Com quase o dobro da duração de um documentário televisivo padronizado, o filme de Patricio Guzmán sobre Salvador Allende apresenta, ainda assim, algumas características que o tornam relativamente próximo dos produtos televisivos (de qualidade razoável), a saber: a articulação de abundantes imagens de arquivo com pequenos depoimentos, nunca suficientemente aprofundados para que os entrevistados se tornem verdadeiras personagens. Com efeito, este é um filme inteiramente dedicado à figura de Salvador Allende e, nesse sentido, não nos permite propriamente reconstituir a revolução chilena a par e passo como acontece com o genial A BATALHA DO CHILE, da autoria do mesmo realizador. Patricio Guzmán torna bem claro que este seu gesto e este seu filme decorrem de uma espécie de dever de memória. Não só não existe nenhuma biografia decente do presidente chileno como – e isso é obviamente gravíssimo – o povo chileno parece ter-se resignado perante o infame trabalho sistemático de apagamento dos rastos da história levado a cabo pelos criminosos putschistas, seus aliados e seus descendentes políticos. Se por um lado Patricio Guzmán nos apresenta a figura de Allende – revolucionário, visionário, humanista, genuinamente solidário das classes trabalhadoras e seu leal representante, inventor de uma via de conquista do socialismo até aí nunca experimentada, etc. – como uma espécie de mistério (ou melhor: de milagre), por outro, o cineasta não deixa de sublinhar, nos primeiros minutos do seu filme, que o encontro com Allende (para si absolutamente determinante) foi sinónimo do encontro com a história. Um encontro que o transtornou e o transformou. Regressado ao Chile com o seu diploma de cineasta no bolso e o projecto de «filmar os rostos das pessoas», Guzmán acaba incumbido (e auto-incumbido) de filmar o processo revolucionário no quotidiano, também nos seus aspectos mais plásticos e orgânicos – tarefa que levará a cabo com grande ardor e justeza, legando à humanidade o mais apaixonante, comovente e elucidativo documento sobre o devir de uma revolução (A BATALHA DO CHILE, nunca demasiadas vezes citada). O que vem a ser então isso a que Guzmán chama «o encontro com a história»? Trata-se, sem a menor dúvida, de devolver a Allende a envergadura que alguma esquerda persistentemente lhe tem sonegado, não apenas durante o processo revolucionário em curso no Chile como de então para cá. Não sendo de todo passível de transformação em CROMO – como Mao, Fidel, Ho-Chi-Min ou Che Guevara –, quer devido aos traços prevalentes de humanismo da pessoa em causa, quer, sobretudo, por essa pessoa se ter mantido inabalavelmente serena até à hora de pôr fim à vida, Salvador Allende não corresponde ao figurino romântico do revolucionário e a sua fibra de libertário incomoda mais do que se poderia a priori imaginar. Tirando todo o partido possível dos privilégios que a sua classe de origem lhe proporciona e levando o mais longe possível os ensinamentos éticos e políticos que lhe vêm dum antepassado maçon, de um mestre anarquista e, depois, do conhecimento directo das condições de vida dos trabalhadores chilenos, Allende encabeça um processo unitário de marcha pacífica rumo ao socialismo. A história (ponhamos minúscula ou maiúscula conforme nos aprouver) é aquilo que nos coloca perante uma evidência gritante: a de que Allende, maior do que a vida (e, por isso, avesso à ideia de martírio), capaz de improvisar, frente aos seus carrascos, um testamento político sublimemente tchekhoviano, estava sozinho na opção de colocar a revolução acima de tudo. O filme de Guzmán não se compraz em encontrar bons motivos para explicar o imobilismo das massas, dos partidos e dos indivíduos face à derrocada. Pese embora o facto de para tal muito ter concorrido a escassez (ou a inexistência) das armas para resistir contra o inimigo, não deixa de ser surpreendente constatar a docilidade da massa dos humilhados que, pouco tempo antes, enchiam ruas e praças de palavras de ordem e juramentos de fidelidade à causa comum. O paralelo que podemos estabelecer com Portugal é igualmente confrangedor... A história segundo Guzmán terá pois feito de Allende seu solitário motor e besta de carga. Uma vez aniquilado esse protagonista, eis que o Chile entra nos eixos, ainda que à custa do exílio de inúmeros chilenos e de uma fragmentação da pátria utópica. Eis um belo assunto de discussão, talvez ainda mais proveitoso do que avaliar se o exercício da democracia levado até às últimas consequência desemboca numa sociedade socialista. Contudo, afigura-se-me que uma outra análise proveitosa se encontra bastante mais ao nosso alcance, no contexto de um ciclo como este. Penso concretamente na análise do discurso cínico e politicamente correcto do embaixador dos Estados Unidos. Não é preciso ser muito radical para
perceber a que ponto neutralidade, diplomacia e mentira se conjugam – da mais alta esfera ao submundo da sarjeta, passando por todos os graus de nata e de ralé –, para colaborar no sentido de tornar impossível toda a mudança rumo a uma sociedade menos dilacerada pela desigualdade. A memória é, para defesa do bem-estar dos amnésicos voluntários, sempre curta. Impossível não estabelecer um paralelo entre a cena de inquérito junto dos vizinhos de Allende para averiguar as causas da destruição e da pilhagem do domicílio presidencial e os alguns (poucos) filmes que inquirem os governados por Hitler sobre os motivos que levaram estes últimos a apoderar-se dos bens dos judeus. A história repete-se então...? Porventura não, se acreditarmos, como Guzmán, que ela se polarizou na pessoa excepcional de Allende. E se acreditarmos, como Allende, que outros homens se levantarão movidos (e inspirados) pela razão histórica que lhes assiste.