de cada manhã de sol. 12-1-2009

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Desinência de mim, breve vogal na proa do barco boca - escrever-te não poderei e como dizer-te agora se pouco a pouco és tão pouca? 12-1-2009 Era uma vez um lavrador que enchia com todo o grão que colhia o colchão onde dormia toda a sua família. No final da Primavera, começava a escassear o cereal até os últimos grãos serem levados ao moinho para mais uns magros sacos de farinha. Quando a noite por fim se fazia muito menor que o dia, o lavrador, a mulher e os filhos do casal passavam a dormir ao relento, porque as estrelas tornavam o duro chão mais doce de suportar. 12-1-2009 Aquilo que bate à porta uma certa morte e não a morte certa um braço que se dá sempre a torcer um corno, um cotovelo, uma muleta e uma boca que vai comer à mão mas à mão que se estende não. São precisas palavras para construir o tecto do céu, são precisas palavras duras e raras como chaves sem duplicado para ele não cair. 12-1-2009 97


ofereço-te as palavras à prova do silêncio não as outras as do silêncio que as palavras desgastam dizem do olhar que é alvo e mira que o caminho não se desvia desse olhar que o percorre como se olhar e caminhar fossem pura teimosia mas as palavras disparam sobre mim que não contei munições nem treinei em sala de armas porque eu não era feita a toda a prova porque espantalho esventrado por pássaro sem fome eu me estendi ao comprido mais rasa e arrasada do que estrada debaixo de estrada 13-1-2009

O meu amor foi à caça. Não se perdeu como estava escrito. Não regressou como tinha dito. Trazia a tiracolo uma presa morta. 14-1-2009 98


Noé e Noéma A sonora vogal da grande arca vogava no vasto mar das estrelas mortas. Expulsar o pequeno do grande e o grande do pequeno - eis a tarefa que cabia à mulher que não havia. E tudo se passava como se olhos pudessem conter ainda sem contar o mistério da aparição revelado pela aura do que se perde de vista. 14-1-2009 demain ne sera pas un autre jour, ce sera le même même lumière décapante même corps blessé à vif et même corps mis à mort. demain ne sera pas demain, ce sera un jour de moins même amour lointain et sourd écorché par d’autres lèvres et même voix prise de court. 14-1-2009 99


Desenhar a promessa de um sorriso na pedra já desgastada e depois interrompê-lo como se quebra o feitiço do gerúndio atando os pés e as mãos à estaca do presente. Não mais sal não mais sol não mais sono apenas mais um esqueleto tremendo sob esta carne e a morte refastelada no segredo do seu trono. 15-1-2009

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Chanson de la souffrance qui sent le soufre l’absente aura toujours tort sa vie tenant toute entière en un regard vers la mort. pour croire à ce que l’on voit il faut se méfier des yeux quand ils crachent des aveux. regarde-moi, bien-aimé, je ne partagerai pas car j’ai déjà tout donné je voudrais même t’offrir ce qui ne m’appartient pas quitte à devoir l’emprunter. l’absente aura toujours tort loin du cœur et du regard elle est remise à trop tard pour croire à ce que l’on voit il faut se crever les yeux à force de rechercher ce bleu tirant sur le noir ce bleu tirant sur le gris au fond duquel on s’égare 15-1-2009

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Trabalho de túmulo Do escuro porão deste navio atracado no fantasma deste porto às horas mortas do frio e da navalha, veremos escoar-se uma nuvem de colibris - pequeno desacato da cor do coração e não a chusma de ratos que os mais frívolos oráculos por dever evocarão. Pois ao amor, meu amor, não peço o céu da desforra mas tão-só a salvação e aquele canto ardente que empurra o sobrevivente para a confusão dos braços para a festa dos cansaços ao cabo da sua gesta. A fala ao amor se empresta urdindo fios de voz que não soam como nós nem buscam eco ou reflexo. Com esses brancos cabelos da cabeleira dos astros para ti teço uma tela sem segredo ou artimanha. E o que nela a voz desenha - ciclone de aves canoras, saturnianas laranjas, 102


silêncios primaveris falenas, falos e mamas te haverei de entregar para que dentro da tela a ti me possa abraçar. 15-1-2009

O nome da esperança traz consigo parasitas e um nevoeiro de anjos. Risquei a giz cor de sangue uma flor no teu mamilo. Uma pequena chibata brotava do teu umbigo com ela me fustigava. Eram montanhas em marcha o lugar onde te amava. 16-1-2009 103


