Só traição

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SÓ TRAIÇÃO! 1. A questão de plágio — reprodução, imitação, adaptação — revelou ser uma das questões centrais da arte moderna (desde os geniais Contos de Maldoror de Lautréamont que incluem, sem solução de continuidade, páginas inteiras de enciclopédia numa prosa desenfreada, por um lado; desde as variações pictóricas sobre um quadro célebre (Picasso) e a técnica da colagem surrealista, por outro). A arte moderna, que se caracteriza pela integração da crítica da representação à própria representação, insere de maneira visível as suas fontes e os modelos dos quais se demarca. Nesta perspectiva, o plágio é uma das operações criativas em jogo em qualquer obra — de uma maneira ou de outra, o património artístico aparece sempre assinalado seja qual for o objecto. Por conseguinte, a questão dos «direitos» não é artística mas estritamente comercial, ligada à legislação sobre a propriedade no âmbito do desenvolvimento do Estado burguês — na idade clássica, a imitação era tida como critério de qualidade. 2. Desde o início do cinema, a adaptação é o modo mais corrente de escrita de argumento fílmico. A expansão do cinema levou os argumentistas a servirem-se de todo o material ficcional existente para encontrar personagens e histórias — da banda desenhada à poesia, passando pelo teatro, pelo romance, etc. Para além da simples necessidade de alimentar a bulimia narrativa da indústria cinematográfica, muitos autores tentaram — com resultados desiguais — traduzir por imagens certas obras literárias para devolver uma emoção original ligada ao conjunto das palavras no texto, inventando equivalências visuais das propriedades sugestivas do verbo — da exploração das potencialidades expressivas da luz (em UNE PARTIE DE CAMPAGNE de Renoir) à busca duma presença do olhar (BENITO CERENO de Roullet). Ora, mesmo no caso de um franco sucesso — frequentemente, a relação do filme com o texto que o inspirou é apenas nominal: nome das personagens, catálogo das acções, reprodução de diálogos; a emoção perdeu-se —, as qualidades do filme não dependem das do livro adaptado mas da encenação. 3. No entanto, um dos jogos da crítica é justamente procurar as fontes e os modelos sem ter em conta que os textos, digeridos pelo autor, foram refundidos de maneira original. Assim, uma adaptação, que Jorge Silva Melo nunca sonhara em negar, foi «denunciada»: a atitude da crítica contribuiu para um atraso de vários anos da estreia do filme AGOSTO. Contudo, as paisagens do Minho e da Arrábida, o tratamento inédito da luz nocturna em cores vivas, a parcimónia de acção e de palavras, etc., que fazem a beleza do filme não são tirados de Pavese. Em contrapartida, a crítica parece não ter reparado no facto do filme de Joel Coen. HISTÓRIA DE GANGSTERS, ser uma adaptação, embora a fonte não seja mencionada no genérico, do romance Glass Key de D. Hammett — romance esse várias vezes levado ao ecrã. Não se trata, como é óbvio, de levantar um processo de intenções contra os irmãos Coen. A fonte escolhida era aliás particularmente pertinente na medida em que o filme pretende realizar uma síntese definitiva dos elementos que definem um género — o filme negro — nascido com o sucesso da adaptação dum romance de Hammett — MALTESE FALCON. O desfasamento entre o romance e o filme de J. Coen é bem mais interessante do que a adaptação da intriga propriamente dita. 4. Conquanto o título português traduza a vontade de síntese dos irmãos Coen, elimina a problemática introduzida pelo duplo sentido da palavra «crossing» no título original MILLER'S CROSSING: cruzamento e traição — seria inútil discorrer sobre a inépcia da referência à Mafia no slogan do cartaz, mera tentativa de fazer com que o filme beneficiasse da vaga de sucesso das últimas fitas de Scorsese e Coppola. Com efeito, MILLER'S CROSSING, começa com uma verbalização da temática: «estamos a falar de amizade, de carácter, de ética» e o enredo acompanha o percurso da única personagem fiel a estes princípios e que será levadoa , por fidelidade, a trair sucessivamente a amizade (fazendo amor com a namorada do amigo), o carácter (sacrificando todos — culpados, é certo, mas daquilo que os conduzirá à morte — à trama inextricável das suas mentiras, sem deixar de os encarar) e a ética (matando o irmão da amante com as suas próprias mãos). A traição generalizada, dos homens e dos princípios, surge no filme como consequência inelutável do modo da mentira e da desconfiança em jogo a cada palavra — esta utilização sistematicamente enganadora da linguagem constitui a característica mais original de D. Hammett;


no entanto, no romance, a integridade da personagem de Ned Beaumont (Tom Reagan no filme) era salvaguardada: recuperando a ideia de duplicidade da palavra e levando a lógica até às últimas consequências, os irmãos Coen revelam-se ainda mais pessimistas do que Hammett. 5. Profundamente, deparamos com uma projecção nítida do pensamento «judaico» — pois esta lógica da mentira inscreve-se no famoso «por que é que me mentes dizendo-me que vais a Cracóvia para que eu julgue que vais a Lemberg quando, na verdade, é mesmo a Cracóvia que vais?», sucessivamente comentado por Freud e Lacan — sobre um modelo que aos poucos se fixou, projecção essa que resulta numa subtil mas total perversão das leis do modelo — positividade do herói, castigo dos culpados, etc. Já tínhamos, aliás, encontrado este mesmo funcionamento nos filmes anteriores dos irmãos Coen: BLOOD SIMPLE em que as convenções do filme de terror — o enterrado vivo, a presença ameaçadora e invisível, o sangue surgindo como mancha, etc. — estavam integradas num clássico e quasi-naturalista enredo de detective contratado por um marido ciumento; e RAISING ARIZONA, em que os raptores acabam atolados numa relação afectiva insolúvel com uma criança raptada (a situação inspirava-se numa novela de O'Henry que também não era citada no genérico...). Comparado com os filmes anteriores, MILLER'S CROSSING parece simultaneamente mais ambicioso e menos inovador ao nível formal, devido à preocupação de colar à estética do género visado. A imagem sóbria e sofisticada só transcende os limites da sua própria perfeição convencional na cena do sonho — a inclusão do sonho no enredo policial é ainda um contributo de Hammett — do chapéu, talvez o único episódio do livro que o filme não explora exaustivamente. Os filmes anteriores dos irmãos Coen destacavam-se na medida em que a intenção ultrapassava a aparência convencional do género que tentavam perverter; este último decepciona porque a ambição ostentada não aparece alicerçada numa proposta estética à altura da complexidade do discurso. S.


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