Sombras do românico

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0. SOMBRAS DO ROMÂNICO é um espectáculo-trajecto e uma representação-encontro. Trajecto de um fora – a cidade de Penafiel, o aqui e agora da rua – para um dentro – o museu que abriga as memórias e os artefactos do velho burgo. Encontro entre o Teatro de Ferro e suas equipas artística e técnica com penafidelenses, com a Banda Juvenil de Rio de Moinhos, com o Grupo de Teatro de S. Vicente, com o Grupo de Teatro Carpe Diem de S. Martinho de Recezinhos. Trajecto do exterior para um interior repleto de aberturas. Encontro com passados que ecoam no presente. O Românico é um conjunto de formas evocadoras da época dita da Reconquista – a da formação de Portugal enquanto estado independente. São formas-fortaleza com a beleza algo brutal das coisas com pés bem assentes na terra. Povoadas de mafarricos e de santos, elas traduzem a estranha epopeia de uma invenção de raízes que se agarram a um território e, subterraneamente, o alicerçam. Em SOMBRAS DO ROMÂNICO, nos antípodas da densidade e da robustez, o Teatro de Ferro lida com sombras – de objectos, de sonhos, de heróis, de narrativas… –, confiando o seu difícil governo às pessoas deste território. Porque as pessoas são, na verdade, a inexpugnável fortaleza capaz de carregar, com voluntariosa graça, os vestígios do passado, transformando-os, pelo corpo e pela voz, em hipóteses de futuro. E se de estética de uma «reconquista» se trata, ela consiste certamente, nestes tempos tão próximos do abismo da barbárie, em devolver às pessoas o seu papel histórico, social e artístico no devir das sociedades. 1. A XÁCARA DO PLATÃO dizia um homem antigo em terra de sol nascido que entre vultos nos movemos e só sombras conhecemos como bonecas dançantes na tela da claridade as sombras são governantes de toda a realidade na verdade o pensamento prefere o lugar sombrio cela dentro de convento funda cave, sótão frio… dizia um homem antigo em terra de sol nascido que entre vultos nos movemos e só sombras conhecemos da sombra somos cativos num mundo de assombração cortejo de negativos buscando revelação por ideias assombrados forjamos ferro de acção e logo ao rubro levados pela chama da razão


dizia um homem antigo em terra de sol nascido que entre vultos nos movemos e só sombras conhecemos silhuetas recortadas pelo lume na pantalha temos molduras douradas e coração de fornalha pois na sombra se imagina que algures uma luz existe e essa velha bailarina do seu bailar não desiste dizia um homem antigo em terra de sol nascido que entre vultos nos movemos e só sombras conhecemos 2. MESTRA DE CERIMÓNIA 1 Amigos aqui presentes neste mundo que é de sombras e luz em rebelião, não há lugar ou razão para senhores ou senhoras cheias de orgulho e nove horas. Tudo mexe, tudo chove e muda de posição. O que é do céu cai ao chão. O que está em baixo sobe. O que rasteja já voa. O que paira desce à terra. O mundo faz-se mudado e a sombra não obedece às duras leis do passado. MESTRA DE CERIMÓNIA 2 X 2 Do altar caem os santos. Os ladrões saem do antro. Um deles despindo o manto outro à fonte namorando o terceiro resistindo o último transtornando as regras do velho mundo.


Sejas tu santo ou ladrão nunca esqueças quem não tem quem não pode, quem não sabe, quem é sempre maltratado como um pobre Zé Ninguém perante cujos desejos nenhuma porta se abre… MESTRES DE CERIMÓNIA 3 X 3 Eis que é chegado o momento de formar uma plateia cada cabeça uma ideia e cada peito abrigando a sombra de um sentimento. No ventre donde viemos crescemos na escuridão e uma vida não chega para aprender a viver à luz justa da razão. De sombras nós somos feitos e as luzes ferem a vista. Cada luz mostra uma pista e cada clarão acende inumeráveis futuros. Além do medo e dos muros muitas linhas de horizonte e águas libertas da fonte que dão de beber à gente matando a sede de mundo… 3. A Em frio dia de Outono montado no seu cavalo a Itália regressava um valoroso soldado. Chamava-se ele Martinho trajava capa vermelha. Ao cabo de horas de estrada Martinho já só pensava em chegar ao seu destino quando na berma avistou um mendigo a tiritar que a fome torturava. Ora Martinho não tinha nada a não ser sua capa