Cada corpo em si contém um mistério semelhante a todos os outros corpos, rochedos, tigres ou lótus. Cada corpo em si contém uma amnésia do que foi ser a aresta desgastada - mais vil, viril e modesta do que o todo triunfante do que o nada galopante do que a curva alvoroçada. Eu falo à face escondida, falo à cortina de fumo, como quem prega a partida de ser o monstro em menina, de ser nudez na vitrina de uma rua abandonada. 17-1-2009

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He who made the Lamb encore faut-il que l’autre soit un autre c’est-à-dire un autre qui salue et s’aplatit se laisse prendre et surprendre et lit et livre et délie qui rédime et agrandit cet autre qui est en soi antonin artaud a pris ceci au mot Froid et Effroi

17-1-2009

mes mots d’égout tombent à côte de la plaque car ma voix cherche à te dire ce que la voix ne dis pas je m’entends parler d’amour et cela devrait s’étendre jusqu’aux portes de l’enfer où les flammes se mordent la queue où les flammes se mordent les doigts car depuis que l’on prétend qu’il y fait chaud à plein temps on a fabriqué le froid 18-1-2009 105


Fracture et Frayeur sans coupe ni lèvres juste la distance et la science des lièvres qui finissent en civet je parle d’amour à la flamme qui se mord la queue et elle m’en veut 18-1-2009

puxando e empurrando a porta que lança uma sombra intrusa no lugar ao sol da sedução, verás que o cenário é um delírio portátil e o caminhante um pequeno ponto de antemão assinalado no inofensivo jogo das diferenças verás que o gesto de trair é um privilégio de classe e não uma conquista às cegas e à vista 19-1-2009 106


Poème d’amour dans ta langue Ce qui m’a foudroyé lors de notre première rencontre - dans un café nommé Saint Lazare, t’en souviens-tu...? c’est cette pauvreté que tu affichais, logée au tréfonds du bleu de tes yeux tirant sur ce gris qui me grise. Est-il encore ce gris, ce bleu, et cette singulière façon d’offrir le ciel en haillons sans découvrir d’un fil ta nudité de femme-et-flamme sur fond d’espoir de n’être plus que le tranchant d’une lame? 19-1-2009 Poème d’amour dans ta langue Je marche en pleurant dans la rue comme une madeleine devenue chauve. Les passants se retournent sur la calvitie de mes larmes. C’est ton spectacle le plus réussi et il aura été mis en scène à distance. 19-1-2009 107


Poème d’amour dans ta langue J’habite cette image matinale de mon amant devant l’évier de la cuisine se débarbouillant vite et minutieusement, son aura de renard dans le poulailler remplissant d’une lueur fauve la pénombre de la maison somnolente comme un sursaut... Ça fait une semaine que je ne me lave pas. Je ne suis plus que saleté et pourriture et c’est en cela que je dure. 19-1-2009 Meu berro de borboleta em coração de pólen Meu mel antigo nas volutas violetas dos quadris Minha mão de anjo negro escondida por pudor atrás das costas Minha barba roubada à tal boneca que dormiu numa valeta musical Meu berço de falésia Minha falésia falante Meu berço de planura Minha planura vaiada Minha caligrafia de nós cegos Minha desculpa esfarrapada usada como flor na vez da boca Meu amor em desamor a anos luz da sombra 20-1-2009 108


O corpo desaprende funções: a confiança de respirar ou ver, a alegria de chamar o sono a divina mecânica do despertar. Semicerrada a porta, entreaberto o sexo, a velha menina imaginava que por detrás a esperavam castigos leves, quase amáveis. Porém, havia que escolher entre o lapso e o trote do ponteiro, entre o beijo que envenena e o que acorda, entre o conto e o canto a toda hora. A velha menina, ouvindo rajadas de valsa pela noite fora, elegeu o pranto que era a forma menos própria de cantar. E chorou queimando etapas pois era longa essa noite que devia atravessar. 20-1-2009 109


