RUÍDO DE FUNDO O som ocupa seguramente um lugar paradoxal na produção e na estética cinematográfica. Por um lado, tem o papel secundarizado do parente pobre, com a verba mais reduzida do orçamento, e é sempre a dimensão técnica que menos se tem em conta na determinação dos condicionamentos da rodagem; estúdios mal insonorizados, cenários naturais históricos muito próximos de estradas com tráfego, etc. — é mais corrente pensar-se em tirar as antenas de televisão de uma aldeia do que preocupar-se com saber se passa uma auto-estrada nas imediações... —, equipamento mal conservado, salas de projecção com aparelhos vetustos ou mal afinados, etc. Por outro, é um elemento indispensável — se hoje vemos realizadores escolherem o preto e branco, ninguém sonharia voltar ao mudo —, a técnica que mais se desenvolveu — a gama de microfones é superior à das objectivas — e aquela cuja actividade exterior ao cinema — discográfica, radiofónica e outras — é imediatamente colocada ao serviço do cinema, aquela cujas capacidades tecnológicas são já superiores às potencialidades auditivas humanas. Do ponto de vista estético, a história do som no cinema é globalmente negativa: cada exemplo de utilização criativa do som constitui um raro contra-exemplo em relação à prática generalizada. Pior ainda, é em parte por causa do som que se assistiu a uma estandardização do modelo narrativo cinematográfico e a uma estagnação da expressividade das imagens ou, pelo menos, a um retrocesso. Com efeito, historicamente, o cinema sonoro surge numa altura em que os realizadores dominam perfeitamente os seus meios e em que as descobertas transformam o cinema em linguagem específica, não codificada, alternativa do verbal e detentora das suas próprias estruturas narrativas: montagem paralela — de Griffith a Eisenstein, passando por Poudovkine —, utilização do grande plano — de Eisenstein a Dreyer, passando por Epstein —, invenção dos movimentos de câmara — de Murnau a Gance, etc. O cinema mudo reivindicava então o estatuto de «arte» e a sua «linguagem» já estava largamente teorizada. Os realizadores do mudo ansiavam aliás pelo advento do cinema sonoro mas concebiam o tratamento do som de uma forma acima de tudo musical. Griffith e Eisenstein viam nele o meio de estruturar a «composição» das suas sequências; Poudovkine, desenvolvendo o conceito de «contraponto», estabelecia uma dialéctica simultaneamente musical e semântica entre imagens e sons. O próprio Dreyer, quando pretende que as personagens de A PAIXÃO DE JOANA D ’ARC pronunciem verdadeiras frases consignadas no momento do processo, não encara a dimensão sonora como um fio narrativo, mas como uma caixa de ressonância onde os rostos filmados se vão inscrever. Qualquer espectador de cinema é capaz de discernir que todas estas concepções ambiciosas abortaram com o aparecimento do cinema sonoro. Com efeito, a eclosão do sonoro não correspondeu ao culminar duma pesquisa estética nem mesmo à integração dum avanço tecnológico, mas antes de tudo a uma estratégia de reorganização da indústria cinematográfica e ao desenlace de uma guerra de mercado. A partir do momento em que a difusão do filme passou a limitar-se ao território geográfico no qual a língua era falada, os estúdios europeus viram o seu império arruinado a curto prazo, porque o cinema americano era o único a poder garantir a priori o reembolso dos investimentos — os casos de filmes europeus que realizaram lucros graças à distribuição no país de origem, i. e. que obtiveram milhões de espectadores, foi sempre excepcional (o que significa que todas as inovações estéticas no cinema europeu só foram possíveis na medida em que se traduziam por uma baixa significativa dos custos). Os estúdios europeus adiaram aliás enquanto puderam a eclosão do cinema sonoro que, para além das despesas de sonorização, os obrigava a repensar a distribuição. Já antes da Segunda Guerra Mundial, a introdução do som no cinema cimentava a hegemonia do cinema americano. Além disso, em 1932-33, a reintrodução da componente verbal, através dos diálogos, conduz à adopção de um modelo narrativo convencional, misto de teatro e de romance popular. Tratou-se pois dum movimento claramente retrógrado, visto que esta tendência — que começara a despontar um pouco antes da Primeira Guerra Mundial — anulava as aquisições estéticas elaboradas entretanto: montagem, ângulos e enquadramentos singulares, etc., toda a dimensão experimental dos filmes do fim do mudo (curiosamente, essas aquisições ressurgirão bem mais tarde como uma marca de
originalidade de certos realizadores: planos-sequência de O. Welles, movimentos de câmara de S. Fuller, ângulos de M. Scorsese, montagem paralela de F. Coppola...). Uma reflexão sobre o som no cinema só pode pois debruçar-se sobre práticas criativas excepcionais em relação à rápida estandardização que os elementos sonoros sofreram. O som é um domínio onde subsistem vastos campos por explorar.
