Transit

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transit PRIMEIRO ACTO O lounge VIP de um grande aeroporto. Luz filtrada, atmosfera de aquário. Os anúncios de partida e de chegada são longínquos, quase inaudíveis. Um sofá king size, rosa carne, de design arrojado e supostamente hiper ergonómico. Separados pelo espaço de duas almofadas estão dois homens sentados. Um deles, JET LAG, tem entre 55 e 65 anos, o outro, CHECK IN, terá uns 30 e poucos. O primeiro enverga um fato quase clássico, mas há na sua indumentária - a écharpe, o relógio de bolso, os sapatos... - que traduz uma postura de dandy. O outro, de origem social visivelmente muito mais modesta, usa roupas desportivas, talvez demasiado flashy, talvez mesmo um pouco kitsch. CHECK IN agita-se no encosto, dando mostras de impaciência. JET LAG lança-lhe um olhar compassivo. CHECK IN agarra nesse olhar como se precisasse de autorização para meter conversa. CHECK IN - Nunca pensei que pudesse esperar tanto por um avião. (Pausa. JET LAG faz-se caro...) Nem uma nuvem no céu. Nem ponta de vento. Nem greve... O que é que estará a acontecer? (Pausa. JETLAG mostra-se muito vagamente interessado. Peço desculpa pelo desabafo... JET LAG - Desabafe, jovem amigo, desabafe. Quem não se sente não é filho de boa gente. CHECK IN - Mas o pior é que nem informações concretas consegui obter. Mandam-me para aqui e dizem-me que a seu tempo serei devidamente informado. Informado não: encaminhado. JET LAG - É intolerável. Francamente intolerável. CHECK IN - Por este andar, hoje já não chego ao meu destino... JET LAG suspirando - Uma pessoa paga couro e cabelo para ter a certeza de que chega ao seu destino. Só que os vendedores de destinos já não são o que eram dantes, meu jovem amigo. Isto é uma bandalheira. É o grande leilão dos lugarzinhos no céu, está ver... E pode sempre haver uma asa mais alta que se alevanta. É bem menos certo apanhar um avião a horas numa capital europeia do que um comboio suburbano no terceiro mundo. CHECK IN - O senhor desculpe... Estou tão irritado que até me passou o efeito da pastilha que tomei(apontando) para dormir lá em cima. Não estava à espera de tanta espera, caramba... JET LAG - Pois... (Desfazendo o nó da écharpe.) Vê-se que o jovem amigo não está habituado a estas andanças. Eu não me posso gabar disso. Quem dera. Nunca me dei ao trabalho de calcular quanto tempo já enterrei nestes tempos mortos entre dois voos. Enfim, uma eternidade... (Suspirando.) Já me habituei aos atrasos. E devo confessar que acho repousante. É repousante estar num sítio onde não há nada para fazer a não ser estar. Rodeado de gente que não conheço. Gente fechada num parêntese. CHECK IN - O senhor... Perdão é só por curiosidade... O senhor é homem de negócios? JET LAG - Siiim... Mais ou menos. Mas de negócios meus, está a ver. Uma fortuna pessoal e, digamos, dispersa. Dá-me uma trabalheira. O dinheiro é cão. Fareja, vadia de mão em mão, mas vem comer à mão do dono...


CHECK IN (sorrindo) - A mim foge-me das mãos. O dinheiro, quero dizer. E é verdade que não costumo viajar. É mesmo a primeira vez que apanho um avião. Não estou assim muito à vontade... JET LAG (sem disfarçar súbito interesse) - Que maravilha... Poder fazer uma coisa banal pela primeira vez...! (Tom paternalista e jocoso.) Jovem amigo, descontraia. Relaxe. A coisa é bem mais segura lá em cima do que cá em baixo. Estatisticamente. E agora, com esta obsessão do terrorismo, ainda ficou mais seguro. Até quase perdeu a graça, está a ver. CHECK IN (torcendo as mãos) - Eu prefiro. Prefiro ir e voltar a salvo. Sem surpresas, nem aventuras. JET LAG - E qual é o destino do nosso jovem amigo, se me permite a indiscrição? CHECK IN (tentando esconder o nervosismo) - O meu destino... Bem, só lendo na palma da minha mão. O senhor é vidente? JET LAG - Quase. Deixe-me adivinhar... (Coçando a testa e fixando as mãos do interlocutor.) Mãos calejadas. Trabalha com as mãos, é certo. Mas muito bem tratadas... E nodosas. Construção civil. Mas já debaixo de tecto, aposto. (Fechando os olhos.) Na casa dos trinta. Roupa de férias. Talvez imigrante. Vai... Viaja sozinho. Será um solteirão inveterado? Hesito entre... Entre férias no Algarve num apartamento comprado em time-sharing e excursão à terra dos seus pais. Já falecidos. CHECK IN - O meu pai está vivo. Suponho que está vivo. Há vinte e cinco anos que não lhe ponho os olhos em cima. JET LAG - Eu não dizia... Está vivo mas, para si, é como estivesse morto, está a ver. CHECK IN - Nunca pensei nisso dessa maneira. A verdade é que não sou capaz de o culpar. A minha mãe, paz à sua alma, era doida e dava com toda a gente em doida. Ele foi-se embora para não lhe enfiar um tiro nos cornos. Fez o que tinha a fazer. JET LAG - Que maravilha. Um filho abandonado que, sem cultivar a memória do pai, também não tenta vender uma má imagem dele. O meu jovem amigo interessa-me. Diga-me uma coisa: o seu ofício - ou o seu emprego - é satisfatório, estável, bem remunerado? CHECK IN - Não me queixo. Há quem esteja bem pior. Mas... JET LAG - Mas... CHECK IN - Mas não trabalho na construção civil. Sou empregado de balcão. Numa loja de ferragens. Os calos... É que eu cultivo uma horta. Um terreno pequeno, alugado. Não passa de uma distracção. E depois come-se o que se colhe. JETLAG - Portanto considera-se um homem feliz. CHECK IN - Não penso nisso. Não sou solteiro. Tenho outras preocupações. JET LAG - É pasmoso? CHECK IN - Como? JET LAG - É pasmoso ser-se tão novo e tão sábio.


CHECK IN - A gente cresce de estaca como as rosas. Haja sol que a gente deita flor e deita espinhos. Não é assim? JET LAG - Será, será. Portanto, rumo ao sol e rumo ao sul. Montado num passarão de aço. CHECK IN - Ao norte do sul, mais propriamente. Aproveito para conhecer a terra donde vieram as minhas gentes. História antiga. E vou tratar duma pequena herança. São uns campos, coisa pouca. Talvez venda. Não se pode cultivar terreno por correspondência. Mulher e filhos estão noutra. Por isso viajo só. Vou dar descanso à cabeça. JET LAG - O meu jovem amigo parece tê-la bem assente nos ombros. Férias a sério só mesmo sem a família a reboque. E agora compram-se férias de sonho em qualquer lugar do planeta. Já percebi que não gosta de grandes ajuntamentos. Um homem de posses modestas que viaja em classe executiva só pode ser uma pessoa de bom senso e bom gosto. CHECK IN - Bem, não é bem... Não é que eu queira desenganá-lo... JET LAG - Desenganar-me? A mim que não o conheço? CHECK IN - Sim. Não... Ou seja: eu só estou neste salão porque me riscaram da lista. Ao que parece. E agora dizem que, para me compensar, serei encaminhado na primeira ligação, em primeira. Profundo suspiro. Mas dá-me ideia que se esqueceram outra vez de mim. JET LAG retórico - Se é esse o caso, deixe o caso comigo. Eu armo para aí um escândalo que os tipos metem-no num avião para as Caraíbas com tudo pago: bungalow, boy em full time, barco privado e animação... escultural. CHECK IN rindo - Ui... isso é que ia ser um programa...! Mas não se incomode. Eu estava exagerar. São os nervos. E agora, só de conversar um bocado, até já me sinto mais calmo. Muito obrigado. JET LAG sacando um estojo do bolso interior do casaco - Se não posso enviá-lo para as Caraíbas, posso ao menos oferecer-lhe um cubano? Estende-lhe o estojo aberto e acende um isqueiro que saca de outro bolso. Estes são dignos da boca dum rei... CHECK IN - Desculpe, eu não fumo. Ou melhor, fumo. Não fumo... coisas tão fortes. E... aqui não se fuma. Aqui é proibido fumar. JET LAG empinando o nariz - Ora, ora... O meu jovem amigo ainda não percebeu que está... que veio parar - graças a um erro infeliz - ao salão dos fumadores VIP. Há males que vêm por bem, está a ver... A infelicidade jogou em seu favor. Aqui pode fumar que nem uma chaminé. Isso de proibições é para os pobrezinhos. CHECK IN - Só que... só que eu deixei o maço que tinha encetado em casa. Para não pensar demasiado no assunto. Não há nada mais tentador para quem fuma do que ter um cigarro no bolso. Dá logo o dobro da traça. Pelo menos comigo é assim. E, sabe o senhor, entretanto já me habituei a não fumar no local de trabalho. Fazia-me espécie vir fumar para a rua, encostado à montra da loja para vigiar a entrada dos clientes. Sentia-me como... como uma prostituta, daquelas mais velhotas que atacam nas esquinas durante a tarde porque mal se aguentam nas canetas... JET LAG escangalha-se a rir com a confidência de CHECK IN. Depois, compondo um ar paternal.


