SISTEMA SOLAR Numa era de "amnésia do futuro", face à perspectiva de "mudar as imagens do passado" já que "não podemos modificar as do presente", perante a necessidade de as interrogar para compreender a carga de devir que elas nos prometiam — por exemplo, o rasto filmado da condecoração do guerrilheiro Nino Vieira pelo presidente Luís Cabral —, Marker realiza um filme tão generoso quanto exigente, ao qual dá o belo nome do não-filme que se lhe revela subjacente. Ou seja: o objecto Sans Soleil constitui a metamorfose, numa forma ensaística, do projecto de ficção homónimo (a história de um "terceiro-mundista do tempo"), representando pois concretamente a projecção para o presente do estado embrionário das evidências poéticas, visionárias e virtuais, de uma escrita passada (conquanto não-passada, como a narradora se encarrega de sublinhar). Ou seja, ainda: a mudança de uma forma não implica a morte do seu estado primitivo, no pior dos casos traduz-se pelo esquecimento. E é contra o "rasgão do esquecimento" no frágil tecido do tempo que este filme trabalha, oferecendo-se ele próprio como um combate entre imagens e não-imagens. Dar um nome à coisa filmada — de preferência à mais banal, logo a mais interessante... — surge como uma das tarefa vitais do cineasta (ritual de salvação comparável ao ritual de devolução da identidade a uma gata perdida, observado num cemitério japonês). Trabalho de palavra sim, mas de palavra contaminada pela morte e com ela partilhada, por e com essa morte que nem mata nem mortifica, sagração do aqui na espiral dos agora. Este é um filme de busca e encontro com os mui recuados bastiões da transmissão da memória (ilhas e mulheres, mulheres-ilhas, ilhas-mulheres), que parece tomar ter tomado como fio condutor a justíssima intuição duma história comum do verbo e da sobrevivência. Ao lembrar que os países ricos do planeta, exceptuando o Japão, perderam a memória da sobrevivência, Marker anuncia — sem recorrer à lira profética, já que lhe prefere a voz inquieta — o risco iminente da perda da palavra. Isto é, não menos, um filme de decifração. Decifração do ecrã-página (onde se oscreve e se lê... onde se escreve, lendo, e se lê, escrevendo), decifração do texto social em cuja mancha visível proliferam os ecrãs, mas também decifração da partitura da cidade de Tóquio, das frases feitas de segmentos roubados ao sono, dos gestos misteriosos ou mecânicos. Decifração da relação de sedução entre o olho que filma e o planeta de um rosto que sorri. Este é, por entre direitos e avessos, um filme de ocultação. O jogo da heteronímia (Sandor Krasna, o fotógrafo; Yamaneko, o videasta; Chris Marker, o cineasta) e a passagem do discurso indirecto decorrente do dispositivo epistolar — "escrevia-me ele" — à narração na primeira pessoa desaguam numa terceira instância que baralha e reúne todas as pistas: a voz off feminina, ora oriunda de esfera sua, sonhadora e distante — voz-ilha —, ora magnetizada pelo contacto com as imagens — vozbarca. Voz trajecto entre o objecto e o objecto do objecto. E porque de viagem se trata — entre o microcosmos japonês, um porto cabo-verdiano e a terra islandesa onde "o planeta encena o trabalho de Cronos", para não falar dos "desvios" de percurso —, o filme configura-se como a peregrinação de um passageiro a bordo da mais maravilhosa máquina de viajar no tempo até hoje inventada — o cinema — reiterando, sem ingenuidade nem cinismo, a esperança revolucionária de que a imagem-em-movimento poderá realizar o desejo de ver nascer a poesia feita por todos. Tal o piloto kamikaze que o filme evoca — auto-descrito como "máquina dentro da máquina" e embarcado no instrumento de morte que lhe permite reclamar o advento duma pátria ideal — o olhar de Marker, exposto a todas as vibrações e rupturas de equilíbrio e sobretudo à beleza do acidente de percurso a que chamamos vida, convida-nos a uma meditação acerca desse não-ser que o mundo ocidental arrogantemente espezinha. Pois os mais tristes caminhos são as vias de extinção. Em Setembro 2001. Regina Guimarães