Estação de pé Baruch Espinosa terá para sempre guardado a roupa esburacada pelo gume do punhal que tentou assassiná-lo. Polindo as suas lentes, pensava ainda certamente que os humanos não controlam as palavras mas são senhores da acção do pensamento seu - matéria que bastou e sobejou para motivo de sua excomunhão. Polindo as lentes que haveriam de servir a óculos e microscópios, pensava sob outros céus que cada ser é corpo e é ideia, e que o amor é fome de presença, ofício de conservar o que se é capaz de amar e o que ainda não se pensa. Se a ti me vou chamando, meu amor e inflamando a força centrífuga das palavras é porque as sinto buraco na roupa e as uso recordando golpes de asa. E toda a ofensa se resume à facada que se oculta à carne que o gume não penetra à palavra que não foi pronunciada. 20-1-2009 110


Sístole e diástole A criança também ela conhece o jogo da resposta ao lado, pressentindo um dia, no lugar onde as ondas lhe rebentam quase junto à cara, que o sexo será sempre virtual, e a carne uma memória transitória bem menor do que a dor torrencial que impele para a fuga das ideias. A criança também ela não consegue estar a meias consigo na solidão sem escrúpulo das conversas que ficam, por incúria, a meias. Diz-se então na minha língua que se cresce e aparece, como se fosse necessário abrir o pulso para saber que o sangue corre ou abrir o peito para ouvir bater o coração. A criança também ela quererá ser salpicada pelas águas e ser essa trave que não trava nem suporta a vaga. 21-1-2009 111


belo será o dia nosso meu amor tão longo que a noite o não capture tão noite que a luz não nos ofusque será seda em turvo lago o dia nosso será poro e cratera inesperada será arco retesado e cada flecha um osso nosso será folha calhau também tesoura será o sol da mão e não a esmola será o desfazer da camisola a nudez abraçada ao desnudar a ave despojando suas penas e a pedra do calor a levitar será belo o dia nosso meu amor tão claro como a cor se diz escura tão perto como a tinta do papel 22-1-2009

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Canção do fantasma O fantasma diz para consigo «eles pensam que eu estou vivo por isso os assusto e me afugento quando apenas peço abrigo». E o seu passado caminha muito em frente do presente perseguido no presente. O fantasma deseja como eu não se perder entre escombros e espelhos. E que leiam por cima de seus ombros agora. 22-1-2009 Poème dans ta langue Je ne dors pas car notre amour veille traversant comme un élan la crampe rose des champs, traversé par la lourdeur d’un chant ivre de rosée qui étancherait la soif des déserts intermittents et des âmes déportées. 22-1-2009 113


O prato de lentilhas A criança vê na ruína seu brinquedo favorito e aquela que fabricou com seu cabelo grisalho manto de recolhimento deseja sem brincadeira desfazer a cabeleira e ver-se enfim reduzida à leveza da poeira. Os amantes trocam cartas e diz-se que as devolvem quando do amor duvidam. Porém eu, ladra de fruta, corri enquanto comia a fruta tão tenra e dura que furtei pelo caminho. Era eu mesma essa fruta e a mim mesma roubei o sol da fruta madura insegura em seu galho. E se nada em sumo valho e se nada em polpa sobra, nada posso devolver a mim que não faço obra que de amor não possa ser. 23-1-2009

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Ta cendre, Cassandre... C’est quand avant et comment peut-on s’en faire une pensée qui ne soit celle du présent par tous nos bras enlacée? À force de supporter ce que seuls les mots supportent je me retrouve à la porte chassée comme une malpropre par tout ce que j’ai porté. Certes je n’ai pas choisi entre l’eau, le feu, le vent, et cette terre qui s’ouvre pour n’être plus que le gouffre existait avant comment. Faut-il espérer une place dans les bras qui vous étreignent si les lumières s’éteignent dans cet envers de l’endroit? Peut-on dire: embrasse-moi? 23-1-2009

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Daimonologia Não é por te virares na cama que o mundo deixará de sacudir-te Não é por apertares as pernas que não mijarás pelas pernas abaixo Não é por te afogares nas tuas lágrimas que agonizante haverás de dar à costa Não é porque queimaram os teus livros que terás menos frio onde estiveres 24-1-2009 Impressions de la veille et de l’insomnie Dans le noir mes yeux me disent que je ne serai pas là pour voir. Non, ta main ne m’a pas tendu l’ovale imparfaite d’un miroir. Tu m’as ouvert la porte du palais des glaces et tu m’as crié de m’y perdre. 24-1-2009 Estrofes do soldado Parte o soldado à paisana para guerras na lonjura com uma jura na boca. Põe o carro antes dos bois prometendo a quem o espera: «Volto antes de depois». 116


