Riso ictérico

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RISO ICTÉRICO Através da epígrafe, que explica o título do filme, João César Monteiro coloca o discurso sob o signo do alegórico: Portugal, miniatura de mundo solar e triste, é uma vasta prisão. As grades da mediocridade cravadas no cimento da insuficiência económica. Acompanhamos a degradação de uma personagem medíocre entre outras — o único mérito e defesa do protagonista é justamente não se achar pior tipo do que outros — cujo desejo impotente oscila entre a prostituta (com o coração na terra) e a mulher-polícia (com a cabeça feita pela Europa). JOÃO PERDEU O SOM DO CLARINETE. A degradação de João de Deus (homónimo do poeta da Cartilha e também, na pessoa dos seus versos, do figurante em muitas cartilhas escolares do velho Estado Novo) caracteriza-se pela PERDA. A dos valores estritamente materiais: o dinheiro — cuja busca orienta todo o filme mas do qual João de Deus se desfaz mal consegue pôr-lhe a mão em cima, anulando, pelo des-uso, o valor social que lhe é atribuído; a virilidade — ameaçada logo no início da narração por invisíveis percevejos que atacam as partes genitais, depois sistematicamente posta em causa pelo recurso aos substitutos (o desodorizante), às metáforas (os «ninhos») e, por fim, evidenciada pela violação falhada que a cena das varandas vem verbalizar. E a dos valores espirituais: a fé — da cena inicial na igreja em cuja pia baptismal João de Deus improvisa uma precária lavagem de rosto à pomposa profanação do templo com a cena triunfante da filarmónica da polícia nas ruínas do Carmo, abertas ao céu; o ideal — o «intelectual de esquerda» enverga o disfarce militar (uma farda comprada aos ciganos), terrível farpa no sempre actual fascínio das fardas; a liberdade — o manicómio é caracterizado pela sua telúrica circularidade; o afecto — o nosso herói tem «mais idade do que sentimentos», donde as «Recordações» como única forma de expressão tangível. Uma observação: se bem que o pensamento alegórico, dito primitivo, informe, no nosso entender, os melhores momentos de criação no cinema (e talvez não só) português, é muito raro ele andar aliado ao humor e vermo-nos, enquanto público, confrontados com semelhante deslustrar da lusa imagem: os tiques do nosso imaginário deixam de ser apanágio do(s) sentimento(s) confessáveis para passarem a significar na zona do irracional colectivo. Aparece claramente que a degradação é o caminho da morte: por ordem cronológica, do cão, da mulher, da mãe, da cidade — a sequência do Chiado funciona também como confirmação desse discurso pela realidade —, de Empédocles — João de Deus frisa que não se trata dum fait-divers (policial) mas de um percurso espiritual (celestial) — depois de visualizada a ausência de saída no manicómio, surge um portão que permite ao protagonista fugir... à vida e aparecer, uma derradeira vez, como um morto-vivo vomitado por uma cloaca de Lisboa antiga, antes de se apagar sem que nenhum raio de sol o atinja. Sobrevivência, não tanto do documento vivo do fascismo que somos, mas do seu fantasma que nem a fome resolverá. Outra observação: convém lembrar que o filme se dá como uma ilustração da Morte a Crédito celiniana e nesse sentido a morte é o lugar do discurso — as RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA são «memórias de além-túmulo». Estamos portanto perante um filme desesperado, tanto mais que as portas a arrombar se situam ao nível da consciência: de facto, não se vislumbram percevejos, a violação não foi além da tentativa, a vítima do crime é uma simples boneca e João de Deus não vai parar à prisão mas ao manicómio. A obra constrói-se retalho a retalho, por cenas — correspondentes muitas vezes a planos-sequência — que se articulam um pouco como sketches de uma «Revista» à qual faltassem os intermezzos musicais («substituídos» pelos números da polícia que assegura a difusão da «cultura»). João César Monteiro qualifica a sua fita de «comédia lusitana»: inspira-se nos filmes dos anos 40 para a sua galeria de personagens reunidas no espaço referenciado (casa-rua-leitaria...) de um bairro popular de Lisboa e no humor assumidamente grosseiro da «Revista». Esta redescoberta de pontos de contacto com a cultura popular, que parecia votada ao desprezo pelo cinema português, está de certo na base do sucesso de bilheteira do filme. Sucesso esse, aliás, que é também fruto dum malentendido, na medida em que o espectador não se identifica com as personagens caricaturadas, mas o cineasta carrega com todo o peso dessa contradição, optando por representar uma figura à qual insufla toda a autenticidade de si próprio extraída para a poder encarnar — com efeito, o filme tira o melhor partido dessa «performance» de João César Monteiro que se entrega quase sacrificialmente


(oferecendo-se até às barbas) à objectiva mortífera da câmara. A memória da escola e a memória do cinema (escola e cinema confundidos na memória) tratadas como fios de ininterruptas familiaridades cruzam-se na trama em que o realizador urde uma ficção de estranheza potencialmente ilimitada sem contudo cair no terreno do intransmissível. É neste galho que pousa o melro de Junqueiro, esse tal que, heróico, prefere imolar os filhos a vê-los encarcerados. João César Monteiro eleva-se ao plano do simbólico não pelos caminhos da irrealidade — frequentemente redutora, pois nela o símbolo remete para o cliché —, mas pelos da teatralização do realismo, mediante uma utilização peculiar do plano--sequência que dilata o tempo convencional — por exemplo, na cena em que Manuela de Freitas (notável) afirma contra a evidência dos factos (a detenção de Laurindo) a honestidade dos seus hóspedes — ou, quando este se coordena com um movimento de câmara sempre muito lento, mostrando uma dimensão inédita da cena — a abóbada ausente do Carmo, como num anti-Tarkovski — ou ainda dando-lhe outro sentido — no momento em que vemos o punho descarnado de João de Deus crispar-se, não sabemos se é de dor se é de cólera (porque o falatório num aposento contíguo se sobrepõe ao som do rádio) e finalmente percebemos que se trata da excitação provocada pelo relato de futebol. Ao fazer rir o espectador da imagem de um país que a revolução parece ter deixado intacto (verdade parcial), de um mundo no qual a única ajuda que podemos dispensar ao nosso semelhante é precipitá-lo para a morte — a relação entre João de Deus e Mimi é firmada pela cumplicidade na eliminação do caniche e, qual anjo do manicómio, Lívio indica ao companheiro a saída possível —, João César Monteiro encontrou o tom adequado à sua mensagem desesperada. O humor é brecha e pedra de toque da comunicação antes que o riso se desvaneça, antes, pelo menos, que o riso amareleça quando o espectador constata o desaparecimento da imagem do autor e verifica que ficou do lado de cá do muro. R. G. e S.


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