JET LAG - O meu jovem amigo é um sujeito imaginoso. Bem, suponho que entre a primeira caixa de parafusos do dia e a primeira chave de fendas made in China, deve ter muito tempo para dar livre curso aos seus pensamentos. Na verdade, a vida de um balconista pode ser bastante tranquila. Sobretudo numa loja de ferragens. Não será como a das vendedoras de trapos que aturam aquelas dondocas dispostas a virar uma loja do avesso para comprar um par de cuecas. Por isso é que tem esse ar tão... tão limpo. Limpo é a palavra. CHECK IN um tanto chocado - O senhor julga que só os ricos é que tomam banho? JET LAG reprimindo uma gargalhada - Na... na... nem por sombras. Eu dizia «limpo» no sentido figurado. Mas retiro tudo o que disse se acha que a limpeza é ofensiva. Pessoalmente, não tenho nada contra a sujidade, está a ver. Pelo contrário: sem sujidade o mundo não avança. Até costumo afirmar - e nem sempre sou bem entendido - que para o mundo se manter minimamente limpo, é preciso que alguém suje as mãos. Literalmente. E não apenas literalmente. CHECK IN olhando para a direita, como se procurasse um vulto - Acho que vou tentar pôr a mão num... numa pessoa que use uma farda para ... JET LAG - Escusa de se preocupar. Virão buscá-lo. Não reparou que os anúncios de partidas e chegadas mal se ouvem nesta parte do aeroporto? Pode cair o Carmo e a Trindade que aqui estamos seguros. E não se esquecem de nós, lhe garanto. Somos tão bem tratados que até dói. Basta ter havido um alerta, uma mala abandonada... Ainda por cima, o meu jovem amigo agora está por minha conta. Não quer beber qualquer coisa? E o cuzinho do meu cubano... não se deixa tentar por um charuto calmante? Olhe que é higiénico fumar tabaco sem aditivos... CHECK IN - Beber... acho que não. Com a pastilha que tomei, deve ser contra-indicado. Mas acho que vou aceitar o seu charuto. Radiante, JET LANG passa-lhe o charuto e saca prontamente do isqueiro para lho acende. CHECK IN aspira e tossica. JET LAG - Não tente travar para além do que consegue. Olhe que o fumo é um prazer de boca, meu jovem amigo. Os fumadores de cigarros americanos aspiram profundamente o tabaco porque sabem e sentem que estão a inalar e a engolir merda. Fumar um charuto, aprender como se fuma charuto pode ser uma viragem profunda na vida de um homem... Não sei se me faço entender. CHECK IN olhando para a ponta acesa do charuto - Viragem... como assim? Não é por eu usar um fraque alugado no casamento de um amigo que me transformo num fidalgo. JET LAG - O exemplo é mau. Mas não é mau por causa do fraque, é mau por causa do casório. Dizem que o hábito não faz o monge. Mas então que raio é que faz o monge? A vocação? Felizmente, há outros ditados, mais cautelosos, menos hipócritas. Quem não quer ser lobo não lhe veste a pele. Pela aragem se vê quem vai na carruagem. Etc. Saiba o meu jovem amigo que a única diferença entre si e mim é mesmo uma diferença de aparência. Contra mim e a meu favor, tenho as rugas, os cabelos brancos e o fatinho. Contra si e a seu favor, tem a pele mimosa, o cabelo preto e o fato de treino. Estamos um bocado empatados... Rindo. Mas vamos pensar na coisa assim: a sua indumentária desportiva só prova que o meu amigo anda a treinar para ser como eu. CHECK IN - O senhor é muito simpático, mas não se esqueça de que, por muitas caixas de parafusos que eu venda, nunca... nunca lhe hei-de chegar aos calcanhares.


JET LAG - Isso é um elogio rasgado ou um comentário irónico? CHECK IN - Nem uma coisa, nem outra. É ter os pés bem assentes na terra. Pausa. Pelo menos enquanto não levanto voo. Pausa. Fogo...! Isto põe a cabeça a andar à roda... JET LAG - Hum... é certo que o primeiro charuto restabelece um bocado a verdade das coisas. Não é a cabeça que anda à roda, é a terra que gira e o meu jovem amigo está a senti-lo. Não é? Vamos dizer que se trata de um baptismo do fogo... já que o baptismo do ar se faz esperar. CHECK IN suspirando - Pouca sorte a minha, caramba...! Andei eu meses a preparar esta viagem para nem sequer conseguir descolar do aeroporto... A verdade é que é a primeira vez que saio assim. Até a mala me deu trabalho a fazer. Não sabia calcular ao certo o que seria indispensável para além da escova de dentes... JET LAG - É natural, é natural. Isto de bagagem tem muito que se lhe diga. Olhe, eu, que tenho uma data de gente ao meu serviço, não deixo que ninguém me faça a mala. Não tem a ver com aquilo que é preciso... Os japoneses, por exemplo, viajam com quase nada, bagagem quase zero. Bagagem zen. Tem mais a ver com aquilo que se espera da viagem. E o meu jovem amigo espera muito, pelo que me diz... Deve ter trazido um baú. Como se... como se, no fundo, não quisesse regressar mas, ainda assim, levasse a casa às costas. CHECK IN - Bem eu... Eu não... Nunca me passou pela cabeça não voltar. Silêncio prolongado. JET LAG - Nunca? CHECK IN - E a minha mala é de um tamanho normal. JET LAG - Mas não a tem consigo... CHECK IN - Como assim não a tenho comigo? JET LAG - A bagagem de tamanho «normal» não precisa de ser registada. As pessoas carregam-na consigo. Até porque perder malas é a grande especialidade das companhias de aviação. E chegar algures de mãos vazias é uma chatice... uma grande chatice. CHECK IN - Bem, eu... eu não estou muito calhado nestas lides, mas espero ter feito tudo para que a bagagem não se perca. Até porque lá tenho dentro os papéis de que preciso para... para... JET LAG - Para se habilitar à herança? CHECK IN - Sim e... JET LAG - Não me diga que cometeu a imprudência de deixar muitos objectos importantes na sua mala... CHECK IN - Uma fotografia do meu pai. Corpo inteiro. Uma fotografia da família do meu pai, frente à casa dos meus avós. Fotografias da minha família. Várias... JET LAG - Bem... Antes uma família na mala do que no bolso do casaco. Rindo. Não leve a mal os meus gracejos. Estamos entre homens sós, podemos rir de tudo. Sobretudo de coisas sérias.


Coçando a nuca. Seja como for, nunca é cedo de mais para matar um pai. E quanto às famílias, próximas ou longínquas, são uma carga pouco... pouco transportável. Não acha? CHECK IN - Eu... eu estou muito cansado. O senhor baralha-me, não consigo pensar direito. E esta fumaça sobe à cabeça, parece que me vai rebentar com os miolos. Fazendo menção de apagar o charuto. Até tenho as pernas dormentes. Vou dar uma volta e procurar alguém que me informe... JET LAG - Um charuto... um charuto, meu jovem amigo, não é para fumar como se fuma um prego. É para se ir fumando. E para ser fumado. Percebe a diferença? Se lhe apetece ir desentorpecer as pernas, não se prenda por minha causa. Mexendo-se no assento. Tenha calma. A vida voa, mas os aviões não fogem. C'um raio, você está de férias... Ou não está? Se leva para férias os horários e as obrigações que tem de cumprir quando não está, o que vem a ser isso de férias? CHECK IN ligeiramente agastado - Sei pouco do assunto. Eu vendo ferragens, não vendo férias. JET LAG - Ui... Não seja pueril. Façamos jus à sua inteligência. É o mínimo que podemos fazer por nós mesmos. O meu jovem amigo não vende ferragens. Vende retalhos da sua vida. Ao patrão vende retalhos de nove horas de comprimento por cinco dias e meio de largura. À sua mulher vende com desconto porque o casamento é sempre um mau negócio. Aos seus filhos CHECK IN interrompendo, bruscamente irritado - O senhor tem filhos? JET LAG - Bem... que eu saiba não... Mas nunca se sabe CHECK IN - Então por que é que caga postas de pescada acerca do que não sabe? JET LAG batendo palmas - Bravo! Bravo! Levantando-se. Bravíssimo...! Voltando a sentar-se pesadamente. Julgava que não conseguir pô-lo fora de si. Julgava que você não era capaz de sair da casca. CHECK IN - Casca? Sair da casca? Mas acaso o senhor acha que eu sou uma banana? JET LAG batendo palmas com irónica moleza - Magnífico...! Muitíssimo a propósito. Eu não sou uma banana. Eu não sou um bananas... Bem sei que na alma de cada vendedor há um orador exilado, mas o meu jovem amigo... CHECK IN - Nem jovem, nem amigo. E deixe-me que lhe diga uma coisa: é preciso ser um pulha, um pulha a valer, para brincar com isso de espalhar filhos por não ter mão na gaita. JET LAG abrindo um sorriso paternal, muito pausadamente - Eu... pulha... mil vezes pulha... me confesso. Mas tenho a declarar... em minha defesa... que não andei a fabricar órfãos... Prometo... Juro... Era força de expressão. Abusei da força de expressão. Mas mais vale abusar da força de expressão do que da expressão da força... está a ver... CHECK IN, ligeiramente envergonhado, não responde. JET LAG - Eu... sou pulha... pulha a ponto de me tornar inofensivo... lhe garanto que sou um pai adiado. A mais pura encarnação da personagem do pai adiado. Sou um homem só. Muito rodeado mas só. Só. Apenas só. Além de pulha. O senhor não reparou que fui eu que meti conversa consigo? Onde é que um tipo cheio de pasta e sem bagagem vai meter conversa com um desconhecido se não lhe foge a terra debaixo do chão...? Onde?


CHECK IN corando - Não sei... Não posso saber. Andam para aí muitos velhos... no engate. JET LAG escangalha-se a rir. JET LAG - Ó minha senhora, por quem sois... Barba rija em fato de treino não faz o meu género. Disse que era pulha. Não disse que era paneleiro, panascas, maricas, larilas, bicha velha e bicha louca. Disse que estou só. É só. Pausa. E, no fundo, não passo de um vendedor bem sucedido. Donde... CHECK IN - Donde? JET LAG - Donde a lábia. Que no meu caso é MESMO sinónimo de desenvoltura. De desprendimento. Enquanto no seu... CHECK IN - No meu...? JET LAG - Sim, no seu. O senhor é um caso antes de ser uma pessoa. Pelo menos para mim que me cruzo consigo. Não interfiro, infiro. A partir de. Infiro a partir de. E, pelos vistos, feri o seu amorpróprio. Peço... perdão pelo lamentável engano. Houve, digamos que um erro de apreciação. Como quando se vai a conduzir e se julga que se tem tempo de ultrapassar um sujeito que vai quase tão depressa como nós, está a ver... CHECK IN - Bem, eu também sou um pouco... Às vezes fervo em pouca água. Mas está tudo desculpado. Ou melhor não há nada a desculpar. JET LAG suspirando histrionicamente de alívio - Sabe, os homens sós são a melhor e a pior das companhias. A melhor porque são verdadeiros apreciadores. A pior porque... Porque. Bem, para ser sincero, tem a ver com hábitos adquiridos. Uma pessoa só desenrasca-se optimamente. Tem mais genica do que uma pessoa presa à grilheta do parente ou do amante ou do amigo. Mas uma pessoa só aborrece-se de morte. Aborrece-se, embora não queira admiti-lo. Então agita-se. Arma-se aos cucos. Inventa, devaneia, divaga. Olhe, eu sou daqueles que se armam em carapau de corrida. E às vezes divago tanto que me sinto capaz de ir passar férias ao inferno só para mudar de ares. CHECK IN - Pois... Nem todas as pessoas sós são pessoas... são pessoas solitárias. JET LAG aprova mexendo ligeiramente a cabeça. CHECK IN - Bem, tenho de ir procurar uma casa de banho. O charuto deu-me a volta aos intestinos. CHECK IN levanta-se, olha em todas as direcções e afasta-se timidamente como se calcasse ovos. JET LAG espreguiça-se com alguma graciosidade réptil, saca de um jornal, rosado e sem imagens, de um dos bolsos e abre-o. Durante três longos minuto, fica dissimulado atrás do biombo de papel impresso. Os anúncios de voo tornam-se rapidamente mais presentes até serem ensurdecedores. Mas o que se ouve é uma cacofonia musical e verbosa de tal maneira confusa que não se distingue nem uma palavra. CHECK IN volta a voltar em cena. A correr. Afogueado. Desamparado. Como num filme burlesco, quase tropeça nas pernas esticadas de JET LAG. Mal reaparece no palco, o som dos anúncios sofre um fade out brutal, que entra à tesoura: o som volta ao volume que anteriormente tinha e é, como anteriormente, coado e aveludado. JET LAG largando o jornal - Porra, homem! Cuidado consigo e cuidado comigo...


