Remando contra a corrente

Page 1

REMANDO CONTRA A CORRENTE, REMANDO A FAVOR DA CORRENTE De Cassavetes resta agora a memória dos filmes. E a rede de impressões, qual teia cujo fulcro abstracto se assemelha ao ponto de fusão de ideias e imagens de outrem, a um ponto luminoso. Apraz-me julgar que essa fonte de luz esclarece toda a obra, a torna coerente. O «crítico», ao defender-se da confusão das impressões, corre talvez o risco de, esvaziado do como-ver, perder o terreno da opinião. Cassavetes é um cineasta desconcertante, acima de tudo pela extrema liberdade de concepção dos seus filmes, por tributários que eles assumidamente sejam dos modos e dos instrumentos (no sentido lato) da cinematografia americana — a experiência de actor e o traquejo da «máquina» convertem-se naquele à-vontade com que a câmara e as figuras acometem os espaços e neles não se incrustam. Terá visto o mundo como terra de ninguém e os homens como escorraçados — a América corresponderia a um patamar histórico deste exílio. Em suma, Cassavetes, embebido na american way (e delirando também sobre ela), escolheu a porta estreita que separa o comercial, com suas periferias, do marginal, com seus subterrâneos. O último filme de Cassavetes — OS AMANTES — exibido em Portugal, faz sombra a todo o pensamento alegórico da actual produção americana e seus espelhos fiéis ou deformantes. A tradução do título, versão original LOVE STREAMS (no título se cristaliza a antevisão que o espectador constrói das armadilhas que o esperam), não peca pela falsidade mas pela ambiguidade. Trata-se efectivamente dum filme sobre a disponibilidade e a predisposição para o amor, sobre o amor como forma de expressão em busca de objectos e substitutos, sobre a penosa transformação do amador em coisa amada. O amor não é dado como uma corrente de contornos desenhados mas como uma torrente avassaladora onde se debatem os protagonistas, príncipes imperfeitos. A vivência amorosa implica, segundo o autor, uma aprendizagem dessa imperfeição, próxima da loucura. A todo o filme se poderiam aplicar metáforas de naufrágio (no álcool, na palavra, na cama...) mas numa perspectiva de provocação optimista porque os «resistentes» remam a favor da corrente, numa entrega voluntária à vertigem, ao cansaço, às sucessivas mortes. Amor: o que não redime (cf. GLÓRIA). A câmara responde à constelação simbólica com um olhar cúmplice, sublinhando ora identidade ora intimidade entre os corpos acorrentados ao cenário, nesse élan de quebrarem o pacto com o mundo tão pequeno que cabe no ecrã, e se devolverem à variedade da vida, nesses gestos de carícia dos quais a carne se vale e pelos quais se equivale. Assim se passa com notável elegância dos movimentos ao ombro aos complicados movimentos de aparelho, das cenas classicamente encenadas (no bar, no tribunal, no bowling: espaços públicos) a intrusões quase obscenas no campo (na vivenda, no quintal: espaços privados), dando o cineasta provas duma rara capacidade de conjogar as técnicas de mostrar e as de insinuar. As personagens — Adão e Eva —, o actor/realizador e a actriz/esposa, são convincentes na sua necessidade exibicionista de reviverem a génese nos papéis de irmão e irmã, carne da mesma carne. Duplamente expulsos do Paraíso, auto-destinam-se à provação do Dilúvio que deles exige uma solidão de manequins. Cassavetes esvazia o espectador dos preconceitos e das pré-imagens, enchendo-lhe os olhos de tensões. Partindo dos mitos fundadores, os filmes assentam em robustos pés de barro. R. G.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.