que pudesse partilhar. Logo da espada sacou para cortar o tecido e com escasso meio manto prosseguiu o seu caminho. Um pouco mais adiante outro pobre lhe surgiu tremendo de fome e frio. Que mais lhe podia dar a não ser o pouco pano que sobre os ombros trazia? Ao pobre estendeu a capa já reduzida a metade e abalou a galope sem o menor agasalho. O céu cinzento rasgou-se abriu-se como janela deixando passar o sol e à medida que o cavalo pelos campos avançava o duro vento amainava e a tempestade amansava. Desde então todos os anos em pleno Outono há Verão lembrando a todo cristão que através da caridade se conquista a salvação. B Santo António, o lisboeta tem fama de ser doutor mas também casamenteiro milagroso e milagreiro nas esferas do amor. Onde havia peixe fresco ou belas moças por perto o santo era atrevido talvez para repousar do estudo tão cansativo como andança no deserto. Diz-se que andava por fontes na esperança de encontrar belos rostos, francos risos, para deles desfrutar. Ora nos tempos de outrora sem água canalizada as moças iam à fonte a qualquer a hora do dia e lá ficavam palrando rindo de tudo e de nada. O santo surgia então


e para as abespinhar quebrava jarros e bilhas porque os olhos são mais belos quando se deixam chorar e pedem pronto socorro. Então, no meio do choro, António de seus poderes dava mostras assombrosas colando com santo cuspo bilhas desfeitas em cacos e jarros despedaçados. Embevecidas as moças com carinhosas palavras agradeciam ao santo seus milagres inauditos pedindo-lhe ao mesmo tempo maridos bons e bonitos capazes de garantir muita doçura e sustento. C Em Huesca, burgo antigo do reino de Aragão nasceu o moço Vicente em Saragoça criado no final do século III. Nesses tempos os romanos vasto império possuíam e toda a Ibéria estava debaixo de seu domínio. O imperador pagão resolveu impor o culto dos deuses tradicionais. E no panteão romano muitas velhas divindades exigiam sacrifícios dos homens adoradores… Diocleciano proibiu as igrejas e os ritos que eram próprios dos cristãos. Mas Vicente não cedeu e teve como castigo A tortura até à morte. Os seus despojos mortais foram lançados às feras para serem devorados pelas bocas animais. Contudo um corvo piedoso salvou o corpo do santo que foi posto numa barca. Ao fim de mil peripécias o batel e o defunto


vogaram até Lisboa. No lugar da sepultura foi construído um mosteiro. E os corvos de Vicente que lhe tinham devoção para o sepulcro do santo guiavam quem pretendia ao mártir prestar tributo. Lisboa no seu brasão tem dois corvos e uma barca em memória desta história… D Portugal pátria madrasta de quem não tem bem nem haver raramente vê nascer ladrões que ajudam os pobres. Os ricos escapam às leis e às claras furtam em grande. Mas não há juiz que mande ver o céu aos quadradinhos aos trafulhas e aos padrinhos que vivem melhor que os reis? O sol para poucos nasce e só aos eleitos brilha. A lei do poder é filha e do dinheiro afilhada. Democracia implantada disfarce enganoso é. Assim, o Zé do Telhado foi uma honrosa excepção bandoleiro de primeira que foi parar à prisão onde Camilo e Ana Plácido purgavam a sua pena. E o célebre casal partilhava o advogado com o tal Robin dos Bosques chamado Zé do Telhado… Julgado em 59 foi condenado ao degredo e partiu para Malanje onde traficou marfins borracha, cera e afins. Dizem que tem mausoléu na aldeola de Xissa onde terminou seus dias. Depois de muito roubar entre marias da fonte e fontes inconfessáveis cem anos de perdão teve na memória deste povo


e a terra lhe foi leve. Esta história, claro está, só em parte é verdadeira pois que o Zé do Telhado foi o bode expiatório de morgados, regedores, padres e administradores num país amotinado. 4. ÀS ESCURAS E ÀS CARAS cara 1 no seu teatro de sombras o homem sombra não vê as sombras do seu passado nem a sombra do futuro cara 2 o homem sombra vejam só da sua sombra tem medo mesmo quando deita sombra ou quando à sombra se deita passa a sombra de uma dúvida treme e tropeça de assombro a sobra do homem sombra a sombra do homem sobra cara 1 no reino das sombras manda um velho governo sombra que de todas as maneiras obriga a ficar na sombra cara 2 tem má onda, tem má sombra o homem sombra da sombra mas não faz sombra a ninguém nem por sombras tal faria cara 3 uma sombra protectora não ensombra nem assombra mas a sombra ameaçadora tira mil sombras da sombra falta sombra ao homem sombra com a sombra se confunde e na escuridão se funde e os muros atravessam


cara 1 entre o mundo e o museu entre o cá fora e o lá dentro como entre a luz e a sombra há elos que somos nós há nós juntando-se a vós muitas vozes em fusão muitos actores em acção cara 3 poucos passos nos separam dos futuros do passado e dos palcos do presente… os que aqui se deslocaram certamente não darão as horas deste serão por tempo mal empregado


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