CHECK IN voz estrangulada - Já foi. JET LAG - Já foi o quê, criatura...? Parece que viu bicho? CHECK IN - Já foi. O meu voo já partiu. JET LAG - Impossível. CHECK IN - Acabei de ver no monitor. JET LAG - Onde? CHECK IN - Na casa de banho. Isto é: no corredor que leva à casa de banho. JET LAG - Não se fie em monitores. Eles mentem descaradamente. CHECK IN - Mas eu perguntei a uma hospedeira. Uma sujeita fardada. Que me viu aflito. JET LAG indignado - Nunca semelhante coisa me aconteceu. Que desplante...! Um passageiro VIP em trânsito, há sempre alguém que o vem buscar. Até porque... até porque esse passageiro, enfim, nós, os VIPs, aproveitamos para passar pelas brasas. Com o jet lag, podemos adormecer profundamente, está a ver. Está a ver o que aconteceria se todos os VIPs perdessem as suas correspondências aéreas, as suas reuniões inadiáveis, os seus contratos milionários, os seus negócios da China, por causa de uma inocente sesta? CHECK IN - Só que eu não sou um passageiro VIP. JET LAG fazendo-se desentendido - Como assim? CHECK IN - Já lhe expliquei que houve confusões com o meu voo. Por culpa deles. Então, embora eu seja gente grossa e casca grossa, puseram-me no salão da gente fina. JET LAG coçando a cabeça - Entendo, entendo. Ou antes: não. É inadmissível. Isso de ser VIP tem a ver com a pele que o lobo veste. E a pele que o lobo veste, hoje em dia, é uma questão de território. Unicamente. Quanto lhe custaram as sapatilhas que traz nos andantes? CHECK IN - Perdão? JET LAG - Quanto custaram essas sapatilhas? Os putos dizem «todas quitadas», como se os andantes fossem automóveis e não simples patas? CHECK IN - Mas o que é que isso tem a ver? JET LAG - Tudo. Num tom quase ameaçador. TUDO! CHECK IN encolhendo-se como se apanhado em falta - Bem, estas foram carotas. São topo de gama. Um bocado... muito acima dos meus meios. Mas dão bom andar. São laváveis, impermeáveis, quase eternas. E eu tenho ideias de fazer grandes caminhadas, lá pelos montes e pelas bouças. Então... JET LAG - Então é o que eu lhe dizia. Mentindo descaradamente. O senhor traz nos pés uma nota preta. Eu é que sou o gajo da nota, mas o senhor traz nos pés mais massa do que eu no corpo todo.


Estamos entendidos? Tendo em conta os pés e a alcatifa que eles pisam neste momento, eu diria que o senhor foi maltratado. Indecentemente tratado. Abaixo de caniche. Está ver? CHECK IN - Não sei. Agora não sei que lhe diga. Só sei que não sei o que hei-de fazer. Sinto-me culpado. Envergonhado. Mas que culpa tenho eu? JET LAG - E tem vergonha de quê? Paternal. Sente-se e acalme-se, meu amigo. Há disse-lhe que estava por minha conta. Antes disso - tenho a certeza de que a alusão não lhe escapou -, estive quase para lhe oferecer um emprego. Respirando fundo. Depois ia estragando tudo porque o ofendi. Sem querer propriamente ofendê-lo, ofendi-o. Tossicando como se estudasse as palavras. Eu sou um homem de palavra. Quanto mais só, mais honesto. O senhor parte comigo. Partimos os dois. Tudo por minha conta. Nada na manga, tudo na bolsa. Vamos... vamos para o raio que nos parta. CHECK IN, estarrecido, fita longamente JET LAG que ri sozinho como um perdido. ESCURO. SEGUNDO ACTO A luz entra porventura à faca. Fria e relativamente fraca, como se, na penumbra do lobby VIP, uma semi-noite se preparasse para cair. Frente a JET LAG e CHECK-UP, dois carrinhos com tabuleiros com restos de comida e de bebida. JET LAG parece dormitar, CHECK-UP agita-se um pouco no assento, como se nem coubesse em si, nem no assento. JET LAG sem abrir os olhos - Durante as próximas duas horas não há aviões. E todas as lojas estão fechadas. CHECK IN - Acho que vou telefonar à minha mulher... JET LAG sem abrir os olhos - Para quê? CHECK IN - Para lhe falar... para lhe dizer... enfim, para lhe dizer que cheguei bem. Que estou bem. JET LAG - Além de não ser verdade, é péssima ideia. O senhor quer que ela ponha a bófia toda no seu encalço? CHECK IN - E por que é que ela faria uma coisa dessas? JET LAG - Porque você se vai descair? Não vai? CHECK IN hesitando - Na... não sei. JET LAG - Então é como lhe digo. CHECK IN - Mas... JET LAG abrindo os olhos - Mas o quê? CHECK IN - Isto não se faz. JET LAG - Deixe-se de moralismos. O senhor deve alguma coisa a alguém? Mal as agências abrirem, a gente reembolsa e indemniza quem for preciso.


CHECK IN - E por que é que haveria de fazer semelhante coisa? Eu não lhe sou nada... JET LAG - Porque tenho dinheiro como o esterco. E vontade de o gastar como me apetece. Principalmente esbanjando que é o que menos medíocre se pode fazer com tanta pasta. Certo? CHECK IN não sabe que responder. Está extenuado. Boceja, hesita em espreguiçar-se. Acaba por só esticar as pernas como se as tivesse dormentes, afastando para um lado os carrinhos de refeição. CHECK IN - Mas eu nem mala tenho comigo. Sinto-me ridículo com este fato à sua beira. E devia trocar de roupa porque me sinto banhado em suor. Ai, nunca me passou pela cabeça que me ia meter em maus lençóis. JET LAG - O senhor chama maus lençóis a isto de me fazer companhia? CHECK IN - Não disse isso. Eu não queria ser mal agradecido. Malcriado. JET LAG - Nem uma coisa nem outra. Eu disse ou não disse que o senhor ficava por minha conta? CHECK IN - Foi. JET LAG - E que me encarregava da sua felicidade enquanto... enquanto estivesse sob a minha asa protectora? CHECK IN - Pois... Mas como quer que eu acredite numa coisa tão fora do vulgar? JET LAG - O senhor viu-me tentar fugir ao que lhe prometi? Viu-me tentar arredar pé daqui? CHECK IN - Naaa... JET LAG com irresistível malícia - Ainda está com medo que eu tome as dianteiras e lhe vá ao traseiro? CHECK IN - Naaa... JET LAG - Então relaxe, homem. E torne-se útil, agora que me acordou quando eu estava milagrosamente a passar pelas brasas. Vá-me... Posso tratá-lo por tu? CHECK IN acena com a cabeça em sinal de assentimento. JET LAG - Excelente. Detesto mariquices. Piscando o olho. Enfim, só tolero as minhas... Olhando para a biqueira dos sapatos. Vai-me pedir um conhaque, ali ao do colete de cetim. Apontando. Sim, o Fred Astaire que dança atrás daquele balcão. Fitando quase com severidade. Mas nada de zurrapa ao pequeno-almoço. Comigo é de Napoleão para cima, meu general. Pausa. E toma um café. Sei lá, toma o que te apetecer... JET LAG entrega-lhe um maço de notas que CHECK IN agarra desajeitadamente, não chegando a metê-lo ao bolso ou numa carteira. CHECK IN, semi-cambaleante, sai de cena, com o dinheiro na mão. Um pouco como se ele lhe queimasse os dedos. JET LAG permanece, imóvel como uma estátua, a olhar para as biqueiras. Longo silêncio de feltro.


CHECK IN regressa com um enorme balão de conhaque na mão. Entrega-o a JET LAG, mete a mão ao bolso e faz menção de lhe devolver o troco. JET LAG interrompendo-lhe o gesto - Fica com isso. Agora és meu secretário. Com um sorriso diabólico. Ou, se preferires, minha dama de companhia. Não protestes, não te canses. Vais ter que se habituar ao meu feitio. Eu sou menos mau do que me pinto. Mas preciso sempre de uma pontinha de humor para não me levar demasiado a sério. Aliás, contento-me com umas alfinetadas, como não tardarás a perceber... Levantando-se, bebericando e obrigando CHECK IN a sentar-se. Bem, já que não queres ou não consegues dormir, vamos ao que importa. Para seres meu... meu colaborador, precisas de ver mundo. Era o que timidamente ias fazer com a tua viagenzinha sentimental, não era? Ora o grande pulha que eu sou põe-te o mundo na mão. É todo teu. Vamos para onde quiseres. Também estou a precisar de tirar férias. Só tens de abrir a boca para pedir. Eu abro os cordõezinhos à bolsa. É bom, não é? Não tenhas medo de pedir que eu não sou Deus Pai. CHECK IN lívido e quase sem voz - Não sei. JET LAG - Sabes, sabes. Ora puxa pela cabeça... CHECK IN após uma pausa, inaudível e sem olhar para JET LAG - Lançarote. JET LAG - O quê? Fala mais alto. É preciso que habitues a assumir os teus desejos. CHECK IN - Lançarote. Ouvi dizer que JET LAG - Que...? CHECK IN - Que era um vulcão adormecido. Não sei se é assim que chama... JET LAG sentando-se de novo e fitando CHECK IN - Tu és mesmo surpreendente, caramba...! Com que então Lançarote!? O pedido é modesto. Razoável. Muito razoável. Embora a escolha seja deliciosamente estranha. Uma ilha. Um vulcão. Adormecido talvez, mas olha que foi preciso o rapaz Filipe II de Espanha sair-se com ordem de pena de morte contra quem quisesse abandonar a ilha para impedir que a malta desse à sola. CHECK IN - Eu vi umas fotografias. Na montra da agência de viagens que fica colada à loja de ferragens. É tudo preto. JET LAG - Sim, sim... Para uma semaninha à sombra da bananeira, não deve estar mal. CHECK IN - Eles propõem umas excursões, acho eu. De camelo. JET LAG - De camelo? Encantador. Trepidante. CHECK IN - Deve haver hotéis sossegados. Onde se possa trabalhar. Eu não quero ser um peso. JET LAG - Sim, hotéis não haverão de faltar. CHECK IN - O meu problema é que eu não consigo imaginar em que posso ser-lhe útil. JET LAG - A mim? CHECK IN - Sim.