Uma banda sonora compreende tradicionalmente quatro componentes: diálogo, música, ruídos e ambiente. A função estética e narrativa de cada uma — posto que cada uma corresponde a um espectro sonoro distinto que permite a sua diferenciação pelo ouvido apesar da simultaneidade — deveria ser específica, mas a padronização faz convergir as suas funções, estabelecendo uma hierarquia que, conforme o modelo estético, pode levar à eliminação pura e simples de algumas: o modelo teatral dos folhetins televisivos, ao privilegiar o diálogo de maneira absoluta, suprime os ambientes e mesmo, no caso das séries dobradas, os ruídos, criando um universo de tagarelice envolta num limbo de algodão em rama. A música, que deveria ser concebida como uma estrutura global do filme e integrar as outras componentes sem lhes tirar a função específica — é isso que significa a concepção griffithiana de uma banda sonora estritamente musical —, transforma-se, em regra, num acrescento que serve de acompanhamento, de fundo sonoro — substituindo por vezes os ambientes — ou de ilustração — no caso dos filmes históricos; já em 1940, Eisler e Adorno constatavam que um filme que reconstituísse um século XVIII de pacotilha tinha necessariamente que contar com uma música de cravo... O compositor quase nunca participa na rodagem e, por vezes, não conhece sequer as imagens. A música é assim integrada no filme sem nele desempenhar a sua função rítmica essencial — a própria montagem começa a ser destituída desta função na medida em que se submete a imperativos narrativos cuja lógica não obedece a nenhum critério rítmico. O papel da música no cinema tem-se fixado e degradado numa série de estereótipos: da música antecipadora da chegada de um acontecimento ou de uma personagem monstruosa — substituível por estalidos inquietantes, por um sopro cavernoso, etc. — à redundância marcial das músicas que coroam a vitória dos «bons» —, desempenhando então a função de exaltação do hino nacional no fim de um discurso eleitoral, substituível por aplausos — ou pela presença em fundo sonoro dos «hits» da década em questão — e dando ao filme a sua dimensão histórica, função ilustrativa actualizada. Uma lista deste género é fastidiosa e sobretudo surpreendentemente estável, dado que a análise supracitada de Eisler e Adorno já a inventariava ponto por ponto: o estado das coisas nesta área não evoluiu nada em cinquenta anos. Convém todavia mencionar algumas honrosas excepções: a colaboração de Fellini com Nino Rota — cuja música organiza verdadeiramente o ritmo dos filmes, um pouco como a de Prokofiev organizava ALEXANDRE NEVSKI —, a experiência de Resnais com compositores contemporâneos — o cineasta levou-a até
atribuir uma função semântica a uma peça musical abstracta em AMOR ETERNO —, o trabalho de Godard sobre os compositores clássicos — reflexão articulada com a elaboração rítmica e semântica das imagens em função da construção de um andamento de quarteto de Beethoven, decomposto e recomposto como as suas sequências plásticas em elementos rítmicos, melódicos (de antecipação, de progressão ou de reformulação), em suma, adoptando para a montagem de NOME CARMEN uma estrutura mimética do quarteto para cordas.