Mete pernas ao caminho como se fosse o primeiro a percorrê-lo. E por excesso de zelo o arfar do lusco-fusco parece mais curto e brusco. Quando sol morto, sol posto, a sós com seu falo fala a cada lua uma bala. Não é de chumbo o soldado nem derreteu na fogueira por amor da bailarina... Um branco bafo de herói nimba as noites mal dormidas, sarando as suas feridas. Pois o herói é ausente cavalga a sela do tempo e sua insana contagem. Bem empregada a palavra escrita na pele de quem espera enquanto o herói se salva? Dizem que é cemitério o corpo do pensamento que dança na retaguarda... 24-1-2009 117


O destino não existe mas as viagens do homem têm destinos secretos e concretos. E quando as armas acordam ao cair da noite, calando o hábito de beber e beijar gelando suores, sussurros e hálitos, sabemos que é tempo de meditar sobre o sentido de ser interrompido. O homem não tem destino e o corpo inábil leva várias vidas a entender a utilidade da sua incompetência escandalosa. Noutras longitudes ar armas fazem as vezes do destino que não há decapitando o que sobe ao céu e o que rompe da terra. Olhando o fumo elevar-se do mais mísero casebre, do mais pequeno braseiro ou da rósea miragem do próximo acampamento pressentirás, meu amor, de que paixão me sustento, cauda do teu firmamento rastejando rente ao chão. 25-1-2009 118


Le vaisseau vaisselle Devolve-me a matĂŠria desses dias em que o cĂŠu cabia num sĂł charco e o teu olhar nos era mar e barco carregado de sons e especiarias. 25-1-2009

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O MILAGRE CONTADO POR HANNAH A. Falo-te do infinito improvável desfolhando flores de gás no teu colo como se fora o regato onde o acto e o desacato não buscam margem sombria. Cada pétala exala um cheiro tenaz concreto discreto. O saber de amor, meu bem amado, incerto quanto absoluto é esse suspiro aberto que sempre fará tremer a própria origem do mundo. Das margens eu te diria, em tom de quem não confessa, que elas abrem as pernas poderosas e também fecham os olhos, porque o desejo contempla a sua rosa incompleta. Eu te diria contra a voragem - não do tempo mas da imagem mãe e filha de seu curso que não há terra onde o corpo possa enterrar as memórias. Por isso dentro de si as sepulta. e cada palavra minha te soa surda e daninha ao sussurro de uma culpa. 26-1-2009 120


O MILAGRE CONTADO POR HANNAH AR. devo explicar-te, meu amor o motivo por que vivo e por que preencho esses espaços brancos que me são buracos negros Falo-te do infinitamente improvável desfolhando em teu regaço a flor da superstição - cinco pétalas e línguas e cinco dedos da mão. O improvável acontece e é essa ração rara e indigesta a razão corrosiva que me resta contra a funesta evidência que roubou tempos ao tempo que rouba tempo ao lugar. É por buracos, amor, e por não termos recheio que podemos respirar - pelos poros ou crateras ou pelo texto esponjoso, embebido e transbordante de esperanças e de esperas. A lava lenta e veloz como a voz do pensamento corre de nós para nós. Cimo, sopé e vertente, todo o amor é vulcão e o pensar da paixão é a paixão do pensar. 26-1-2009 121


La lapidation de la femme fidèle La différence entre toi et moi - toi en moi et moi en toi c’est que tu cherches volontiers des formes dans les nuages alors que je cherche des nuages dans les formes. Tu crois ou tu sembles croire que jamais je n’ai toisé avec les yeux du désir les traces de la beauté surtout les traces humaines que j’ai croisées en chemin. Tu te trompes légèrement. Tu te trompes lourdement. Car, plus naïve et attentive que tu ne saurais concevoir, j’ai tenté à chaque instant de verser au plus profond du creuset de notre amour les bribes de la beauté - celles qui m’étaient offertes au fil gratuit des journées, à la cadence des pertes quand les nuages éclataient... 26-1-2009 122


Le prix, le coût et la valeur Mon amour est gratuit. On en dira peut-être qu’il n’a pas de prix, car il ne coûte rien - peu importe à qui... D’habitude, le mot «cher» désigne indifféremment ce qu’une personne affectionne et ce qu’on acquiert au prix fort. Alors sans doute dira-t-on de mon amour qu’il ne vaut pas lourd. 27-1-2009 DIDO, AU DU IU DU ? Não se escolhe, meu bem amado, entre chamar as nuvens e desanuviá-las. Não se escolhe entre a brusquidão da noite e a intuição do ínfimo. Entre a voz que se agiganta e o pulso já aberto porque exposto e íntimo. Porque o amor é mapa colado ao chão. Sem escala. 27-1-2009 123