JET LAG - Em quê? Não disseste que havia excursões de camelo? CHECK IN - O senhor já experimentou? JET LAG - Não. É uma primeira utilidade. Pôr-me a fazer coisas que eu nunca faria sozinho. CHECK IN - Acha que podemos reservar quarto aqui... quer dizer, aqui no aeroporto. Estamos na estação alta. JET LAG - E tu a dar-lhe com a hotelaria...! Ouve lá, além de hotéis e bananas, aquilo não tem mais nada que ver ou vender. CHECK IN - As praias de areia preta... JET LAG - Na areia preta, não me apanhas... Julgas mesmo que eu ia sujar os sapatinhos para tropeçar no cu de uma inglesa histérica, dessas sardentas escanzeladas que ficam cor de lagosta para condizer com o molho de marisco do buffet frio. Apesar de tudo, tenho os meus limites. CHECK IN - As paisagens parecem muito selvagens. Nas fotografias não se vê vivalma. JET LAG abanando a cabeça - Que ingenuidade, pá! Até dói. Uma ilha. Sem recursos. Bronzeador, bananas, barquinhos e bungalows. E os gajos, que precisam do turista como de pão para a boca, iam espetar com um bando de gajos de short no meio das paisagens de cinza. Então não vês que as pessoas como tu precisam de imaginar que vão ter o vulcãozinho só para elas. Portanto, na fotografia só aparecem dois camelos: o bicho propriamente dito e o condutor vestido de berbere. Claro que nem todos os turistas são tão inocentes como tu. Quase todos eles sabem que essa parte é só para a fotografia. Portanto compram um pacote que é o cenário da fotografia de férias mais o hotel com jakuzzi, bufete frio e imensas inglesas cheias de cio. Topas? CHECK IN - Peço desculpa. Eu não JET LAG - Não tens nada que pedir desculpa. Fitando de novo a biqueira dos sapatos. Incidente encerrado. Podes começar a pensar noutro destino. Vá, toma o teu destino nas tuas mãos. CHECK IN - Mas eu não – JET LAG - Não me disseste que a tua loja é à beira de uma agência de viagens? CHECK IN - É. Fica mesmo pegada JET LAG - E queres-me convencer de que não passaste horas a olhar os prospectos...? Que, de resto, são gratuitos? CHECK IN - Sim, às vezes, durante o intervalo do almoço, eu ia espreitar os papéis. Só que era tudo tão caro, tão irreal, que eu só passava os olhos por aquela tralha toda. Muitas palmeiras, muitas piscinas, muitas praias. O sol a pôr-se no mar em todas as partes do mundo. Mas tudo fora do meu alcance. Começa logo por eu não saber nadar... JET LAG - Ninguém te pede que vás a nado para lado nenhum.


CHECK IN - E também não faço ideia do sítio onde se encontra a maior parte daquelas estâncias turísticas. JET LAG - Pensa num sítio longe. Bem longe. Quanto mais longe melhor. Temos de ir mais longe. CHECK IN, atrapalhado, põe-se também ele a olhar para os sapatos. Ao cabo de um longo silêncio, durante o qual ambos ficam estáticos, responde num tom decidido. CHECK IN - A Ilha da Páscoa. JET LAG - Grande ideia. Centenas de homenzinhos de pedra, todos iguais, com os olhos postos no horizonte sempre igual. Milhas e milhas de mar a atravessar, sempre igual. Poucos humanos muitas estátuas. Excelente. CHECK IN - Acho que a partir de Santiago do Chile... JET LAG - A partir de Santiago, aluga-se um avião e depois um carro. Tu não nadas... mas conduzes? CHECK IN acena para dizer que sim. Eu trato de tudo. Vamos para o melhor hotel. Saíste-me um autêntico Capitão Cook. Só gostas de ilhas. E de vulcões. CHECK IN - Aquilo é muito verde, não é como JET LAG - Muito. Um autêntico bilhar. E nós vamos dar a volta ao bilhar grande. De carroça. Que te parece? Os dois numa carroça puxados por cavalinhos gabadum-gabadum, de moai em moai... CHECK IN - Não sei. Quer dizer: sei. É maravilhoso. Mas parece tão irreal como as fotografias da agência. JET LAG - Não sejas desmancha-prazeres. Isto está-me a dar fome. Tu não tens fome? CHECK IN - Não. Ou melhor: não penso nisso. Estou todo trocado, acho eu. JET LAG - Temos que comer qualquer coisa. Uma coisa leve mas nutritiva. Tipo... tipo... umas tostas com caviar, um champanhe que não desmereça e... uma omoleta com trufas. Pouco mas bom. Toma nota num papel e vai lá encomendar o pequeno-almoço melhorado ao Fred Astaire. Depois do conhaque, o gajo já deve ter percebido que connosco não se brinca em serviço. CHECK IN aponta a encomenda num bilhete usado que saca do bolso e sai de cena. Regressa uns instantes depois, com ar de missão cumprida. CHECK IN sentando-se - E os seus negócios. E o senhor está... estava em viagem de negócios. Por minha causa JET LAG - Não foste tu que me desencaminhastes. CHECK IN - Lá isso não. JET LAG - Eu é que... eu é que te fiz... sentir, digamos, que valorizava a tua companhia. E tudo partir de um feeling. Preciso dum braço direito. Preciso de descansar em alguém. CHECK IN - É por isso que vamos para a Ilha da Páscoa?


JET LAG - Descansar na Ilha da Páscoa? Não será fácil descansar num lugar tão desabrigado. Fogo...! Uma ventania, um vendaval permanente. E sabes o que é que aqueles bonecos significam? CHECK IN - Ninguém sabe. Ao que eu sei, ninguém sabe. JET LAG tom maldoso - Ninguém sabe mas aqui o papá vai-te dizer de sua justiça. Não foram extraterrestres que lá puseram os moai. Foram humanos, humaninhos da silva, vai por mim. Os gajos têm todos a mesma expressão, o mesmo olhar fixo no horizonte, porque estão à espera que alguém os tire de lá daquele desterro. Viver ali, só mesmo por castigo, estás a ver. CHECK IN - Mas então JET LAG - Então nada. Havemos de conseguir escolher o destino ideal. Por aproximações sucessivas. Eu mal te conheço a ti e tu mal conheces o planeta Terra. Respira fundo. Não te preocupes, havemos de encontrar um poiso. Agradecia era que te deixasses de vulcões e catástrofes naturais. Eu sou um homem velho. Nota-se, não se nota? E as ilhas também não me agradam por aí além. São lugares um bocadinho sufocantes. A maior parte delas eram desertas e deviam continuar a ser. Todas as ilhas deviam ser desertas. CHECK IN a medo - O senhor fala como se eu pusesse e dispusesse. Como se, de um momento para o outro, mandasse não só na minha vida como nos lugares para onde vou. JET LAG - Não é com isso que sonham aqueles que viveram na servidão? Com essa cena gaga de tomar nas mãos as rédeas do destino...? CHECK IN - Eu limitei-me a aceitar um emprego. À experiência. À experiência para ambos os lados. Estou muito confuso, muito mesmo. Mas não cuspo na sopa. JET LAG - Isso de chamar sopa ao que a gente mandou vir do restaurante é de gritos. Enfim, é bom sinal. Bom sinal. Significa que já te estás a habituar a viver à grande e à francesa, condição sine qua non para a gente se entender. Para a gente coabitar. Suspirando. O que mais me... me desagradou nesses destinos que escolheste CHECK IN - Fogo...! O senhor arrancou-mos a ferros e agora JET LAG - Eu não arranquei coisa nenhuma, pá. Não sou parteiro, nem torcionário, porra! Só queria ver se te saltava a tampa. E saltou. Parabéns... que para males já bastam os meus. Pausadamente. Agora, como compreenderás, eu prefiro os paraísos fiscais aos desertos insulares. É deformação profissional. São os ossos do ofício que me mantêm de pé. Porque os outros, meu amigo, estão moidinhos, moidinhos. São quase pó. CHECK IN - O senhor está a exagerar. Para velho está muito novo. E para novo está muito saído da casca, como dizia a minha mãe que era uma víbora... JET LAG - A despropósito, por onde andará o nosso pequeno almoço? O dia vai raiar e a gente tem que tomar decisões. Estou com uma fome dos diabos...! A mim, não é viajar que me abre o apetite, é mais a ideia de viajar. As ideias são bem melhores que todo o ar puro do mundo, não achas? Volta a fitar obstinadamente a biqueira dos sapatos, como se de lá saísse alguma forma de inteligência. Vai lá ver em que param as vozes. O Fred Astaire deve estar a valsar com a menina da cozinha.


CHECK IN ergue-se, sacode as pernas e dirige-se para um fora de cena donde não tarda muito a voltar, empurrando um enorme carrinho com uma garrafa de champanhe (já aberta) e tudo o resto delicada e extravagantemente disposto num largo tabuleiro. CHECK IN - Cruzei-me com ele... já vinha a caminho. JET LAG - Fizeste bem, não fosse o gajo ir valsar para outras bandas. Fitando CHECK IN que coloca o carrinho frente a JET LAG e não ousa sentar-se. Estás a ver como tens sentido da iniciativa...? CHECK IN - Eu? JET LAG - Sim. Não importa. Vamos ao que interessa. Que sabes tu de paraísos fiscais? CHECK IN - Pouco. Que há alguns. Só sei pelo que leio nos jornais. JET LAG - E não há assim nenhum que te atraia... que chame por ti? Às vezes basta um nome mais bem sonante para pôr uma pessoa a sonhar. CHECK IN - Assim, de cor, não me lembro. JET LAG excitado - Eu ajudo-te. Adoro este jogo. Até parece que voltei aos bancos da escola e que, por feliz acaso, até sei a minha lição na ponta da língua. Serve duas tulipas de champanhe, entrega uma delas a CHECK IN e ergue a sua. À tua. À nossa. Ambos bebem. Vejamos... Na Europa: Andorra, Mónaco e Liechtenstein. Suíça. Luxemburgo. Chipre. Gibraltar. Jersey e Guernesey. A Ilha de Man... CHECK IN - Chi... tanto paraíso. JET LAG - Alguns destes nomes te... CHECK IN - Não. JET LAG - Tens razão. A Europa é mesmo muito careta. Passemos pois a África. As Seicheles e a Ilha Maurícia. São ilhas. Não contam. A Tunísia. O Gana. A Libéria. CHECK IN mordiscando uma tosta de caviar - Não faço a mínima... Onde é que isso fica? JET LAG servindo-se de omoleta e começando a comer - Não te apoquentes. E come. Não deixes arrefecer a omoleta. Para África nem pensar. Calores, fedores e poeirada... não é comigo. Ásia, portanto. Singapura, Hong-Kong CHECK IN comendo uma tosta e mastigando devagar - Hong-Kong... é uma cidade enorme, não é? Deve ser o sítio ideal para aprender a vida dos negócios. JET LAG - Ui... de repente, passamos das cinzas para uma floresta de betão e aço. Casas bem altas e taxas bem baixas. Eu alinho. Mas não vamos para lá em trabalho. Vamos em diversão. Manobra de di-ver-são. É a brincar que mais se aprende, sabias? Sobretudo de negócios. Come uma tosta e bebe um golinho de champanhe. A brincar e a comer. Comendo com atenção, ou seja com interesse real e curiosidade ávida por aquilo se come, comendo com apetite crítico, digamos, um gajo fica a saber de que massa é feito, estás a ver. Quanto aos negócios, é um lugar comum dizer-se que se decidem quase todos à volta de uma mesa. De uma mesa guarnecida de iguarias saborosas e não de