Enquanto a imagem cinematográfica é essencialmente descontínua — o espectador compensa a descontinuidade temporal entre as imagens (persistência retiniana), espacio-temporal entre os planos (identificação dos elementos de continuidade estáveis dum plano para o outro, codificação dos efeitos narrativos de elipse, etc.) —, o som é, na sua essência, contínuo. Música e ambientes garantem a coerência lógica de uma acção e a coerência espacial de um cenário apesar do «découpage» e da montagem que produzem sentido através de rupturas (cf. o meu artigo «Para uma teoria da montagem», in A Grande Ilusão, nº 8). Nos filmes em que a continuidade do espaço explode, os ambientes tenderiam a sublinhar as rupturas, mas a música substitui-os, de tal forma que sequências inteiras de ATÉ AO FIM DO MUNDO de Wim Wenders e de ASSASSINOS NATOS de Oliver Stone são montadas como «clips» musicais intermináveis. Godard, uma vez mais, foi o primeiro a ter ousado montar a banda música e a banda ambiente como se de imagens se tratasse e a ter rompido a continuidade natural sonora, utilizando o som para reforçar os efeitos de montagem em vez de os atenuar. O cinema desenvolveu basicamente uma estética «realista». Ruídos e ambientes sonoros servem acima de tudo para situar a ficção num universo convencionalmente idêntico ao do espectador, em particular ao nível das suas coordenadas espaciais — a imagem cinematográfica é ontologicamente fotográfica. Secundarizados na hierarquia das componentes, os ruídos e os ambientes mantêm uma presença discreta. Em que filme alguém se atreveria a encenar um diálogo numa discoteca mantendo o som de ambiente em níveis de volumes reais? O aperfeiçoamento tardio das técnicas de gravação do som directo em exteriores levou, por outro lado, à utilização generalizada de chavões no que diz respeito aos ruídos, sejam eles criados artificialmente ou pelo «bruiteur» — galope de cavalo (ó ressonância da erva sob o casco!) ou tempestade — sejam eles arquivados em discos de efeitos sonoros — ambulâncias, gaivotas, sereias de barcos (ó tráfego intenso dos portos a toda a hora!). No fundo, esta utilização dos ruídos, perfeitamente redundante com as imagens, pode muito bem passar sem elas, dado que foi fruto dum trabalho de recolha e padronização por parte dos criadores de folhetins radiofónicos. Os realizadores que trabalham este tipo de componentes são raros — tanto mais que foram obrigados a inverter a hierarquia convencionalmente estabelecida e a reduzir o papel dos diálogos. Tati, e mais recentemente Iosseliani, tratam os ruídos nos seus filmes a ponto de os transformarem em suporte musical no sentido próprio — mas este tratamento, que
inclui a criação de ruídos e se opõe a uma concepção realista do som, confere às obras de ambos a aura de um género cómico muito específico (quando, profundamente, os conteúdos em questão transcendem o cómico; o mesmo tratamento aplicado aos diálogos, como em THEMROC de C. Faraldo, produzia o mesmo efeito). O parti-pris dos engenheiros de som como A. Bonfanti apostados em tratar a palavra humana num plano de igualdade com os ruídos e os ambientes — o que, numa óptica realista, pode ser entendido como um radicalismo naturalista — fere demasiado os hábitos de leitura estandardizados para se poder generalizar; no entanto, a deslocação da tónica do verbal para o sonoro abre novas potencialidades tanto semânticas como estéticas, posto que a passagem dum avião ou o tinir duma colher podem bruscamente assumir as funções de palavras de um diálogo, suplantando-as. Com a introdução da tomada de som síncrono, a natureza sonora dos ambientes modificou-se, passando dum barulho de fundo mais ou menos típico para uma ressonância particular do espaço filmado. A captação simultânea da voz e da sua ressonância, através de dois microfones diferentes emparelhados, experimentada e aperfeiçoada por A. Bonfanti — cf. entrevista com A. Bonfanti neste número — revoluciona a própria concepção de ambiente, ligando-a indissoluvelmente à componente prioritária do diálogo. Com efeito, a palavra constitui o som principal no cinema — é costume opor o cinema sonoro ao cinema «mudo», mas seria útil adoptar uma terminologia mais rigorosa: o cinema é falado, pontualmente musical, e excepcionalmente sonoro. Do ponto de pia estético, a passagem do mudo para o falado representa acima de tudo uma reintrodução da dimensão verbal enquanto veículo do sentido, i. e., um movimento de nítido retrocesso posto que o cinema, que se autonomizara como linguagem, vê-se reduzido a modelos literários ou teatrais. De resto, estes modelos dominantes continuam em vigor. A acção principal no cinema passou a ser palavra e o espectador é confrontado com um universo de tagarelice compulsiva porque a palavra, integrada numa representação «realista» do mundo, não ostenta nem explora a sua função dramática. Trata-se de uma palavra pobre do ponto de vista literário, cujo mérito maior é surgir «em situação», i. e., ser condicionada pela acção dramática. A indústria hollywoodiana não