O charco Sonho que sou o sapo e tu o príncipe. Não podes despir-me porque estou dentro de ti. Mas, como a menina do conto podes atirar-me à parede, com a fúria do nojo com a força da tristeza, até me fazeres rebentar. 27-1-2009

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Anamnese Sou livre de perguntar ao meu balde do lixo quase cheio o que ele me diz sobre mim. Sou livre de o derrubar e até de apanhar os detritos espalhados pelo chão. Sou livre de imaginar que no meio das imundícies tesouros por incúria rejeitados. Sou livre de calcular que as coisas que deitei fora são o que sobra de mim, e que tudo o que é resíduo ou reduzido a despojos será menos boçal, menos mortal do que a falta, do que o excesso a que chamamos começo. Sou livre de buscar o meu sustento nos sobejos do que me sustentou, balbuciando como um mendigo um só pedido, numa língua a mim mesma estranha, feita de palavras poucas e apanhadas do chão. Sou livre de ser fígado e grifo. Sou livre entre as unhas aceradas de quem me agarra e me larga como um livro. 28-1-2009 125


A mensagem confunde-se com o mensageiro − um ao outro se carregam e ambos carregam a tormenta que sobre eles se abate inclemente constante à imagem da ternura. Em noites de tinta da China − essa mesma opaca e escura que é luto de estrelas e reverso de luar eles remendam o texto com farrapos de caminho percorrido. E o texto fala do cadáver da menina que bóia à tona dos espelhos. Fala do espelho que engole para devolver imagens e trazê-las de regresso à fúria da superfície − miragens onde a infância miragens porque a velhice reflexos rugas e rumos refegos pregas e covas raízes e flores novas a bordo do que se disse. Mensagem e mensageiro não buscam um paradeiro mas sim a pele esticada do tambor onde o toque singular faz com a dor soe a dor. 28-1-2009 126


O arco curva-se até ser lira e a flecha desfecha os sons de quem só de amor respira. Não despejes o céu, meu bem amado, sobre a coisa que é da terra e do desterro, como esse guarda que aponta as armas e as lanternas sobre a sombra foragida. De que lado a evasão de que lado o evasivo e de que lado a vontade de escapar ao cativeiro sujeitando o peito aberto à mira do atirador? O arco curva-se até ser lira porque nenhuma arma consegue ser primitiva. 28-1-2009

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Deixaste-me à guarda o mundo como se ele fora póstumo. Ora só o texto é póstumo porque todo o texto é póstumo. Na noite idiomática há ordens para abater aquilo que se mostra obscuramente claro. E sabemos o faro dos homens treinados para serem cães e dos cães treinados para serem homens. 29-1-2009

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AUREA MEDIOCRITAS certos dias - muitos e seguidos e compridos − a eternidade andava mais do que nunca apressada. inteiramente dedicada ao trabalho de esquecer ao trabalho de esconder não tinha tempo para nada, a eternidade. onde quer que não me abraces, meu amor, calcarás a máscara da escriba como uma folha caída, e tratarás por tu quem não te ouve. e talvez a tua mão se preste até a roubar o velho ouro da idade para ser oficiante, usurário e traficante, da eternidade apressada. onde quer que não me abraces, meu amor, eu estarei tão extensamente deitada derrubada que terás de me esmagar como o ouro instantâneo de um poente 29-1-2009 129


Declaração de amor A vontade pode ser o contrário do poder porque o homem e a sua sombra coincidem no amor. 30-1-2009

A criança passa entre as gotas de chuva e diz: no rijo caule nasce uma chama e no pavio da vela uma flor. A criança é uma raiz cada dia mais comprida buscando dentro de si a dura terra do desprendimento. Porém, a vida por duas extremidades se abre e arde e se derrete. 30-1-2009 130


Desço uma rua que hoje me olha roída de remorsos por não ser rio de sangue. Desço uma rua uma roída de remorsos por não ser arabesco de becos e incêndio só visível à distância. Desço esta rua esquivando os golpes baixos das fachadas e oferecendo a outra face como se ela tivesse o condão de ser por instantes mão. Desço a rua e sou fumo funâmbulo - mas até onde me elevo de olhos postos no chão? 30-1-2009 Pensar é dizer vem.