insípidas papeladas. Trincando outra tosta, enquanto CHECK IN beberica. E a China, vê lá tu, deve ser dos países mais gastronómicos do mundo. Mesmo às cegas, calhaste bem, estás a ver... CHECK IN depois de limpar a boca - E que género de coisas se come por lá... o senhor conhece bem, já lá esteve? JETLAG - Em Hong-Kong estive. Mas a China são muitas Chinas num grande chinelo. E mesmo dentro de Hong-Kong há toda a espécie de chinocas. Suspirando. Come-se de tudo, pá. Porcos, patos, peixinhos, passarinhos. Ratazanas. Escorpiões e escaravelhos. Chegas ao restaurante com o teu caniche e, passado um tempo, servem-te o canino lacado com um crisântemo espetado do focinho. CHECK IN, chocado, larga o garfo com que se preparava para atacar a omoleta. JETLAG - Os chineses são muito adaptáveis. Vê lá que até se adaptaram ao comunismo e agora adaptam-se ao capitalismo num abrir e fechar de olhos. Têm o jogo da vida no sangue. Ver os gajos agarrados a uma slot-machine até dói. Por que é que achas que há tantos casinos por aquelas bandas? Entre legais e clandestinos, bem... deve ser um décimo da cidade. Joga o gajo podre de rico, mas o gajo podre de pobre não lhe fica atrás. CHECK IN - Mas isso só pode ser um inferno... JET LAG - Tanto não diria. É escaldante. E, de facto, talvez seja um destino mais apropriado para quem quer queimar os últimos cartuchos. Talvez... CHECK IN - Portanto tive ideia peregrina... Não foi? Silêncio. Ambos continuam a petiscar. Ao som ambiente vai-se gradualmente sobrepondo um som, cada vez mais presente e incómodo, de dentes a mastigar. De súbito, o som de mastigação pára e, de novo, só ruídos de aeroporto, muito coados e longínquos, envolvem as personagens. CHECK IN - E Buenos Aires? Acho que foi um destino bastante na moda, pelo menos durante algum tempo. A montra da agência chegou muitas vezes a estar exclusivamente ocupada com cartazes e prospectos referentes a Buenos Aires. Eu até JET LAG - Agora é que deste cabo de mim...! Eu dou-te champanhe, tu pedes-me chá mate. Xeque ao rei. Eu dou-te tanga, tu dás-me tango. Xeque mate. Nem digas mais nada. É para lá que vamos. A voar. Procurando a carteira no bolso interior do casaco. Pegas num dos meus cartões e começas por ir comprar uns trapinhos um bocadinho menos olé-olé. Teatro Colon, Café Tortoni. Chiquérrimo... Aquilo é uma cidade muito colorida mas os machos querem-se de escuro e de gravata. Clima quase temperado. Chuva e morrinha uma parte do ano... CHECK IN - E como é que eu faço para pagar com um cartão que não é meu? JET LAG - Pedes para o gajo me trazer a conta e a factura. O gajo vem e eu assino. Dizes que eu estou com um jet lag do caraças. No segundo piso, há uma loja escocesa. Chama-se Derek ou Duncan, ou Donald, ou Douglas. Uma coisa assim em D. Artigos de lã fina de primeira escolha. Também vendem camisas. Reconheces facilmente o local porque tem trambolho à porta. Uma armadura, estás a ver. O sujeito conhece-me. Já agora compras dois guarda-chuvas de bolso. Mas de boa qualidade, nada de chinesices ao preço da chuva. CHECK IN - Vou já? Não acabo de comer? É que até é pecado deixar -


JET LAG - Vais num pé e vens no outro. CHECK IN levantando-se meio assarapantado - Mas... ainda nem sequer comprámos as passagens. Não é um bocado pôr a carroça em frente dos bois? JET LAG fitando a biqueira dos sapatos - Obrigado pela parte que me toca. CHECK IN - Eu não queria... JET LAG - Eu também não. CHECK IN - Eu só queria... JET LAG - Eu também. CHECK IN - O senhor não acha... JET LAG - Não, não acho. CHECK IN - Peço perdão, mas eu... O senhor baralha-me. Tão depressa me pede opiniões como me enterra nas opiniões que eu dou. Sinto-me... enterrado. É isso: enterrado. JET LAG - Não puxes por mim. Estou a ver que já te dei demasiada trela. CHECK IN - Mas desde quando é que... Eu limitei-me a JET LAG - A mostrar serviço. Como um cão. Só te falta trazeres-me um osso para eu roer e babares-te em cima dos meus sapatinhos... Quem disse que eu te queria ao meu serviço? Não tens coluna vertebral? Então eu peço-te que me digas abertamente o que desejas e tu atiras-me à cara os recordes de vendas da única agência de viagens onde alguma vez entraste!!!? Não me lixes, pá... CHECK IN - O senhor está a desviar tudo para o lado da maldade. Afinal sou eu e não senhor que se sente perdido. Eu é que perdi o meu avião, uma viagem marcada com três meses de antecedência. E quer o senhor, que do dia para a noite, eu desate a desejar coisas. Olhe... e não leve a mal isto que lhe vou explicar... Um homem como eu, um zé-ninguém, um pelintra, um borra-botas, não arranja nesta vida tempo para se coçar. Quanto mais para desejar. Silêncio. JET LAG - Olha, não ligues a tudo o que digo. Vê lá se consegues, tenho a certeza de que... Com o tempo hás-de conseguir destrinçar o cansaço do resto. Pausa. Eu queria levar-te a um lugar onde tudo faz sentido. O que lá está e o que lá não está. No entanto, queria que fosses tu a descobri-lo, a levar-me onde eu quero ir. Pesa-me a solidão. Não a solidão de estar só. Essa não. Pesa-me a solidão de pensar em mim e para comigo. Não sei se vês a diferença. Silêncio. CHECK IN - Pois. Acho que vejo. Acho que vejo a diferença. Quer-me parecer... Quer-me parecer que a gente se devia conhecer um bocado melhor. Que assim, desta maneira, às apalpadelas, às sacudidelas, a gente até pode dar a volta ao mundo e continuar a não acertar. A não encontrar o destino certo. Pausa. Ou será que estou errado?


Silêncio. JET LAG com doçura de quem passa a mão pelo pêlo. - Não. De todo. Acertaste em cheio. Na mouche, como se diz. Sinto que te conheço desde sempre, mas a verdade é que a gente se cruzou há poucas horas. É preciso dar tempo ao tempo, não é? E eu estou mesmo com um jet lag do caraças... Pausa. Talvez CHECK IN - Talvez seja melhor eu ir para casa. Com o rabo entre as pernas. Mas inteiro. Logo vejo que desculpa darei à família. O senhor segue também para a sua. Para a sua casa. Amigos amigos, negócios à parte. Amigos como dantes. Eu não sou feito para grandes voos... JET LAG - Não me faças isso. A sério. CHECK IN - Não faço isso o quê? Eu ainda não fiz nada. Nem contra si, nem a seu favor. Eu senhor deu-me uma letra. E eu limitei-me a perder um avião. JET LAG - Agora estás ao lado. Completamente ao lado. CHECK IN - Ok. Transportei um tabuleiro. O senhor não precisava de mim para ser servido num lugar assim. Com a sua lata e com a sua lábia. E com o seu calo. E a sua conta bancária JET LAG - Ó pá, queres que eu me humilhe? Que te diga que não é jet lag este cansaço imenso, esta paralisia? CHECK IN - Eu? Eu cá JET LAG - Queres que te diga preto no branco que é velhice pura e dura? E que o nosso rocinante de aço pode esperar? E que, sancho nesta pança patética, me vejo morrer só e de medo de não saber continuar? Não me faças isso, aprendiz de quixote. Tens razão. Tens mil vezes razão. Deixa girar a roda da sorte que é a dos ponteiros, não é? A gente tem de dar tempo ao conhecimento neste lugar fora do tempo. CHECK IN - Eu não... eu não tenho coragem para o abandonar, mas JET LAG - Mas vontade não te falta, meu cabrãozinho...! Que é como quem diz: «amigo não empata amigo». CHECK IN - Pare lá com os insultos, porra! O que é de mais é moléstia. Vou procurar ajuda. Uma hospedeira... sei lá... uma enfermeira. Alguém que tenha... que tenha mão nesta situação. JET LAG exaltando-se - Não tens vergonha na cara, pá? Eu dou-te a minha confiança. A minha confiança que é a única coisa que um homem de negócios que se respeite não dá a ninguém, e tu confias-me a uma puta de bata? Isto não é um corredor de hospital e, apesar do meu coração a pilhas, eu não estou propriamente moribundo. Estou apenas exausto. Esgotado. Fechado para obras. CHECK IN levantando-se e procurando o tom certo - Calma. Calma. Vamos começar por acalmar. Por respirar fundo. Exemplifica. Eu não tenho pressa. Não tenho ninguém à minha espera. Pegando-lhe na mão. E agora uns passinhos para digerir o pequeno-almoço. JET LAG ergue-se. A custo mas com grande docilidade. Ambos caminham pausadamente.


CHECK IN - O senhor está a precisar de descansar. Eu estou a precisar de descansar. Vamos dar uma voltinha. Para desentorpecer as pernas. A ver se nos passa esta espertina do charuto e do champanhe. Uma saltada à casa de banho. Uma boa mijadela... JET LAG - Como os cães. Marcamos território com uma mijadela fraternal. Inspirando. Sublime. CHECK IN - Não vejo em quê, mas tudo bem. Imitando o tom de JET LAG. Não está a pensar que eu lhe vou segurar na pila, pois não? Continuando a arrastar JET LAG. Depois lavamos JET LAG - As patas e o focinho... Lavamos as patinhas e a focinheira. CHECK IN arrastando JET LAG para fora de cena - E a seguir voltamos para aqui. Vamos, pelo menos, passar pelas brasas. Dormir a sério se conseguirmos. E no fim conversamos. O senhor está fora de si. E eu também não estou bem em mim. Dormidos, conversamos melhor. Que é para ver se a gente não se arrepende do que diz. Já fora de cena, mas ainda perceptivelmente. E do que faz. Escuro.

