SETEMBRO Não sei se contra se apesar da indiferença dos poderes culturais (quem não os conhecer, que os compre...) e com as barulhentas obras do Casino como pano de fundo, lá se realizou o 24° Festival Internacional de Cinema da Figueira da Foz. Há que agradecer à organização do evento os interessantíssimos programas retrospectivos consagrados às sublimes Helma Sanders-Brahms e Maya Deren, bem como a visão útil da obra de Jean-Charles Tacchella. A cineasta alemã e o realizador francês estiveram de resto activamente presentes no certame, tendo ambos demonstrado uma rara disponibilidade e simpatia junto do público e da crítica, sem se privarem contudo de reivindicar com veemência condições aceitáveis de projecção, tratamento e armazenamento das cópias, já que as existentes resultavam claramente precárias quando não perigosas para a materialidade das obras. A anunciada homenagem a Marcel l'Herbier reduziu-se concretamente a uma exposição de fotografias no espaço pouco acolhedor do Forte de Santa Catarina e à exibição, quase à falsa fé, duma cópia milagrosamente integral de LA NUIT FANTASTIQUE (falo de milagre visto que chegou a ser-nos proposto o visionamento de uma bobine de 20') em vez do conjunto dos quatro filmes programados. A secção de «Filmes Gay and Lesbian» foi pobre em número mas ainda assim revelou cineasta Filipe Paulo, emigrante português no Canadá, cuja média-metragem (uma comédia a preto e branco dirigida com bastante rigor), PORCARIA, recebeu o prémio JN; a fita inglesa TRÊS HORAS DE SALTOS ALTOS É O PARAÍSO de Lindy Heymann problematiza com uma simplicidade inteligente a condição peculiar dos travestis a nível emocional, sexual e social, interrogando também a absurda não-aceitação desta forma «inofensiva» de marginalidade. Curtas-metragens foram mais do que as mães para grande desespero do júri, mas dentro do abundante lote podiam contar-se pelos dedos as obras de qualidade. Destacaremos, por alto, o experimentalismo de ONDAS de George Zarkadas, o humor de PICASSO TERIA DADO UM GLORIOSO CRIADO, assinado por Jonathan Schell, ambos do Canadá (que obtiveram ex-aequo o Prémio da Curta-metragem), a riqueza onírica da narrativa de CABEÇA DE RAPARIGA da australiana Marie Craven e principalmente a manifesta urgência de NÃO SEI ONDE, OU COMO, OU QUANDO de Zelimir Gvardiol, vindo da ex-Jugoslávia. Hubert Sauper, jovem cineasta austríaco, apresentou dois trabalhos de escola autoproduzidos, TENHO A AGRADÁVEL TAREFA DE... e ANDO A DORMIR A LUZ DO DIA, não destituídos de talento embora carentes de dramaturgia, em particular o mais ambicioso sobre a personagem de Garcia Lorca (galardoado com o troféu Casa da Figueira da Foz). O grande Prémio Imagens e Documentos foi atribuído ao magnífico CANÇÕES DE SETEMBRO de Larry Weinstein, uma homenagem a Kurt Weil construída como um documentário mas generosamente pontuada com «clips». Uma fita bem nova-iorquina servida por luzes, vozes e performers excepcionais. Na mesma secção, dois outros filmes despertaram a atenção do público e da crítica presente, respectivamente A HERANÇA DAS IMAGENS de Olivier Lammert e Madeleine Dewald (uma biografia bem documentada sobre um artista que colaborou com o nazismo, mas algo falha de seriedade intelectual) e O DIPLOMATA de Antje Starost, distinguido pelo Júri CIDALC, que relata a vida do embaixador Stephane Hessel (resistente e deportado), dando-nos a conhecer os seus pontos de vista sobre a vida, a morte e o futuro da Humanidade. O prémio Revelação (o único que se traduz em vil metal) foi concedido a BRINDE COM OS DEUSES de Latino Pellegrini e Eric Magnum que conquistou o público mais adolescente da Figueira. A RETOMADA de Klaus Telscher, um suposto documentário sobre a mansão do mecenas Charles de Noailles onde foi rodada L'ÂGE D'OR de Buñuel agradou a muitos, embora pouco à autora destas linhas que nele viu apenas preguiça mental e tiques de experimentalismo, regados bem a despropósito pela banda sonora de LE MÉPRIS de Godard (para cinéfilo ver?). Em contrapartida, o 16 mm FERRO de Kanji Nakajiama (cineasta japonês com 24 anos à data de realização do filme) surpreendeu com a sua imagem fora de série e a sua original proposta de
reflexão sobre as marcas «estéticas» de um passado recente, tendo sido galardoado com o Prémio Figueira da Foz para as Primeiras Obras e com uma Placa de Prata. A POMPOSIDADE DO AMOR do americano Richard Schenkman, por uma numerosa minoria considerado o melhor filme do Festival, e VIVOS do alemão Hannes Schõnemann, uma audaciosa incursão no mundo dos loucos através duma longa deambulação numa espécie de centro psiquiátrico concebido como uma aldeia, mereceram também Placas de Prata. O Prémio EUROPA 2000 destinado a uma obra que se revelasse defensora de valores verdadeiramente europeus (?) foi para o filme checo A FORTALEZA de Drahomirá Vihanová, uma adaptação inconsistente de «O Castelo» de Kafka mas dotado de inegáveis qualidades no plano técnico-formal. Last bust not least, o Grande Prémio distinguiu em ex-aequo MULHERES-FLOR (que recebeu também o Prémio Mulheres) de Wang Jin, uma das várias fitas da República Popular da China mostradas no Festival que nesta edição homenageou a cinematografia chinesa, e A QUALIDADE DO PERDÃO do austríaco Andreas Gruber que, tal como um número muito significativo de filmes exibidos no certame (A TESTEMUNHA SILENCIOSA de Harriet Wichin, ou OS JUDEUS DE BERLIM, para citar dois exemplos) se concentra numa temática ligada à 2ª Guerra Mundial, ao Holocausto e suas consequências. De registar ainda os programas monográficos dedicados à Escola de Pittsburgh e à Escola do Porto, bem como uma secção confidencial de vídeo. O cinema português contemporâneo brilhou pela quase ausência. É forçoso sublinhar, no entanto, que as sessões dedicadas ao «cinema português da resistência» (de VERDES ANOS a UMA ABELHA NA CHUVA, passando por O RECADO...) interessaram toda uma geração de jovens cinéfilos que assim tiveram a oportunidade de conhecer alguns marcos importantes da cinematografia nacional. As sessões foram, dum modo geral, bastante concorridas. A Figueira, há que frisá-lo, parece melhor do que já esteve, pior do que já foi, muito aquém do que poderia ser. O desprezo e a sobranceria com que o IPACA e o governo que o pariu praticamente ignoram uma iniciativa deste tipo, que dura há perto dum quarto de século, dizem tudo quanto à qualidade humana dos seus responsáveis. R. G.