à volta do quarteirão
SINTO
MUITO
falo do lugar onde me sento e de uma assentada corro todo o tabuleiro de uma ponte que não foi desenhada para ligar extremos mas para que alguém se atire ao vazio entre margens
faz-te ao piso pensa a mãe vigiando os filhos cedo deitados e olhados até tarde − faz-te ao piso que a manhã é escorregadia ao contrário do que
é sempre útil um cometa saído da algibeira e essa luz nas mãos que até permite perceber que as células se confundem com embriões de cidade é sempre útil pois não sabes a quantas andas nesta auto-estrada à flor da pele e o máximo anda por aí mais coisa menos coisa
imagino que um dia saberei bordar a borda do lençol com cabelos brancos mas os dedos falhar-me-ão então só a lágrimas poderei bordar e a cama vogando no alto mar que é como quem diz
falo de uma assentada e em voz alta percorro o perímetro do bule a bordo de folhas de chá subitamente leve contento-me com o vocábulo excitante deixando para amanhã o que posso fazer hoje e fazendo hoje o que só amanhã poderia
paisagem de pé quebrado com árvores e casas lançadas ao calhas às garras da calmaria e entregues à sua sorte a morte rondando montada em cavalgadura indigna de si e de nós
ainda aí estás? ainda estás aí competindo com a competência silenciosa de quem foi silenciado? ou então ou então cumprindo todo o comprimento do cumprimento estás ainda remoendo ruminando rememorando revezando os que varrem para debaixo do tapete e depois levantam uma ponta como se fora o véu sob o qual de esconde uma verdade indizível mas autorizada ainda? é que tudo quanto te posso dizer ainda é que perante tão claros olhos eu pensava poder ver-me quase de corpo inteiro
o cão é o melhor amigo do homem a cabra é a melhor amiga do homem a quebra é a melhor amiga do homem a cobra é a melhor amiga do homem o colo é o melhor amigo do homem a cola é a melhor amiga do homem a cama é a melhor amiga do homem a lama é o lume não.
aproximadamente a meio do segundo terço de qualquer coisa que aceita o nome de livro a página fica bem situada entre o sonambulismo da escrita e a sonolência do leitor das suas margens se avistam o voo rasante das razões e o adejar das vísceras num mundo de novo homérico disposto a sustentar com sangue as grandes batalhas abstractas deixa-me confessar-te que mudei de tamanho antes de tocar o fundo pois o próprio poço crescia à medida que eu era medida
a boca vem a ser mais abrasiva do que a língua sobretudo se moldura de cabelos e mel oh fadiga de formiga doce amiga que me mudas até me ser só dor e dó soror tão-só
eis a história de um humano que quer a todo o custo fugir de um outro − por isso o acompanha como sombra na descida ao céu agora subterrâneo
o vencedor repousa enfim na barriga do vencido sem causar estragos
o andar à nora o andar à solta o andar de gatas o andar aos gritos o andar em pulgas o andar às aranhas o andar com o rabo entre as pernas o andar com a cabeça em ågua o andar depressa o andar de luto o andar devagar o andar devoluto o andar com vistas o andar com marquise o andar em baixo o andar de cima
para que me seja tirada toda a vontade de tudo quantos corações gigantes quantos corações anões terão de se acrescentar aos maus tratos e aos sorrisos militantes até eu capitular? assim falavam x y e z cumprindo as ordens alfabéticas que nunca deixam de ser o subtexto de qualquer cena a solo
é de parto este trabalho esforços e modos ditando a ponto de me tornar no que não digo maldita
a escrita devolve-nos palavras como o mar nos devolve cadáveres penso nos cheiros porque eles são perseguidores
o sorriso do vapor entranha-se nos poros até se poder conceber um domínio do insensível onde rastejam rainhas e as outras cabeças coroadas de louros e camaleões se abismam no espelho dos olhos como se fosse possível arrancar as imagens pela raiz
posso comer palavras saltar sinais de pontuação picar-me no desalinho dos acentos mas isso não mata a fome de quem me manda calar
ouço falar de cataclismos que riem de si próprios como o imbecil se diverte à brava com as suas próprias piadas e esse riso que é jornal aberto naquela página ainda a mesma faz ou mantém o silêncio sobre quem se ilude e quem se desilude sobre quem toma nas suas mãos coisas tão virtuais ou ainda mais do que o destino
falo sem querer fazê-lo mas deixa-me que te diga jovem artista emproado com trajo de armário e pielas de peru em vésperas de festa: desde que a mão fez rolar a sua irmã para o abismo da grande depressão peça após peça na linha de montagem, desde que os corpos riscaram o sem rumo na história da geração sempre segunda e no mapa que escoa o mundo em stock, há uma dança descolando a máquina deslocando o sol até ele sair da roldana e se espalhar como espelho teu haverá lugar mais perto do que o céu?
a memória vem a nós de ouvidos bem tapados e sorriso de mordaça entre as orelhas vem de olhos arregalados comer o que está presente comer com quem está presente acolhê-la ou escorraçá-la é questão que já não tolhe o passo ou o raciocínio o passado não tem pressa de se fazer convidado – apenas se faz vizinho
observo indolentemente a queda dos sólidos quando mais ninguém parece dar por ela chamam a isto devaneio mas como acontece com outras chamadas, digamos, de atenção, julgo esta queda mais real do que os maus modos é certo que não fui instruída na arte do garantir que do prometer para não cumprir e noutros mundanos saberes porém isso em nada altera a questão de quantas andorinhas em queda livre para fazer primavera e de quantas presas ao fio para a ascensão do Outono
e sim claro que ela ouvia vozes em mim e eu nela – quem jamais houve que as não ouvisse?
mais brutal quando anunciada por sinais que desdenham ser lidos a perda dizem-te que és crescido e quanto mais de mais alto cais e mais depressa perdes a cabeça entre ramos assanhados e mansas nuvens as pernas também entre outras pernas invisíveis mais brutal quando esperada a voz crua da rua torrencial de esperas em catadupa ora por culpa ora por desculpa dizem-te que descendes quando apenas desces e já nem reparas nas esquinas nas escritas resultando da rasura no raio de sol rasgando a renda literata és a prata da casa roubada pela fada do lar que virou bruxa e não respondes pelo estado da arte
diz a toupeira que cega sou eu pois o labirinto não tem acabamento apenas fim vejo com infinita nitidez as trincheiras como livro debaixo dos olhos diz a toupeira que o sol se zangou com o sol e eu caminhei para nascente
SINTO MUITO à volta do quarteirão um livro de Paulo Ansiães Monteiro e Regina Guimarães