TERCEIRO ACTO Rodeados de um amontoado colorido de sacos de plástico e de papel, provindos de lojas mais ou menos chiques, JET LAG e CHECK IN dormitam no sofá ergonómico rosa carne. Algum lixo junca o chão a seus pés. JET LAG enverga agora um fato de treino roxo e umas sapatilhas surpreendentes, enquanto CHECK IN usa um fato azul noite, de corte bastante clássico, camisa pérola e écharpe cor-de-rosa à volta do pescoço. Um ribombar de trovão sobrepõe-se aos ruídos distantes do aeroporto, fazendo estremecer as duas personagens. Visivelmente agastado, CHECK IN abre um olho. Depois os dois. Por fim, sacode JETLAG que parece ter voltado a adormecer imediatamente. CHECK IN - Ó pá, não se consegue dormir nesta espelunca... Não sei como podes continuar a afirmar que um aeroporto é o lugar mais seguro e sereno para uma pessoa se agarrar à vida. JET LAG sacudindo a crina como um cavalo velho - Para que horas encomendaste o pequeno almoço? CHECK IN fita JET LAG franzindo o sobrolho. JET LAG - Ok, já me disseste que não podemos continuar a dar nas vistas. Eu deixo-me guiar pelas tuas paranóias. Enfim, deixo-me guiar por elas na exacta medida em que tu aceitas as minhas obsessões de coração aberto. Suspirando. No fundo, no fundo, sou um homem bom, não sou? CHECK IN - És um homem mau a caminhar para bom. Talvez... JET LAG - Hoje estás muito pouco convincente. Ora tenta lá dizer-me isso de outra maneira... Silêncio. JET LAG pretensamente indignado - Seja como for, não admito que um gajo que paga tudo o que come e não come tudo o que paga, num sítio tão caro como este nosso salãozinho, não tenha direito


a mostrar-se. Com a mais distinta das latas e sem vergonha na cara. Não estamos a fazer nada que não seja permitido, pois não? CHECK IN - Não sei. Não me apetece voltar a discutir essa merda. Só sei que não estamos a fazer uma cena normal. Não estamos a viver normalmente, num sítio onde normalmente se viva. JET LAG - Baboseiras... Achas normal um gajo com graveto não aproveitar esta cidadezinha em miniatura, policiada como nenhuma outra, climatizada e higienizada como poucas, para levar uma vidinha certinha e sem grandes preocupações. Não achas mesmo que é uma espécie de cúmulo da normalidade? CHECK IN - Não comeces... JET LAG - Não começo o quê? CHECK IN - A discussão. JET LAG - Porquê? Faz parte do nosso pacto de conhecimento mútuo. CHECK IN - Eu já te conheço de ginjeira. E esta discussão tem barbas. Puxando pela peúgas e sacando de um pente para acamar o cabelo. Tenho de ir ao banco. JET LAG - Para? CHECK IN - Para fazer aquele depósito. Não me digas que já se te varreu tudo o que a gente combinou? JET LAG - Ah... isso? Tem tempo. A fome é negra e ainda o dia é uma criança. Hoje madrugámos. CHECK IN - Só pensas em comer, porra...! De novo, o ribombar de um trovão. CHECK IN - Procura no saco verde. Tens lá duas sandes de salmão e um resto de vinho branco. JET LAG - O vinho branco está quente e as sandes, espapaçadas, devem ser intragáveis. Fazendo olhinhos. Não queres ir encomendar um chazinho com torradas e compotas ao Fred Astaire? CHECK IN - Está de folga. JET LAG - De folga? CHECK IN - Sim. De folga. Nem toda a gente acha este poiso o lugar ideal para tirar férias e gozar feriados como vossa senhoria. JET LAG - Então podes encomendar à Ginger Rogers. Eu não sou esquisito. CHECK IN - A gaja é um dragão de saias. Desde que topou que a gente acampa aqui no salão, não fala, ladra-me. Em tom severo. E o que combinámos foi fazer duas refeições substanciais por dia: uma para acordar, outra para adormecer. Uma para despertar, outra para dar sono. Eu não chamo substancial a chá com torradinhas e uns docinhos que não chegam para encher a cova de um dente.


JET LAG - Acordaste de candeias às avessas. Nem um sorriso. Nem um bom dia. Nem uma concessão à média aritmética. Ainda há pouco tempo eras uma ovelha tresmalhada a falar com o lobo mau e agora a fera que eu era já nem merece aqueles mínimos de respeito que fazem dos homens campeões da hipocrisia. E da cortesia. Estás-me a dar chá...? Que bicho te mordeu? CHECK IN - Estou a a-cor-dar. JET LAG - E eu estou a-cor-da-do. Porque tu me a-cor-das-te. CHECK IN - São mais que horas. Tens de ir fazer o teu circuitozinho de manutenção. Não queres ficar com as pernas inchadas como anteontem, pois não? JET LAG - Não disseste há bocado que ias ao banco? CHECK IN - E tu não me respondeste que o depósito pode esperar? Enquanto vais e vens, folgam as minhas costas. Pausadamente. Vais devagarinho. Compras tabaco e jornais. E lenços de papel, não te esqueças... Eu fico aqui a fazer umas contas e a pensar numa refeição menos frugal que água quente. Quando voltares, fazes-me o briefing sobre os negócios na Bolívia. E depois almoçamos que nem uns lordes. Tá? JET LAG amuado - Não. Não tá. Desculpa lá, mas não me aguento nas canetas. Portanto, vamos a despachar o briefing, senão ainda desmaio nos teus braços e tu não gostas de carregar com o meu peso. Ora bem: Bolívia. De Simão Bolívar, o libertador. Capital La Paz. Ouro, prata e pobres a pontapé. República das bananas durante muito tempo. Agora presidente incómodo. CHECK IN com uma displicência que lhe não era característica - Incómodo como quê? Como tu quando não arredas o traseiro do assento? JET LAG - Não. Incómodo como quem não consegue ficar quietinho na cadeira. Topas? Mas até o lavar dos cestos, ainda é vindima. Há muito quem lhe queira limpar o sebo. CHECK IN - Tu, por exemplo? Digamos nós, tendo em vista esta nossa... esta nossa... JET LAG - Não, nós não limpamos o sebo. Nós engordamos os porquinhos na pocilga. Topas? Somos mais subtis...! Trabalhamos na sombra e fazemos as coisas às claras. Ou seja: temos tanto descaramento que dá ares de ser impossível fazermos o que fazemos. Topas? O nosso jogo é tão sujo que parece limpo. If you can't beat them, join them... CHECK IN - Não falo inglês. Estás careca de saber que não falo inglês... JET LAG - Se não podes vencê-los, junta-te a eles. Ah, e já agora, o inglês não existe. O que existe é uma língua de aeroporto, como dantes existiam línguas de marinheiros. Mas isso fica para o próximo briefing. Agora temos que nos concentrar na questão do baile e de quem manda nele. O baile mandado das manifes e dos motins tem muitos mandadores. Desde o bófia com muitas crias para alimentar ao magala que quer dar uso à arma que deus lhe deu, passando pelo ministrozinho corrupto e pela alta patente do exército. Sem falar dos nossos contactos mais... mais directos, digamos assim. Com essa tropa fandanga, não se olha a meios para atingir fins. Ou seja: nem se poupa no suborno, nem se poupa na cobrança. Topas? Depois, como em qualquer empreendimento capitalista que se preze, a multiplicação de intermediários é, ao contrário do que os ingénuos ou os principiantes como tu pensam, uma regra de ouro. Aprende que eu não duro sempre. CHECK IN sem convicção - Tu és um gajo horrível...


JET LAG sacudindo uma migalha imaginária - Não. Eu sou um gajo só muito sofrivelmente horrível. Ou horrivelmente sofrível. Piscando o olho. As you like it... Meu caro amigo, se há muito para ganhar, é preciso que haja muitos a meter ao bolso. Faz bem à economia do país. E mantém os níveis de pobreza em patamares de razoabilidade que tornam os indígenas altamente operacionais. Um «marché porteur» - como dizem os cínicos dos franceses - é um mercado em que a esperança de lucro progride na razão directa da dependência das expectativas semeadas. Semear para colher. Velho como o mundo. Ou quase. CKECK IN - Eu não sou velho como o mundo. JET LAG soltando uma gargalhada - Mas sou eu. Bem: para bom entendedor, acho que basta. Agora quero o meu chá. Preto. Com torradas. De pão escuro. E compotas. De gengibre e de laranja amarga. CHECK IN - Quanto me pagas para eu ir num pé e vir no outro? JET LAG - Há alguma coisa que te falte? CHECK IN - Nada. Mas também não me sobra nada. Topas? JET LAG - Ouve lá, meu cabrãozinho, eu trato de ti com mais carinhos e cuidados do que trataria de um filho. CHECK IN - Pois é. Mas eu já dei para esse peditório de ser filho. E, tendo em conta a mãe que me pôs neste mundo e o mundo onde a minha mãe me pôs, acho-me no pleno direito de ser um filho da puta. Se é que consegues perceber este meu... briefing. Bastante mais curto do que o teu, não sei se reparas... JET LAG - Eu fiz-te uma pergunta: o que é que te falta? CHECK IN - Ar. JET LAG - O quê? CHECK IN - ... AR... AR, porra! JET LAG - Dás-te mal com o ar condicionado? CHECK IN - Dou-me mal com estar aqui fechado. E condicionado também. Podes achar que o ar é o menos. Mas não é. Pausa. Já olhaste para ti ao espelho? JET LAG - Não gosto de espelhos. Para esses dos sanitários de aeroporto, que são quase de corpo inteiro, nem me atrevo a olhar. Tenho sempre um certo receio que o gajo à minha frente, tão igualzinho a mim, saque de um revólver e me faça a folha ali. Odeio a ideia de morrer numa casa de banho muito branca com sangue a escorrer por todos os lados. Retomando fôlego, como se tivesse dificuldade em manter o ritmo da conversa. Mas ouve lá, como é que um vendedor de meia tigela, um gajo que passou a vida a contar porcas e parafusos, um gajo que só viu a vida pelo buraquinho da fechadura, me vem agora com queixas do género qualidade do ar que se respira e outros defeitos do ecossistema...?


CHECK IN - Hoje... hoje não me apetece lidar com a tua conversa inteligente. Apetece-me assim coisas mais terra a terra. Uma conta aberta em MEU nome. Para não andar a correr de um lado para o outro com cheques e cartões e afins. Topas? É que eu tenho estofo de vendedor e muito pouco jeito para moço de recados. Pausa. Eu também sei brincar com as palavras. Se queres o teu chá bem preto... não me faças a vida negra. Pausa muito breve. Por exemplo. Cai um silêncio sem saída. CHECK IN, ostensivamente «activo», arruma os sacos multicolores acumulados à volta do sofá. A dada altura, desencanta um saco preto, enche-o com detritos vários e restos de comida, fecha-o com um nó bem apertado e dirige-se a passos decididos para fora de cena. Enquanto isso, JET LAG semicerra os olhos e mantém-se imóvel, como que expectante e esmagado pelo cansaço. CHECK IN não tarda muito a regressar, sorridente e de mãos vazias. CHECK IN - Armaram um estendal do caraças no rés-do-chão. Chi... o que ali vai não vai em Roma. Devem estar à espera de alguma personagem importante: um político, uma estrela pop, sei lá. JETLAG abrindo um olho - Julgava que tinhas ido ao chá. CHECK IN - E fui. Mas nem Ginger, nem Fred, tás a ver... Encontrei o bar está fechado. A cortina corrida. As luzes apagadas. JET LAG - Irra...! Um gajo gasta fortunas para ter direito a um serviço em condições e estas bestas fazem semana inglesa. Que dia é hoje? Já não sei a quantas ando. CHECK IN - Sábado. Pausa curta. Talvez estejam em greve. JET LAG - Greve...? CHECK IN - Greve sim. Greve. Cessação da actividade laboral. Caderno de reivindicações. Patrões à rasca. Ricos à nora. Topas? Sabes tanto da Líbia, da Namíbia e da Bolívia e tão pouco dos costumes da tua terra...! JET LAG - Quem te disse que esta é a minha terra? Minha será a terra que me há-de comer. Não é? E essa será partilhada. À força. Donde a minha fome e a minha vontade de comer. Silêncio. Vá-se lá saber porquê CHECK IN, quase meigo, agarra na mão de JET LAG e, com a mão que lhe sobra livre, dá-lhe umas palmadinhas em jeito de consolação. CHECK IN - Não gastes o teu latim. Eu já percebi uma coisa, pá. Tu sabes muito menos do que dizes. Por isso é que não te calas. JET LAG irritado - Não te excites, rico. Talvez não tenhas razão. Não é que eu queira ter a razão do meu lado, mas a verdade é que, queiras ou não queiras, tu, pelo teu lado, és a menina deste namoro. Estou-me a cagar para a cena entre as coxas, como já deves ter reparado. Mas já vivi tanto, tão bem e tão mal, que até consigo fazer o teu retrato quando fores cinquentona. CHECK IN - Chuta. Enquanto palras, não pensas em enfardar. Vá, chuta lá. JETLAG como se visualizasse o que descreve - Pouca ou nenhuma barriga. Muita consciência dos limites da decência. Esses limites confundem-se com a arrumação dos órgãos dentro do peito. Mamas espalmadas ou repuxadas, ele é consoante os dias. Pagas as contas a meias com os amantes


