Trabalho de Paternidade Wim Wenders conta numa entrevista para a televisão francesa que começou por fazer estudos de medicina. Perante os resultados medíocres de Wim o pai cirurgião orienta-o para uma «carreira artística». Wenders parte então para Paris para frequentar aulas de pintura . . .
Wim Wenders tem trabalhado à margem das famílias de cineastas alemães (Fassbinder, Schlondorf, Reinhardt). Marginalidade, exclusão da constelação familiar, busca do modelo paterno, eis as constantes temáticas da filmografia de Wenders. Cinematograficamente, a América impõe-se precocemente como modelo. A partir de SCARLET LETTER o motivo americano torna-se fulcral. Os personagens de Wenders movem-se numa inesgotável procura da imagem do pai por não conseguirem assumir uma potencial paternidade. A viagem — os meios de transporte — são a materialização desta busca — para além de serem suporte do sistema ficcional e plástico — e nada têm a ver, pelo menos a nosso ver, com um inventário das formas de evasão. Assim a problemática central wendersiana trama-se à volta da noção de reprodução masculina e da sua recusa. Nas ficções de Wenders vibra um persistente acorde de amor e ódio pelo facto americano. O balanço é impiedoso: a América abandona os seus filhos. Até PARIS, TEXAS, a mulher (a mãe) está ausente ou revela-se incapaz de proteger a sua descendência como em Scarlet Letter ou Alice nas Cidades. AO CORRER DO TEMPO é um filme-chave para a abordagem da questão da imagem parental e da imagem própria, quanto mais não seja porque, pela primeira vez, Wenders equaciona claramente esta inquietação. A geração dum pai germânico é toda ela marcada pelo passado nazi — o diálogo com ela está pois assombrado pelo fantasma duma história penosa de assumir. A América é ponto de chegada no espaço duma viagem em que o tempo luta contra os passados que fabrica, uma como que «colonizadora do inconsciente». Ergue-se como obstáculo à relação com a mulher, imagem de uma mãe perdida, devolvendo violentamente os companheiros à solidão inicial. Em O AMIGO AMERICANO circula a imagem dum pai mentalmente alterado pelo exercício da autoridade e a morte deste é duas vezes encenada: Dennis Hopper mata simbolicamente o pintor — Nicholas Ray — para poder especular com (sobre) a sua pintura e Ripley liberta-se do ascendente de D. H. (o amigo americano) condenando-o a uma morte carismática. Em NICK’S MOVIE a partida para a América é apresentada como um regresso à terra natal para assistir à morte do pai espiritual e encenar a sua reabilitação. Nicholas Ray partilha a existência com um filho adoptivo (videasta e seu ex-aluno) e uma jovem esposa (que poderia ser sua filha). Uma célula familiar unida no espaço dum loft ou dum automóvel que concentra as suas energias na vivência duma morte comunicável num tempo contado. Em HAMMETT, o detective tenta socorrer o pai que acaba por o trair e ser assassinado. Um véu pudico cai sobre uma feminilidade por definição enigmática. Em O ESTADO DAS COISAS o pai produtor protege-se pela ausência — um zombie refugiado numa roulotte; o filho assume o papel de pai realizador e o encontro com o produtor intervém como causa directa da sua morte patética, documental. Observe-se o desconcerto engendrado pela confusão de papéis na cena em que Roger Corman declara não poder ajudar um cliente-empregado contra um cliente-patrão. A fita cinde-se em dois andamentos distintos do ponto de vista formal e opostos no seu estudado desequilíbrio. Uma primeira e grossa fatia impressionista, dominada pelos cinzentos infinitamente matizados, em que reina um quase sebastianismo de hotel na espera; tudo é cansaço e fixidez neste retrato extenuado do cinema europeu. Na segunda parte a imagem contrastase, pica-se, torna-se angulosa, ritmada e agressiva: o cinema americano já não produz, antes segrega um delírio na corrida para a morte. Esboçada todavia a nascença dum terceiro cinema: OS
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SOBREVIVENTES é exemplo dum cinema dentro do cinema, de cariz espectacular mas que prescinde dos meios tradicionais numa aposta pesada, pictórica. Em PARIS, TEXAS as figuras paternas, até então simbólicas, encarnam personagens mas mantendo a ambivalência de serem simultaneamente pais e filhos — enquanto filho o protagonista não chega a Paris, Texas; enquanto pai não chega a reaver o filho. Entretanto a problemática evoluiu, na medida em que a figura do pai se sobrepõe visualmente à da mãe: a mãe pode doravante substituir o pai. Este juízo final, por muito visionário ou prometedor que possa parecer, decorre porém dum tom muito próximo da confissão. Enquanto em todos os filmes anteriores de Wenders a personagem para se encontrar é obrigada a encontrar o pai simbólico, neste a representação efectiva da problemática paterna extirpa-lhe grande parte do impacto. Assim, o filme assenta numa contradição: nunca a América tinha sido tão intencionalmente retratada como um vasto acampamento num deserto que contamina sentimentos e relações. Contudo, a intriga, ainda que o seu propósito de regeneração seja ambíguo, contém todos os tópicos do optimismo americano. De quantas vidas dispõem então os pioneiros? Só os desordeiros podem repor ordem (e verdade) nos factos da vida, num país em que os valores permanecem inversamente inalteráveis. A forma em PARIS TEXAS atinge verdadeiramente o academismo no sentido da depuração, isto é, ultrapassa o modelo original para passar à proposta de outro modelo. A América — pai mítico/mãe estéril — revela-se no fim de contas despovoada e por explorar. Wim Wenders liberta-se do seu modelo assumindo com reticências a necessidade de se tornar pai cinematográfico. A exacerbada autoria de PARIS, TEXAS confere-lhe uma feérica autoridade. Do romantismo de Wenders alugamos as profundezas narcóticas dum cenário onde flutua a palavra frívola do actor que acompanhamos até ao extremo: o leito de morte ou algum miradoiro. R.G. e S.