Regras seculares

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REGRAS SECULARES Com a sua trilogia, Kieslowski coloca um novo problema ao crítico: até agora, o sentido de uma obra confundia-se, mais coisa menos coisa, com a narração nela contida, por muito complexa ou até polifónica que fosse. Ora, eis-nos perante três narrativas distintas e contrariamente ao anterior DECÁLOGO, em que cada mandamento se inscrevia no conjunto das «tábuas da lei», o que fazia com que a totalidade dos dez filmes ilustrasse uma relação constante de transgressão e de sanção face à lei divina, desta vez os princípios da divisa republicana, abusivamente associados às três cores invocadas, revelam-se insuficientes para garantir a homogeneidade do discurso através das três fitas. A crítica tem pois de demonstrar uma ginástica mental e oratória particularmente elástica para cimentar três obras fechadas — o modelo é a esfera lisa — entre as quais o único elo parece ser a fugitiva reaparição de uma personagem dum filme para outro. Contudo, esta coerência para decifrar, à qual as três narrativas — luto ultrapassado e nascimento, regresso à pátria e vingança executada, escuta interveniente e autodenunciação, respectivamente — aparentemente se recusam, será porventura mais facilmente estabelecida se questionarmos o conjunto da obra ou pelo menos a atitude que os filmes anteriores do cineasta evidenciaram. Antes de mais, a heterogeneidade dos presentes filmes é reflexo das facetas que o resto da obra apresentava: AZUL próximo de A DUPLA VIDA DE VERÓNICA; BRANCO do DECÁLOGO — ao nível da forma narrativa; VERMELHO poderia nesse caso constituir uma tentativa de síntese. Por outro lado, é possível descobrir nos três filmes a mesma substância teológica: AZUL trata da alma e da sua ressurreição, BRANCO do homem e da terra como lugar de chegada depois da expulsão do paraíso, VERMELHO da comunicação, do controlo e da previsão, com uma personagem que possui ao mesmo tempo os atributos divinos da omnisciência e a fraqueza humana da impotência. São três processos de divinização do homem — pela criação em AZUL, pela organização, pela ordenação e pela vingança em BRANCO, pela escuta em VERMELHO — que correspondem a três fases da génese — antes, durante e depois — e às três figuras da trindade — o Espírito, o Filho (o homem) e o Pai (Deus). Por último, numa abordagem mais subtil, convém realçar que — a homogeneidade profunda da obra de Kieslowski não começa propriamente com a trilogia, nem nela se confina — se observa uma progressão nas relações entre as narrativas e a lei: não é de todo indiferente que o primeiro elo que liga formalmente AZUL a BRANCO, segundo uma lógica de inversão da perspectiva, se situe no palácio da justiça. AZUL, através da libertação do luto por parte da protagonista graças à (re)composiçõo da obra que estrutura o filme, debruça-se sobre a questão do direito de autor, ou seja a legislação sobre os bens imateriais. BRANCO mostra, pelo contrário, as estratégias de aquisição dos bens materiais: depois do julgamento, a condenação, o recurso e a evasão. VERMELHO, por fim, está centrado na figura do juiz — ficando o julgamento a cargo das forças naturais representadas pela tempestade final. Os três filmes encenam as transgressões da lei humana e colocam um único problema: como assume o homem fazer reinar a justiça quando legisla sobre a vida terrestre à luz duma jurisdição distinta da lei divina? Quais são os deveres, os poderes, de quem julga? Sobre que bens — imateriais, materiais ou estritamente comportamentais — é possível legislar? Kieslowski expõe os mandamentos de uma lei divina que ninguém é suposto ignorar, apesar de ela se escrever por linhas tortas. Só o respeito pela lei divina pode assegurar a imortalidade espiritual, figurada metaforicamente pelo acabamento póstumo da obra (AZUL), pela falsa morte (BRANCO) e pela miraculosa salvação (VERMELHO). S.


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