quando a bandeira lhes fica a meia haste e, com os outros, não há bolsa que lhes baste... Uns farrapos caros e brocados de imitação. Coisas novas a parecerem em segunda mão. Sempre a favor dos animais, principalmente dos mamíferos e de algumas aves canoras. Mas sobretudo sonhas com a cissiparidade porque achas que o género humano tem de se deixar de parvoíces... CHECK IN - O que é isso de cissiparidade? JETLAG douto - A cissiparidade bem... é... será, julgo eu, o futuro da espécie. A reprodução assexuada. Uma espécie de último limite. Quanto mais se fala de corpo, menos amor se tem à porcaria que também é filha de deus. Portanto... há que inventar um dispositivo... uma autonomia... que permita a cada um dos sexos ignorar o outro quando se trata de procriar. Claro que a coisa é um tanto cómica. Ou irónica, estás a ver... Porque os peritos têm vindo a reconhecer que os sexos andam longe de ser opostos. CHECK IN - E é assim que tu me vês? Menos oposto...?! JETLAG - Completamente. CHECK IN - Completamente como? JETLAG - Completamente como nós nos completarmos. Não por nos completarmos, mas por estarmos mais completos só por estarmos um ao lado do outro. CHECK IN - Tu és completamente louco. JETLAG - Não. Sim. Um pouco. Graças a ti. Não é? CHECK IN - Tu estás completamente senil. JETLAG - Sim. É para isso que te pago. CHECK IN - Se é para isso pagas pouco. JET LAG abana cabeça como se não se dignasse responder. CHECK IN - Ouve lá meu: eu não tenho que te aturar. Estamos aqui, ao lado um do outro, mas isto é uma situação completamente passageira. JETLAG - Completamente. Dois passageiros, algures, num sítio onde se descola e se aterra. Num sítio de passagem. CHECK IN - Achas mesmo que dominas a cena, não é, meu patrãozinho de merda? JETLAG - Não. A cena não é essa. Eu não domino tudo. Eu não domino nada. Posso contemplar sim, é essa a palavra, contemplar - o tudo nada que não domino com a máxima ignorância e a máxima indiferença. Suspira. Tirando o chá, claro está. Exceptuando o chá, acho que me estou a sair bastante bem. Dentro daquilo que uma saída pode ser. Uma saída de cena, estás a ver... CHECK IN - Estou: primeiro acenar-me com sonhos cor-de-rosa. Agora fazer-me a vida negra. JET LAG - Um chá preto não é uma coisa assim tão negra, vai-te lixar...


CHECK IN - Talvez. Talvez a gente se lixe, assim. Quem não se lixa não petisca. Mas negra negra, só quero ver a tinta da tua assinatura. JET LAG suspirando muito profundamente - Aiii... a maior desilusão... A maior desilusão, se queres que te diga, é tu não me estares a desiludir. Cola tudo. Tudo cola a tudo. CHECK IN - Não me fales por enigmas que eu deixo-te a falar sozinho. JET LAG - Tudo cola. Ou seja a tua timidez e a tua ganância. A rã virou boi. Bem, não foi do dia para a noite. Foram precisas várias noites a marinar neste caldo de cultura, estás a ver... CHECK IN - A ver não. A ouvir. JETLAG - És... és comovente. Esses olhos jovens e cansados. As olheiras ficam bem à gente nova. Esses olhos maiores que a barriga. A gente pobre não se quer obesa. Essa agitação de mãozinhas à volta das minhas contas bancárias como se o mundo mudasse por mudança de proprietários. Os pobres não se querem agradecidos e até nem parece mal quando passam a parecer-se com os ricos. És comovente. Apetece-me tranquillizar-te. Mas para já não. Ainda não é tempo. CHECK IN - Não preciso de tranquilidade. De tranquilidade estou eu farto. Farto de esperar pela hora em que o sono me vence. Porque um gajo aqui já não sabe nem de horas, nem de que terra é. JETLAG - Que angústia, pá...! Onde queres ir com tanta pressa? Onde queres ir que eu não te possa contar? Onde queres ir que eu não conheça? CHECK IN - Onde quero ir? Mas não é suposto irmos tratar dos teus negócios? A esta hora não estás a perder milhões, caralho? JETLAG - Milhões? Não te imaginava tão preocupado com os meus milhões...! E depois, ouve o que te digo, mais milhão, menos milhão, que importa? Bagatelas. Ninharias. Os milhões reproduzem-se sozinhos. Assim. Sem mais. Se a gente não os vigiar muito, os milhões reproduzemse. São como os bichos. Procriam melhor em liberdade do que em cativeiro. CHECK IN - Tu estás passado, meu... JETLAG - Eu diria o contrário. Pausa. Ou não? CHECK IN não responde. JETLAG acende um charuto, como se tivesse uma vida inteira para esperar pela resposta. Que tarda. Mas vem. CHECK IN - Posso ser mais lento do que tu. Posso ser menos viajado. Menos sabido. Menos conhecedor. Menos finório. Menos fino. Mas já te topo à légua. Já te manjei, meu. Sem ter de ir a esse cuzinho feito para viver sentado. A cena é: tu queres contrariar-me. Cada coisa que eu digo, zumba, tens de me humilhar. E tens resposta às avessas para tudo. Só que agora acabou-se a batota: o jogo mudou. JETLAG - Em quê? CHECK IN - Não és tu que dispões da minha vida. Assim, ao calhas. Consoante te dá. JETLAG - Passas tu a dispor da minha?


A luz baixa violentamente. JETLAG e CHECK IN ficam na penumbra. Ouvem-se sirenes da polícia e anúncios longínquos. CHECK IN - Não. Querias, não querias? Eu não sou assim. JETLAG - Assim? CHECK IN - Sim, assim. Estou farto de sonhos. JET LAG - Pois, pois... Ainda há uns dias, juravas a pés juntos que sonhar é bom e basta. E aceitavas ser tratado como gado. A questão é que mal se tira uma cabeça do rebanho, mal se isola essa cabeça da massa anónima, ela põe-se logo a espernear. Entre espernear, como quem respira pela primeira vez, e dar coices ao dono, como quem cospe no focinho do destino, vai apenas um pequeno passo. Um só passo e o passado passa a ser mais que perfeito... Olhando para CHECK IN. Está dado. Está feito. Seja como for, tu tens mais queda para feiticeiro do que para aprendiz. O que só confirma o meu bom gosto. Ou o meu faro, melhor dizendo, já que tratas como um cão. CHECK IN - Blá, blá, blá... Eu tinha entrado no tema das assinaturas... JET LAG - E entraste bem. A matar. É um belo tema. Ladrando e uivando. Auuu. Auuu. Auuu. Au. Au. Au. Grrr... Grrr... CHECK IN - Que engraçadinho, o cota. Não posso continuar a... assumir este papel de... executivo sem ter acesso directo às tuas contas. JET LAG faz menção de querer interrompê-lo. Não me interrompas que eu perco a paciência e o fio à meada. Tenho aqui... Saca de uma pastinha dissimulada no meio das muitas embalagens em seu redor. Tenho aqui os papéis que me forneceram no balcão da agência. São meia dúzia de assinaturas e um chá para brindarmos. JET LAG peremptório - Não é preciso. CHECK IN perdendo as estribeiras - É preciso. Não percebes ou não queres perceber? JET LAG - Não. CHECK IN - Não como, caralho? JET LAG - Não é preciso. Não quero perceber. CHECK IN - Não queres colaborar. JET LAG - Exacto. Assim é que é falar. Que vocação!!! És mesmo uma ave rara... Pausa. Eu já fiz o que tinha a fazer. CHECK IN - E eu? Não posso fazer a minha parte? Deste-me asas para eu voar e agora cortas-me as vazas? JET LAG - Era o que merecias. Não por seres ingrato. Não por seres um chico esperto. Não por seres um crápula. Mas por seres burro. CHECK IN, de cabeça perdida, despeja um saco do lixo na cabeça de JET LAG que, impávido, não se defende.


JET LAG polvilhado de cascas, cinzas e migalhas - Irra, és pior que uma criança...! Raios partam os meninos de coro! Vais ter de controlar esses nervos, se queres durar tanto tempo como eu na mó de cima, pá. E olha que eu sou um doce comparado com os capitães do comércio e os generais da finança. Nunca te faltei com nada. Nunca faltei à palavra dada. E até me tenho vindo a antecipar, não achas? É encantadora esta maneira que eu tenho de adivinhar os teus desejos, não achas? CHECK IN - Não, não acho. Acho que só falas para adiar. Adiar não sei o quê, mas adiar... JET LAG - É a minha maneira de apreciar a tua companhia. CHECK IN - Eu não quero ser apreciado. Para isso já me bastou a conversinha de caca do chefe e do patrão e da mulher do patrão. Todos muito bem na vida, claro está. Tão bem que não lhes custava nada «apreciar» o empregado. Até lhes dava prazer ver-me a vergar a espinha, estás a ver... Eu era um empregado muito apreciado. Irado. Não, não quero ser apreciado. Quero ser compensado. Recompensado. Ver o que não vi. Ter o que não tive. Ser o que não fui. JET LAG - Mas isso não depende de ti, não é? CHECK IN - Não depende...? JET LAG - Não, não depende. Por isso é que houve convulsões e revoluções, meu querido. Que até saíram do pêlo dos gajos que andavam descontentes. Dos gajos que, às vezes, raramente é certo, fizeram a folha aos patrões. (Suspira.) Ai, tu ainda tens umas coisinhas a aprender. Infelizmente, não vai haver tempo para tudo. És um precipitado, meu querido. CHECK IN - Não me chames querido que eu perco o que me resta de respeito por esses cabelos brancos e vou-te ao focinho. JET LAG com grande serenidade - Sabes, o verbo «pedir» devia ser banido. Pura e simplesmente banido. A pedir não se vai a lado nenhum. Nem mesmo com chantagem à mistura. CHECK IN - Mas tu prometeste-me... JET LAG - Prometi mundos e fundos. E tu correste atrás das promessas. És quase um corredor de fundo. Mas ainda te falta a última etapa. E a mim falta-me ver-te correr mais um bocado. Para calcular até onde vai o teu fôlego. JET LAG sopra uma baforada de fumo de charuto para as trombas de CHECK IN. Depois esborracha lentamente o que resta do charuto num prato sujo. CHECK IN - Crápula... JET LAG - Com muito gosto. CHECK IN - Porcalhão... JET LAG - Ultimamente sim. Estes néons de aeroporto dão-me sempre a impressão de estar despido no sítio errado. Até a ideia de me lavar me custa, andando assim nu, à vista de todos. E também sofro de prisão de ventre. CHECK IN - É da merda da comida de plástico, porra! Foda-se, não te apetece sair daqui, meu? Eu, se me vejo fora deste lugar, até penso que é mentira...