hesitou em recorrer a grandes escritores para os diálogos dos filmes, quando muito raramente recorreu a grandes músicos, ou a grandes pintores para a confecção dos cenários: o valor «cultural» do cinema cristalizou-se na matéria verbal. Um estudo dos diálogos não teria cabimento no âmbito deste artigo — mas tentámos encetá-lo no texto «Filmes de papel» in A Grande Ilusão, nº 10 —; no máximo, podemos constatar que os filmes são tendencialmente fala-baratos, que os cineastas multiplicam as conversas sem relação com a acção a fim de reforçarem o carácter realista do discurso — mas reforçando também o seu carácter eminentemente teatral (escola americana; Quentin Tarentino, Hal Hartley) —; em contrapartida, os realizadores que trabalham a dimensão literária do diálogo são raros (Resnais, Manoel de Oliveira) e mais raros ainda são os que fazem da matéria verbal o centro do questionamento das imagens (Godard, Chris Marker). O diálogo enquanto componente prioritária é todavia indissociável de uma componente sonora, para não dizer musical: a voz e o seu grão. O cinema encena duas imagens dos corpos, uma visual outra sonora, que não podem confundir-se e que se influenciam mutuamente: a sensualidade de Kathleen Turner provém sobretudo da voz e impregna por associação a imagem do seu corpo — a prova cabal disto foi-nos fornecida pelo trabalho vocal para a personagem de Jessica Rabbit —, o peso de Mitchum é também um fenómeno ligado à sua voz, etc. Contudo, os efeitos de tensão entre a imagem sonora e a imagem visual são pouco explorados, como aliás, de uma forma geral, os efeitos de contraponto entre imagens e sons. Para tirar partido destas tensões, Robert Bresson não hesita em «neutralizar» a entoação dos actores, conservando apenas a «cor» das suas vozes — e suprimindo também as outras componentes sonoras, o que permite destacar claramente a função musical e dramática do elemento vocal. Por último, a utilização da voz humana para outras actividades que não a palavra, em particular o canto, está praticamente confinada a um género: a comédia musical. Muito frequentemente, os números cantados correspondem a sequências bastante pobres ao nível da imagem — distinguem-se do resto do filme e funcionam quase como pausas. Quanto aos filmes operáticos, os de Jacques Demy ou os de Manoel de Oliveira, por exemplo, embora pervertam o género — a ópera não contém habitualmente diálogos tão crus — a sua construção musical parece relativamente convencional.
São as concepções que modelam as práticas. A hierarquia, estabelecida desde o início do sonoro, entre as diferentes componentes originou um processo de fabrico dominado durante três décadas pelas técnicas radiofónicas — todos os filmes eram de facto pós-sincronizados. A passagem para o som directo a partir dos anos 60 deveria ter renovado completamente o cinema na medida em que a imagem do mundo que nos proporcionava deixava de limitar-se à parte visível. Ora, o modelo anteriormente elaborado continuou a imperar, sendo o som directo considerado como uma mera modificação estritamente técnica e económica das condições de gravação dos diálogos. Os poucos filmes que integram um engenheiro de som no seu universo ficcional — BLOW OUT de Brian de Palma ou o recente LISBON STORY de Wim Wenders — são a este título (e a outros, posto que este aspecto é apenas uma faceta dum discurso mais vasto) verdadeiras fraudes intelectuais: os microfones desses engenheiros só captam os chavões que os artifícios do som de estúdio haviam elaborado: animais nocturnos, diálogos de pseudo-namorados no primeiro, a... música dos Madredeus no segundo. Como decorre do acima exposto, a dimensão sonora do cinema é um território quase inteiramente por desvendar. Muitos são os cineastas que definem rigorosamente os enquadramentos e os movimentos de aparelho, mas quantos dirigem tendo em conta a composição sonora da cena que vão rodar? Enquanto a hierarquia das componentes se mantiver, não se realizará o ideal duma composição polifónica — ruídos, música e voz reunidos num todo sonoro — que poderia constituir o contributo cinematográfico para a música — A. Bonfanti, mais uma vez ele, ousou em ONCE MORE de Paul Vecchiali tocar a música em play-back e difundi-la através de altifalantes dissimulados no décor para captar a totalidade sonora dos planos-sequência do filme. Felizmente, existem excepções; citámos apenas alguns realizadores, mas o mais incompleto inventário permite logo concluir que aqueles que trabalham a dimensão sonora nos seus filmes são precisamente os que mais contribuíram para a renovação da estética cinematográfica nos seus outros parâmetros — encenação, enquadramento e montagem. O tratamento da banda sonora é porventura o indício mais pertinente para encetar qualquer reflexão crítica sobre o cinema ou para a simples apreciação crítica dum filme singular. Na medida em que grande parte do fulgor da encenação revela antes de tudo os meios técnicos e financeiros de que o realizador dispôs, o som parece constituir um bom critério de distinção. S.