Servido por uma fotografia fauve, por uma câmara nervosa que aposta tudo na instabilidade e numa espécie de arquejar da visualidade que transforma a esfera do íntimo na ordem do agónico, SEM ELA de Anna de Palma – um filme acerca do qual muito ouvi falar mas que só a propósito da presente sessão tive a ocasião de ver – conta-nos a história de gémeos inseparáveis a ponto de lhes ser visceralmente impossível sobreviver a um tempo de afastamento. Um tempo de afastamento «socialmente desejável», posto que o tabu do incesto é um alicerce inquestionado das comunidades humanas. Ao contrário do que seria de supor num filme que, na verdade, só muito superficialmente fala de Portugal e da França através de uma história de «filhos de emigrantes» – note-se que tanto a lusitana praia quanto o tecido suburbano gaulês, que servem de pano de fundo à acção, parecem dois absolutos não lugares, habitados por personagens tipificadas, que vivem vidas estereotipadas e se comportam em função de padrões conhecidos / reconhecíveis –, esta longa-metragem de Anna de Palma exprime, por todos os poros de uma ficção saturada de sinais, uma alegre inquietação referente ao esfarelamento da identidade o qual, em última instância – embora apenas em última instância –, se traduz pela erupção da esperança: dois corpos fraternais, reunidos num infindável amplexo, giram para fora da órbita do que é autorizado. O problema dos protagonistas Jo e Fanfan não radica numa dilaceração resultante da dupla pertença, mas muito pelo contrário num excesso insuportável de património identitário, com os traços de uma portugalidade de fachada a juntaremse aos que decorrem da necessidade de obedecer ao modus vivendi francês. «Fundir-se na massa» – são as palavras terríveis empregues pelo companheiro neonazi de Fanfan; contudo ele mais não faz do que colocar a loucura da normalidade preto no branco. Muito embora o eterno Verão psicopátrio agarre à pele, todo a mitologia do calor não basta para colar os cacos do espelho em que o herói e a heroína ininterruptamente se miram. São engraçadas as personagens de Anna de Palma, pois apesar de um certo pendor apolíneo das suas figuras, tudo nelas é fundo enfado e violento fastio: curtem música, mas não se danam por ela; embarcam na onda do adolescente radical, mas não a ponto de se magoarem a sério; equacionam a sexualidade como uma higiene; por uns trocos, podem eventualmente aderir a organizações e práticas políticas em aparente contradição com a sua posição no xadrez social e com os mínimos olímpicos de crença que os animam. Etc. Anna de Palma não afirma, como seria politicamente correcto e expectável, que a acumulação de sentimentos de pertença é uma «riqueza» que convém aprender a «gerir». Ela vai mostrando obstáculos à felicidade dos seus protagonistas, entre as quais avulta o facto de que a «mestiçagem» cultural é uma etiqueta colada à pressa por olhares exteriores e não uma qualidade de tipo fusional como a gemelidade emblemática de Jo e Fanfan. Ou talvez eu esteja a ver mal o perfil dos acidentes de terreno que provocam a turbulência de SEM ELA e, glosando Fanfan, nesse caso a música do motor é provavelmente outra... Regina Guimarães