JET LAG - Quem te ouvisse, haveria de pensar que estás inocente como a palma de uma mão branca. Quem te ouvisse... Por enquanto, tenho tido o privilégio de ser o único ouvido que te escuta CHECK IN - Que eu saiba, tens dois ouvidos. JET LAG - Tenho. Um para ouvir outro para adivinhar. Um para confiar, outro para desconfiar. É o que me vale. CHECK IN subitamente pouco à vontade - Desconfiar? Mas desconfiar de quê? Dizes que depositas toda a confiança na minha pessoa e no fim vens-me com dúvidas. JET LAG - Dúvidas não. Certezas. No fim, com certezas. É assim a confiança. Uma desconfiança artilhada de certezas. CHECK IN à rasca - E não queres ser mais claro? Por uma vez... por uma só...? JETLAG respirando fundo e sacando de uma pequeníssima arma escondida ao nível dos testículos - Vou-te dar um desgosto. CHECK IN com suores frios - Vais-me matar? É isso? É ISSO? JET LAG passando a mão livre pelas costas de CHECK IN -Calma, meu menino, calma. Nem todos os papás são papões. Segura-me esses cavalos. Fazendo girar a arma com as duas mãos. Julgas mesmo que eu ia ter esta trabalheira toda para te limpar o sebo? Julgas? Realmente, a tua ingenuidade está onde tu nem imaginas que possa haver ingenuidade. Eu sou um gajo capaz de abater a sangue frio, meu menino. Não preciso de parlapatice e falinhas mansas para eliminar quem me faz frente. CHECK IN um pouco menos tenso, mas sem saber o que pensar - Então o que vem a ser sacar de uma arma? JETLAG - Isto? Ora, isto é um brinquedo de senhora. Comprei-a para ta oferecer. E estou a oferecer-ta, neste preciso instante, porque, para além de generoso, sou um sujeito previdente. No ponto em que isto está, tenho que tomar medidas. Aprende esta liçãozinha. Quase derradeira. Tomar o pulso e, logo a seguir, tomar medidas. CHECK IN - E qual é o ponto em que isto está? JET LAG - Está no ponto de eu não dever piorar o meu caso. CHECK IN - Pára lá com as tuas charadas, pá. Que caso é o teu? Não vejo caso nem coisa nenhuma, caralho. JET LAG - Vou-te dar um desgosto. O derradeiro. Soltando uma risada. Enfim... quase. CHECK IN - Então dá lá. Dá lá o desgosto de uma vez por todas que já gastaste o teu tempo de antena. E eu quero ir tratar das assinaturas JET LAG pausadamente - Está tudo numa pasta. Debaixo do teu sofá. Cheques, cartões, vistos, procurações. Algumas chaves. Alguns mapas. Uma folha de indicações que deves seguir à risca se


não te queres lixar. Tudo. Direitinho. O papá pensou em tudo, estás a ver. Tratou de tudo. Enquanto tu dormias as tuas sestas, meu menino. CHECK IN desata a chorar. Uiva baixinho como uma bicho ferido. A luz volta a baixar. Os uivos de CHECK IN recortam-se na quase escuridão. JET LAG desolado - Bem... eu avisei que te ia dar um desgosto. Estavas com fogo no rabo... Pausa. Vá... Agora pára lá com a choradeira. Eu sei que já estás arrependido. Mas não queres propriamente que eu me arrependa, pois não? Pausa. Pois não? CHECK IN fungando e olhando-o de esguelha - De quê? JET LAG - Ora, ora... De tudo. Disto. Deste campo de férias. Da passagem de testemunho. CHECK IN hesitando em olhá-lo de frente - Tu estavas sempre a dormir. Ou a comer. Não mexias uma palha. Até para ires mijar e lavar o focinho era um dia de juízo. Pausa. Quando, meu Deus, mas quando é que tu trataste dessa merda toda? JETLAG - Nunca ouviste dizer que o mal não dorme? CHECK IN - Tu roncas como uma avioneta, caraças! JET LAG - Velha. Uma avioneta velha. Pausa breve. Fora de brincadeiras: durmo menos do que imaginas. Sobretudo menos profundamente, estás a ver. Tu, em contrapartida, quando finalmente deixas de resistir, é tiro e queda. Como um anjinho. Quem me dera, pá, quem me dera... Portanto, enquanto tu dormias houve pano para mangas. CHECK IN - Tu não existes... JET LAG - Pouco. Existo pouco. E não é por fechar os olhos que durmo, estás a ver. Silêncio pesado e relativamente prolongado. CHECK IN tenta recompor-se. O que não é fácil. JET LAG fita a biqueira dos sapatos. JET LAG - Vamos abreviar. Resumir. Espremer o sumo e deitar fora a casca e o caroço. Tu vais ser um Judas perfeito. Perfeito. Com a vantagem de que eu sou bem mais rentável do que um profeta. Valho muito mais de trinta dinheiros e tu sabes disso. Enfim, calculas. Calculas por alto. CHECK IN - Como é que... Eu não consigo entender como é que...? Foda-se! JET LAG - Não faças as perguntas erradas. Como não vem ao caso. CHECK IN - O problema é que... Neste momento, eu já não... Eu já não posso JET LAG - Tu já não podes mudar o curso natural das coisas. Pois não. Nem queiras. Porque eu não quero CHECK IN atónito - Não queres? JET LAG - Não. Bate tudo certo. Gostaria de ter tido um prazo... um prazo um bocadinho mais alargado. Mas a juventude é assim mesmo: muito fogo no rabo e o tubo de escape totalmente desentupido. Admirável.


Silêncio. JET LAG ri sozinho, sem soltar o menor ruído. Como uma máquina de rir de si próprio. Muito bem oleada. JET LAG - Peço imensa desculpa por te lançar às feras. Com este mínimo de instrução que te dei, vai ser dureza. Peço desculpa por não poder dar-te um certo apoio logístico nestes primeiros tempos. Mas eu sou um gajo prudente. Cada um por si, já que Deus costuma estar por tudo e só raramente está do nosso lado. CHECK IN - Tu não existes. Numa altura destas, ainda continuas a gozar comigo. Como se eu fosse uma marioneta nas tuas mãos. JET LAG sorrindo - Ao menos é um jogo de alto risco. Não é jogar às escondidas que é o que tu tens andado a fazer, meu menino. CHECK IN - Eu não sou TEU. Nem menino. E estou aqui a dar a cara JET LAG duro - A vender. Sejamos correctos e rigorosos. A vender. A cara em troco da coroa. Não ficas a perder. Digamos... digamos apenas que suportas mal a forma como a verdade te transforma a olhos vistos. Te corrompe para além das tuas expectativas. CHECK IN - Que verdade, porra? Agarrando JET LAG pelos ombros e sacudindo-o violentamente. Tu mentes como respiras. Que verdade? JET LAG - A minha verdade, pá. A verdade mentira. A MINHA verdade é com a verdade te engano. Num tom ultrajantemente delicodoce. E pára de me abanar que eu sofro do coração. Faz o que tens a fazer mas que seja limpo. CHECK IN levantando-se - Não sei de que estás a falar. Eu já fiz o que tinha a fazer. E estou de partida. JET LAG - De partida? Tentando disfarçar a surpresa. De partida, sim, de partida, claro está. Mas ainda estás sob contrato. às minhas ordens, por enquanto estás às minhas ordens. ECHECK IN - Explicas isso à polícia. Eles vão pintar não tarda nada. Tens a vida a inteira para explicar aos senhores guardas os termos do nosso contrato. E também lhes podes dizer por que motivo te meteste nesta... digamos nesta alhada. Parece que eles têm bons métodos para soltar as línguas. JET LAG agastadíssimo - Ó pá, tu não foste fazer essa cagada. Eu não acredito que foste fazer essa cagada... CHECK IN - Não? Mas, olha, podes começar a acreditar. Dias e dias à espera que me explicasses o motivo, caralho...! JET LAG -Não sejas grosseiro. CHECK IN - O motivo, santo Deus. O motivo. Ninguém contrata secretários num aeroporto. Ainda menos guarda-costas ou damas de companhia... JETLAG - Pois não. Mas eu não tinha alternativa. Se sair daqui, caio nas garras de torcionários. Não são carrascos, são torcionários. Gajos a quem até a morte se arranca a ferros. Suspirando. Mais


uma vez, estás a ser burro. Ofereci-te, com toda a delicadeza possível, um brinquedo que serve para te livrares de mim da maneira mais limpa. E tu entregas-nos à polícia? À polícia? CHECK IN - Correcção, professor: entrego-TE. JET LAG veemente, quase exaltado - NOS. Eles não têm a minha largueza de vistas. Se eu pagar, pagamos ambos. E pela medida grande. CHECK IN - Está tudo tratado, professor. És um gajo muito torto. Mas és um professor do caraças. Entrego-te com a garantia de poder ir à minha vida. Enfim, de poder ir à TUA vida. Estás ver? Breve pausa. Estás, tenho a certeza que estás. Lembras-te do briefing acerca dos timings...? Agora sou eu que tenho pressa, estás a ver? CHECK IN procura encontra a pasta debaixo do sofá. Dá um jeito na écharpe e no cabelo. CHECK IN virando costas - Ainda por cima não gosto de despedidas. JET LAG - Mas CHECK IN - Não sejas assim tão... impaciente. Avançando para fora de cena. Eles prometeram ser pontuais. CHECK IN afasta-se. JET LAG, praticamente às escuras, acende um charuto. Aspira sonoramente uma baforada. Como se suspirasse. JET LAG gritando - E um beijo? Vais-te embora sem me dares um beijo? Pausa. Depois, como que falando para si. O meu beijo? Quero o meu beijo.


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