Sobre o desejado

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Baseado num romance do século XI, o GENJI MONOGATARI – um clássico considerado a primeira obra romanesca da literatura universal, pelo qual Paulo Rocha sentia profundo fascínio antes da realização deste filme e que continuará a assombrar a sua obra até ao momento presente, inclusive o seu ainda não estreado OLHOS VERMELHOS / SE EU FOSSE LADRÃO – O DESEJADO ou AS MONTANHAS DA LUA é, como todas as ficções cinematográficas do autor, uma obra assimétrica e dissonante, paradoxalmente impregnada de sensualidade e a todos os títulos rugosa em termos de construção da narrativa. Para além da parceria com os seus amigos Jorge Silva Melo (ao nível do argumento) e Luís Miguel Cintra (enquanto protagonista), para além da (importante) participação de João Bénard da Costa (como actor) e de uma equipa japonesa (na imagem e não só) muito do seu agrado, o filme foi rodado em décors que o realizador conhecia como a palma da mão (Sintra) por terem sido locais de predilecção do grande passeante que ele foi. Estes elementos, um pouco caoticamente enumerados – a necessidade de se rodear de artistas com quem mantém relações de familiaridade; a vontade de enquadrar o seu trabalho ficcional numa narrativa da história (cultural) portuguesa em curso; o gosto moldado pela estética nipónica; a prática de pensar cinema passeando – remetem para escolhas e linhas de conduta cuja peso é considerável nos filmes de Paulo Rocha. Não será aqui o lugar de os perspectivar cabalmente… Do ponto de vista da reflexão política, O DESEJADO prolonga uma já mais que esboçada meditação, desiludida e irónica, sobre a república portuguesa, na ILHA DOS AMORES (veja-se, por exemplo, a cena em que Wenceslau de Moraes comenta a letra do hino nacional…) e anuncia o seu filme-manifesto sobre a capital do império, governada à maneira bufa e corrupta de uma república italiana, intitulado A RAIZ DO CORAÇÃO. Trata-se de uma alegoria (tragicómica) acerca do estado das coisas num país onde, virada a página da revolução, o devir se decide num palco de vaudeville, entre patéticas políticas de corredor e submissões às eminências pardas. Tratase também de um jogo de espelhos entre o desnorte das vidas públicas/políticas e a proliferação do drama nas vidas privadas, sendo que o «povo», grande ausente, se adivinha pagando a factura das perdas e danos. Trata-se de retratar um país órfão, entregue à linhagem de figuras salazarentas e aterradoras (embora menos destituídas de sentido de humor do que se imagina), um país obrigado a «adoptar» um futuro que não é seu filho, com um sorriso de «brandos costumes» nos lábios (à imagem do que faz o protagonista no desenlace, relativamente ao bebé «de sangue alheio»). Tratase, enfim, da história de um sedutor malgré lui, cujo charme causa desordens que se constituem como nova ordem, e tudo isto com pesados custos pessoais (o que é típico das personagens masculinas de Rocha, homens divididos entre mulheres). O DESEJADO, não sendo um romance à Moravia, não deixa ainda assim de se alimentar de grandes indigestões políticas: as Brigadas Vermelhas, o Compromisso Histórico, a morte de Aldo Moro, etc. Filme lunar, profundissimamente desesperado porém predisposto a brincar com (quase) tudo, O DESEJADO é um caso, à época raro, de desenvoltura no modo como aborda, correndo os riscos inerentes à pura intuição, o país no presente, e propõe-nos uma interpretação inédita da nossa sina sebastianista: se não podemos valer-nos de um salvador encoberto, há que destapar o rosto de um sedutor a cuja aparente liberalidade porventura sucederão os modos amargos e rudes do ressentimento… Regina Guimarães 2012


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