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Pensar é dizer vem ao viajante que a noite cai depressa, cavalo desembestado que galopa rente aos muros. Pensar é dizer fica enquanto puderes que a morte vem sem galope nem foice e tudo será então campo onde não se corre e manto que não cobre. 31-1-2009

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Trait d’union A manhã como noite infinitamente deslavada tem ruídos de barco e de esqueleto madeira longamente trabalhada pela rotina de ser mar também por dentro. Essas manhãs de ser em ti começo essa manhãs em que me atravesso e levo como se fora corpo a mim roubado e dado um almoço para o meu amor que ainda dorme - perguntando então e desde então «de que não acordas?» -, essas manhãs de abstinência de tudo quanto não fosse caminhar para ti e ser almoço na corda bamba dos teus braços, essas manhãs não têm mortalha. Porque o primeiro dia sempre último porque ultimamente primeiro e primeiramente ácida a condição de ser caldo de ser rua publicamente tua. E porta tão antiga que não se fecha ou abre apenas se empurra. 1-1-2009 133


Todos nós - homens e mulheres homens em mulheres e mulheres em homens temos barriga. Por isso tantas vezes te pedi, em vão, que falasses com a tua lugar de toda a união que é corte e fractura e infinita reparação. A minha - com quem falo desde o então ser está em convulsão. Como uma terra que levasse uma eternidade a ser habitável. 31-1-2009

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para ouvir bater o coração é preciso encostar o ouvido e mão ao peito onde ele bate e responde como um punho mas mesmamente e outramente a rainha vai nua e o rei vai vestido de rainha traja esse labirinto no qual ela se perdeu como uma estrela sem trela em descalabro de céu então como ouvi-lo o coração o dela o seu? 31-1-2009

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Índice A filosofia do frio.................................................................. 2 Estado Crítico....................................................................... 3 Gag........................................................................................ 4 Sonho acordada..................................................................... 5 Freeze.................................................................................... 6 Como se disto restasse........................................................... 7 Na mina deste silêncio........................................................... 8 Ouço a voz da ânfora enterrada............................................ 9 Jogo do galo.......................................................................... 10 O chão que piso.................................................................... 11 Oolito & Sonho..................................................................... 12 Armadura............................................................................. 13 Para especular ...................................................................... 14 L’amour n’a pas..................................................................... 15 A arte de embalsamar?........................................................ 16 A varredora de pensamentos.............................................. 17 Porte condamnée.................................................................. 18 Entre dilúvio e delírio............................................................ 19 O efeito já fala pela causa..................................................... 19 Ingestão................................................................................. 20 Resta-me o mau génio ........................................................... 20 Vi o abismo............................................................................ 21 Procurei-te no sangramento cinzento das ruas .................... 22 Álgicos afazeres.................................................................... 23 Capitão Gancho.................................................................... 24 Olhando para trás.................................................................. 25 O actor .................................................................................. 25 No centro do claustro ............................................................ 26 Olhar a flor, fosse ela............................................................ 27 é leve a mão que oferece........................................................ 28 136


O meu amor procura.............................................................. 29 Mas a floresta é também........................................................ 30 Depois do incêndio ............................................................... 31 o sol é poente onde não se nota............................................. 32 Dias decrescentes.................................................................. 33 puxei por linhas de fuga......................................................... 34 era eu e eu apenas.................................................................. 35 Chuva de molha-tolos.......................................................... 36 Qu’est-ce que la grâce?........................................................ 38 ballet frouxo.......................................................................... 39 uma filha dilecta................................................................... 40 O frio das tocas..................................................................... 41 falo ao espelho sem reverso................................................... 42 falo-te com a voz escavada pelo silêncio............................... 43 Às vezes, a música morde a nuca........................................... 44 às vezes acho o meu corpo..................................................... 45 tomar-te pela cintura............................................................. 46 debaixo das telhas, das traves das ripas................................ 47 o sol nasceu baixo ................................................................. 48 Flutuando sobre linha de água.............................................. 49 amor....................................................................................... 49 Litote..................................................................................... 50 Jogos de saciedade............................................................... 51 Nada mais belo e difícil......................................................... 52 A fome, meu amor.................................................................. 53 Natividade............................................................................. 54 Certos rios têm cabeleira....................................................... 55 entre o sujeito e a pessoa....................................................... 56 calcetei com pedra dura......................................................... 57 há uma noite imensa.............................................................. 58 Crisálida................................................................................ 59 Numa tarde muito fria ........................................................... 60 137


