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S. G. FILTRO Michael Cimino é dos raros realizadores da actualidade que consegue desencadear tanto junto do chamado «grande público» (a que os seus filmes se destinam) como da crítica (algo susceptível quando lhes não é reservada urna fatia do filme suposta inacessível ao grande público) uma polémica notória, sobretudo no plano «ideológico». Uma boa parte do grande público tem, pelo menos num aspecto, uma atitude semelhante à de uma parte importante da grande crítica — ambas as entidades acalentam a esperança de se reverem o mais possível no deboche de afectos que o filme lhes fornece. Cimino é o rei dos perversos quando lhes joga à cara o conhecimento deste facto, escolhe por princípio espectacular a desilusão sistemática de um certo número de expectativas e constrói as suas ficções como quem faz terraplanagem no domínio (vasto e muito visitado) dos mitos cinematográficos. Ai é doloroso? Pois é. Todos nós somos, provavelmente, grande público e sucumbimos ao escolar encanto da crítica. Pois é, em O SICILIANO a música é de um rigor insuportável, quer dizer, entre ela e as momices do cangaceiro Lambert há uma consonância significativa. É aliás igualmente significativo que um dos defeitos mais apontados à fita seja precisamente a escolha do actor (tão reveladora contudo). Para o palhaço dos deuses (Giuliano) palhaço e meio (Lambert). Para o fantoche da trindade igreja-mafia-aristocracia (reunidas na pessoa única do poder) convinha aquele inconsistente galã que inventa o seu discurso de sedução de massas na mais total indiferença/negação das paixões e da história daqueles que arrebanha. O SICILIANO parece-me um filme decente sobre a aventura messiânica de um povo dividido entre a fatalidade insular e o sonho americano, sem prejuízo do tal retrato inesperado de um ídolo com pés de barro apostado em encenar a própria lenda da sua vida. Bom actor (Cimino declara ter escolhido Lambert em razão de urna semelhança com uma foto de Salvatore publicada pela revista «Life» na qual este último parecia «um actor») mas encenador medíocre, o herói é apanhado pela trama que não soube urdir. O cineasta nova-iorquino demonstra tudo isto alternando brutalmente sequências que parodiam o imaginário de Giuliano com sequências que parodiam a imagem da problemática Sicília inventada pelo cinema americano e não só. Resta-me acrescentar que perante os filmes de Cimino me surge sempre como uma evidência a necessidade de desintoxicar ou, como uma raiva, a impossibilidade de opor àquelas imagens outras. A visão dos cordelinhos não exorciza portanto os medos de cada cabotino. R. G.


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