Rear window (hitchcock)

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O MUNDO-ÉCRAN E O OLHO-PROJECTOR Durante a “noite do crime” em que observa as anormais idas e vindas do vizinho debaixo de chuva, Jeffries, o herói transformado em voyeur por impotência de REAR WINDOW, acaba por adormecer e não vê – mas o espectador, ele, assiste à cena – Thornwald sair do apartamento com uma mulher. Este indício de inocência será posteriormente varrido (“nesse caso, não era, ou ainda não era, a sua mulher”) pelo protagonista mal lhe é comunicado pelo seu amigo detective. Esta falsa pista só se destina pois ao espectador, não influi no desenrolar da ficção policial e não abala a convicção de Jeffries – nunca saberemos quando é que essa mulher pudera entrar no apartamento; mas, seja como for, toda a “investigação” de Jeffries se baseia, não em deduções, mas em duvidosas induções: que a mala de mão é a favorita da mulher, que ela a tinha sempre à mão, que a aliança que ela contém é aquela que a mulher usava no dedo (e que o marido foi lá arrumar!), etc. Falsa pista inútil para a manutenção do “suspense” hitchcockiano, nem por isso é gratuita pois coloca o espectador num plano de igualdade com Jeffries – ele viu o que ninguém mais podia ver – e, na medida em que invalida todos os raciocínios do herói, confere à fábula a sua verdadeira dimensão: mais do que um “voyeur”, Jeffries é criador de uma ficção que projecta na realidade limitada descoberta pelo écran da sua janela; esta ficção é suficientemente “convincente” – i. e. o poder do desejo da personagem é suficientemente forte e irradiante – para contagiar logo tanto Lise Fremont como a enfermeira Stella. Este assassínio “adivinhado” é na verdade um assassínio desejado e o “real” diegético prestar-se-á à sua confirmação. Mas a partir daí, o processo deve por sua vez contagiar a nossa percepção dos outros elementos do filme – enquanto o enredo se inspira numa novela de Irish, os acontecimentos secundários emanam de Hitchcock e do seu argumentista. Os vizinhos de Jeffries dividem-se em casais – o assassino e sua mulher acamada (tal como o próprio herói e a simetria de situação favorece o processo projectivo), o casal do cãozinho, o casal com filha do 3º andar e os recém-casados – e artistas – a bailarina, a escultora e o compositor – aos quais podemos acrescentar “Miss Lonely Heart” cuja tentativa de suicídio justificará o telefonema à polícia e, indirectamente, a salvação de Lise, não esquecendo a do próprio Jeffries. Cada vizinho pode ser visto como a projecção, sob forma de cliché, das dúvidas de Jeffries quanto ao casamento e quanto ao papel da actividade criativa da qual se encontra momentaneamente frustrado. Como nas vinhetas medievais em que, em torno do motivo central, eram apresentadas “séries” – os sete pecados mortais, as quatro estações do ano ou os doze meses, etc. – cada vizinho constitui um avatar do casal que reforça a escolha do celibato feita por Jeffries. A bailarina “pin up” mostra-se presa fácil, Miss Lonely Heart engata um rapazola e trá-lo para casa, a “jovem esposa” esgota fisicamente o seu parceiro. O amor parece polarizar-se em torno de um objecto de substituição: à falta de um filho, um cão… Porém, as situações evoluem no decorrer do filme à medida que as reticências do nosso solteirão no que diz respeito a Lise se vão desvanescendo: a bailarina reencontra o seu verdadeiro amor – a priori paradoxal, visto que se trata de um pequenote, caixa de óculos… –, Miss Lonely Heart ela própria, no momento em que atinge o cúmulo do desespero, será salva pela música do compositor com quem se irá juntar no pequeno estúdio deste último, enquanto os recém-casados entrarão na rotina das zangas domésticas. Assim, a observação é projecção e interpretação; e o real mais uma vez se sintoniza com o desejo de Jeffries. Lise, por seu lado, viveu a vertigem de penetrar no desejo fantasmático e mórbido da pessoa que ela ama, de tomar parte activa nesse desejo, indo até oferecer-se como vítima da pulsão assassina projectada sobre a personagem de Thornwald – pulsão essa que logo se vira contra Jeffries. Lise triunfa duplamente, visto que se mostra à altura da imagem ideal que este concebe de si próprio – temeridade e risco – e ganha um prazo alargado para conquistar o fotógrafo aventureiro, fazer deslizar os seus sonhos de “Beyond the Himalaya” para o “Harper’s Bazaar”. Ela fica com Jeffries, simbolicamente privado das pernas, à sua mercê.


Ao escolher estes chavões onde só intervêm seres anónimos, Hitchcock cria um duplo jogo de espelhos e de projecções: embora o espectador não se identifique imediatamente com o protagonista caracterizado pela (in)acção – e pelo dever de não adormecer sob pena de perder o indício que compromete a sua elaboração ficcional – de espectador, será certamente contagiado pelo seu fantasma como acontece com Lise e Stella. E assim será convidado a contemplar, como espectador, uma galeria de avatares possíveis de si próprio enquanto cidadão anónimo. O espectador, efemeramente herói do filme, é devolvido à sua patética ou risível mediocridade habitual. Além de Jeffries, nenhum vizinho se apercebe de nada do que se passa debaixo do seu nariz e só o grito do protagonista, vítima da materialização do fantasma mórbido que o obceca, os atrairá à janela. Pois Hitchcock é simultaneamente freudiano e puritano: é necessário que a actividade sexual do herói seja momentaneamente proibida para que a actividade projectiva onírica possa desabrochar. O prazer cinematográfico é olhar projectivo activo ao contrário da satisfação voyeurista. “Tornámo-nos uma raça de voyeurs” diz Stella no início do filme, mas mais uma vez se trata – a menos que assimilemos o voyeur ao devorador de imagens – de uma falsa pista: cada vez mais somos condicionados para agirmos como espectadores. A impotência de Jeffries ao longo do filme traduz-se pelo facto de ele utilizar a tele-objectiva apenas para olhar e não para tirar fotografias – e os seus flashes para ofuscar e não para iluminar. A figura de Jeffries não deixa pois de lembrar-nos que essa condição de espectador deve ser provisória, que a intervenção no mundo é necessária – aliás, ele enumera um rol de países devastados pela guerra e pela miséria – e que o meio de escapar às imagens e de as dominar consiste, pura e simplesmente, em fabricá-las. Saguenail


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