Transit

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transit PRIMEIRO ACTO O lounge VIP de um grande aeroporto. Luz filtrada, atmosfera de aquário. Os anúncios de partida e de chegada são longínquos, quase inaudíveis. Um sofá king size, rosa carne, de design arrojado e supostamente hiper ergonómico. Separados pelo espaço de duas almofadas estão dois homens sentados. Um deles, JET LAG, tem entre 55 e 65 anos, o outro, CHECK IN, terá uns 30 e poucos. O primeiro enverga um fato quase clássico, mas há na sua indumentária - a écharpe, o relógio de bolso, os sapatos... - que traduz uma postura de dandy. O outro, de origem social visivelmente muito mais modesta, usa roupas desportivas, talvez demasiado flashy, talvez mesmo um pouco kitsch. CHECK IN agita-se no encosto, dando mostras de impaciência. JET LAG lança-lhe um olhar compassivo. CHECK IN agarra nesse olhar como se precisasse de autorização para meter conversa. CHECK IN - Nunca pensei que pudesse esperar tanto por um avião. (Pausa. JET LAG faz-se caro...) Nem uma nuvem no céu. Nem ponta de vento. Nem greve... O que é que estará a acontecer? (Pausa. JETLAG mostra-se muito vagamente interessado. Peço desculpa pelo desabafo... JET LAG - Desabafe, jovem amigo, desabafe. Quem não se sente não é filho de boa gente. CHECK IN - Mas o pior é que nem informações concretas consegui obter. Mandam-me para aqui e dizem-me que a seu tempo serei devidamente informado. Informado não: encaminhado. JET LAG - É intolerável. Francamente intolerável. CHECK IN - Por este andar, hoje já não chego ao meu destino... JET LAG suspirando - Uma pessoa paga couro e cabelo para ter a certeza de que chega ao seu destino. Só que os vendedores de destinos já não são o que eram dantes, meu jovem amigo. Isto é uma bandalheira. É o grande leilão dos lugarzinhos no céu, está ver... E pode sempre haver uma asa mais alta que se alevanta. É bem menos certo apanhar um avião a horas numa capital europeia do que um comboio suburbano no terceiro mundo. CHECK IN - O senhor desculpe... Estou tão irritado que até me passou o efeito da pastilha que tomei(apontando) para dormir lá em cima. Não estava à espera de tanta espera, caramba... JET LAG - Pois... (Desfazendo o nó da écharpe.) Vê-se que o jovem amigo não está habituado a estas andanças. Eu não me posso gabar disso. Quem dera. Nunca me dei ao trabalho de calcular quanto tempo já enterrei nestes tempos mortos entre dois voos. Enfim, uma eternidade... (Suspirando.) Já me habituei aos atrasos. E devo confessar que acho repousante. É repousante estar num sítio onde não há nada para fazer a não ser estar. Rodeado de gente que não conheço. Gente fechada num parêntese. CHECK IN - O senhor... Perdão é só por curiosidade... O senhor é homem de negócios? JET LAG - Siiim... Mais ou menos. Mas de negócios meus, está a ver. Uma fortuna pessoal e, digamos, dispersa. Dá-me uma trabalheira. O dinheiro é cão. Fareja, vadia de mão em mão, mas vem comer à mão do dono...


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