NA CARNE Em THE BLACKBIRD, como noutras obras porventura mais conhecidas do autor, Tod Browning faz tábua rasa da questão da verosimilhança, a fim de se consagrar a um dos assuntos que atravessa e domina o seu trabalho cinematográfico, a saber: a lei moral, entendida segundo uma perspectiva próxima de Kant, e, como consequência, cénica e prática, dessa lei, o castigo. A punição intervém nos seus filmes de um modo directo, decorrendo de uma transformação da máscara na própria carne de quem a afivela e padece do castigo contido nessa máscara - amputar os braços em THE UNKNOWN, ficar tolhido pela paralisia em THE BLACKBIRD, experienciar a igualdade entrando na pele do «monstro» em FREAKS. Estamos aparentemente – mas apenas aparentemente – num mundo organizado sob o signo de uma visão maniqueísta. Uma visão que, de certo modo, ilustra a divisão perfeita entre Jeckyll e Hyde, dicotomia exemplar que serve sistematicamente de modelo à estruturação das ficções de Browning. Por outro lado, o cineasta utiliza o seu actor favorito, Lon Chaney (curiosamente filho de pais surdos-mudos), para encarnar um papel marcado não só pela duplicidade como pela duplicação. Se em THE UNKNOWN se sabe desde o início que um actor representa dois papéis, em THE BLACKBIRD o espectador está rapidamente a par de algo que, do ponto de vista intra-diegético, ninguém sabe dentro do filme, nem as personagens próximas com quem o protagonista contracena, nem sequer a sua própria mulher. Esse segredo – que só é de Polichinelo para o público na sala escura... – consiste no facto de que uma mesma personagem se desdobra, graças a meios que são próprios da azáfama de bastidores, numa figura de bom da fita e numa figura de vilão. Ora, como o «bâton à physique» de Jarry (que prova a «identidade dos contrários») se encarregou de demonstrar à saciedade, as vias da moral (e / ou da intervenção divina, se quisermos) são tortuosas. A figura que encarna o bom e a vontade de praticar o bem acaba por fazer o mal e desencadear o processo que culmina com o seu próprio castigo (já em THE UNKNOWN, o pai da personagem desempenhada pela jovem Joan Crawford obriga o vilão a matá-lo), enquanto que o malvado acaba por resgatar a situação gerada. Ora, se atentarmos um pouco nas linhas com que THE BALACKBIRD se cose, rapidamente percebemos que quem trai a lei moral pela qual se rege é o bispo (supostamente bondoso e tido como tal) e não o criminoso (que, não obstante as suas práticas transgressivas das regras sociais, acaba por amar tão sinceramente como a interessante figura do seu rival, o rico que rouba os ricos, com quem faz um pacto na base do fifty / fitfty). Na verdade, em THE BLACKBIRD, ninguém é o que aparenta. Aliás, não será por acaso que o enredo da ficção evolui no sentido de um impasse: o vilão tem de desaparecer ou remir-se, o ladrão rico redime-se devolvendo as jóias roubadas e até o bispo (no fundo, o único verdadeiro «mau») morre no momento em que o querem salvar. Posto que THE BLACKBIRD se declina e desdobra como um apólogo, a moral é salva in extremis. A inverosimilhança, a hipérbole, o exagero, radicam numa característica importante do cinema de Browning, cujos filmes abordam um tema assaz raramente aprofundado: o sofrimento. Inclusive o sofrimento físico (recorde-se, por exemplo, o esquartejamento por cavalos do protagonista em THE UNKNOWN, e observe-se a relevância, em termos de produção de sentido, da crise nervosa decorrente da «imitação», no final do filme de que falamos). A moral que Tod Browning explora é notoriamente crística, escatológica no sentido medieval do termo, e totalmente avessa à moral social – sendo que esta última privilegia a aparência, e a outra valoriza, em contrapartida, a funda mágoa. É certamente por isso – e não somente devido a um interesse pelo mundo do espectáculo, precocemente emergente na sua vida (por razões até biográficas) – que Tod Browning consegue realizar o FREAKS, de longe o seu filme mais famoso e aplaudido, ficção em que nos mostra os «monstros» como únicos verdadeiros possuidores da dignidade. Se o espectador de Browning é auxiliado porque lhe são desvendadas coisas importantes que as personagens não sabem, ele é, simultaneamente, solicitado no sentido de fazer um esforço, intelectual e ético, para completar a informação em falta. A partir da noção da identidade dos contrários, a mais radical experiência que Browning leva a cabo em THE BLACKBIRD é utilizar o cinema dito mudo como se fora, absolutamente, cinema sonoro.
Não somente o espectador tem de ouvir e escutar as cantoras de music-hall como tem de ouvir e escutar o confronto do canto com as vaias do público. A montagem realiza o tratamento harmonicodissonante entre esses dois elementos, mas o espectador é, digamos que, obrigado a realizar a mistura mental dos dois fluxos sonoros. Um trabalho de natureza idêntica é pedido ao espectador quando se trata de ouvir e escutar as duas vozes de Lon Chaney, na cena em que o irmão estrangula o seu duplo. (Singular desafio, se pensarmos que se trata de digerir, pelo entendimento, uma questão que se prende com a fraternidade humana.) Ou seja: do espectador é exigido um trabalho de construção e desconstrução entre aquilo que não se vê e aquilo que está presente. O que significa – e aí reside toda a sofisticação do empreendimento – que o Som funciona exactamente como a Lei Moral em THE BLACKBIRD. É inegável que não se vê, mas não é menos certo que conduz toda a ficção. Aquilo que hoje é consensual – os filmes nunca foram mudos, mas sim não falantes – ganha nesta obra de Tod Browning uma dimensão inédita, pois que o som ausente encarna a lei kantiana. Lei invisível, mas vigente. Saguenail