Lettera amorosa................................................................... 61 Anamorfose........................................................................... 62 Globe-trotter......................................................................... 63 Apertar as pernas e cavalgar a náusea................................. 64 nos teus braços não é preciso................................................ 64 Entre ser e um ser.................................................................. 65 Pedinte em cidade estranha................................................... 66 Há estrelas tão brilhantes...................................................... 67 Graças a efeito raro............................................................... 67 Há uma hora em que as outras.............................................. 68 a certeza de ter sido trocada.................................................. 70 lá fora..................................................................................... 72 Idioma................................................................................... 73 A resistência dos materiais.................................................. 74 SUMO.................................................................................... 74 Luz de eclipse........................................................................ 75 O sorriso do terceiro braço................................................. 76 Plasticina............................................................................... 77 Desalinho............................................................................... 78 Charlatanismo...................................................................... 79 Bleu Blanc Gris.................................................................. 80 O outro do outro no sonho desta ....................................... 81 Postura & Impostura........................................................... 82 AGNUS DEI......................................................................... 83 Destapar a cabeça................................................................ 84 Dispara o coração antes da boca.......................................... 85 Procuro muitas vezes ao escrever.......................................... 85 Presentes de Passado a Futurar.......................................... 86 Lancei palavras ao fogo para o atear.................................... 86 Sonho réptil.......................................................................... 87 eloquente, contarás esses segredos........................................ 88 caminhavas como uma mulher vestida de nudez................... 89 138


o cisne derrete o canto........................................................... 90 Um breve voo de corvos......................................................... 91 flor inflexível........................................................................... 92 Pilotagem.............................................................................. 93 Acaso cospes sementes na boca que te devora?................. 94 Quebra-cabeças.................................................................... 95 PROVAS DE CONTACTO................................................ 96 Desinência de mim................................................................. 97 Era uma vez um lavrador... ................................................... 97 Aquilo que bate à porta.......................................................... 97 ofereço-te as palavras à prova do silêncio............................ 98 O meu amor foi à caça........................................................... 98 Noé e Noéma......................................................................... 99 demain ne sera pas un autre jour.......................................... 99 Desenhar a promessa de um sorriso...................................... 100 Chanson de la souffrance qui sent le soufre...................... 101 Trabalho de túmulo............................................................. 102 O nome da esperança............................................................. 103 Cada corpo em si contém....................................................... 104 He who made the Lamb....................................................... 105 Froid et Effroi....................................................................... 105 Fracture et Frayeur............................................................. 106 puxando e empurrando a porta.............................................. 106 Poème d’amour dans ta langue........................................... 107 Poème d’amour dans ta langue........................................... 107 Poème d’amour dans ta langue........................................... 108 Meu berro de borboleta em coração de pólen....................... 108 O corpo desaprende funções.................................................. 109 Estação de pé........................................................................ 110 Sístole e diástole.................................................................... 111 belo será o dia nosso............................................................. 112 Canção do fantasma............................................................. 113 139


Poème dans ta langue.......................................................... 113 O prato de lentilhas.............................................................. 114 Ta cendre, Cassandre.......................................................... 115 Daimonologia........................................................................ 116 Impressions de la veille et de l’insomnie............................ 116 Estrofes do soldado.............................................................. 116 O destino não existe............................................................... 118 Le vaisseau vaisselle............................................................. 119 O MILAGRE CONTADO POR HANNAH A.................. 120 O MILAGRE CONTADO POR HANNAH AR............... 121 La lapidation de la femme fidèle......................................... 122 Le prix, le coût et la valeur.................................................. 123 DIDO, AU DU IU DU ?....................................................... 123 O charco................................................................................ 124 Anamnese.............................................................................. 125 A mensagem confunde-se com o mensageiro......................... 126 O arco curva-se...................................................................... 127 Deixaste-me à guarda o mundo............................................. 128 AUREA MEDIOCRITAS................................................... 129 Declaração de amor............................................................. 130 A criança passa entre as gotas de chuva............................... 130 Desço uma rua....................................................................... 131 Pensar é dizer vem ao viajante.............................................. 132 Trait d’union........................................................................ 133 Todos nós............................................................................... 134 para ouvir bater o coração ................................................... 135

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