ROCCO E SEUS FILHOS, A PROPÓSITO DUMA REPOSIÇÃO A oportunidade de ver Rocco e os seus irmãos de Luchino Visconti, um quarto de século após a sua realização, sugere-nos algumas reflexões não só sobre o objecto (para muitos revisitado) como sobre o interesse da reposição de filmes. Tais reflexões são talvez inerentes à própria natureza do filme, ou antes, àquilo que lá parece ter sido investido: um certo triunfo desesperado do domador de imagens-valores (como a fantasia dos escudos-ouro) sobre um universo em plena desagregação. Como fazer viajar essas imagens-amestradas, esses valores-seguros através do tempo. A resposta de Visconti vai, por um lado, no sentido da ousadia de construção (estrutura romanesca de betão), ou pelo menos, de uma certa ousadia icónica (utilização dos planos sequência e movimentos com grua à americana); por outro, no sentido da procura de arquétipos (já consagrados pela tradição bíblica ou pela herança literária, via Dostoievski) para as personagens que veiculam o debate pré-digerido desses valores. O tema do filme — transplante problemático duma família de camponeses da Lucânia para o subúrbio de Milão — é meramente circunstancial. Sobrevive, sem humor, uma pessoalíssima e voluptuosa maneira de filmar a pobreza, a sordidez, com uma pompa despudorada. Sobrevive, com originalidade, uma transposição da vivência homossexual para as relações heterossexuais clássicas — a escolha do objecto de amor confere um carácter degradado à relação amorosa. Sobrevive, extenuadíssimo e certo, um hino ao amor carnal, à força do sangue — Visconti assume e propagandeia (da cena do assassinato, à cena do regresso do mau irmão) a necessidade da violência expiatória que reforça os laços da fratria, visto que o homem se expulsou do paraíso. O impacto do filme reside no facto do ideal familiar conotar aparentemente a positividade das personagens (a bondade de Rocco passa pelo sacrifício para a preservação da família; o único perdão concedível a Simone joga-se no seu regresso de filho pródigo; a esperança que Luca encarna é a derradeira tábua de salvação da família), quando os acontecimentos apresentam, pelo contrário, a ordem familiar como avessa ao amor e a (qualquer) moral; o espectador é obrigado a tomar as suas distâncias em relação ao que move os membros da constelação familiar. A ficção social do filme é literalmente dinamitada pelos seus vigorosos parasitas. Rocco e os seus irmãos a esta altura no ecrã, oferece-nos, em diferido, o enterro do neo-realismo. R.G. e S.