TUTANO A roleta do sol só ilumina números ímpares. Sua luz não autoriza o acasalamento dos olhares. Quem esculpia com a língua sabia que a língua era de pedra. Quanto engano no seu saber e quanta dor na pedra. Cheira bem o afã dos choupos casados com a água... Mas nem por isso deves voltar ao lugar onde te perdeste. Pois de muito perto assistirás ao espectáculo da árvore fulminada pelo próprio olhar. Bedtime story Só tu não acreditas no que vês. Só tu não acreditas no que não vês. Espetas a faca no pão e ficas a comentar a sua posição. Nono Cresce o prato limpo em soberania e o branco da lua dentro do negro buraco. Não chames luar a este meu fraco. Antes de perder as estribeiras deixei de ver o cavalo. Hoje ouvi a palavra inocência de outra maneira.
Utopia piegas Nesse dia descobriria de que lado começaria a morrer e nesse dia decidiu de que lado começava a morrer. Estava escrito no seu corpo que as montanhas venceriam os medos. Pressinto que se abrir esta porta o mundo será mais antigo. Sacudiu o pó do capote e beijou a terra. Disse: "Põe-te mesa!" Mas a voz já não era sua. A pacificação dos dedos Eu apenas desenhei a quarta parede do incêndio. Era estrangeiro. Estava sentado no chão como na palma de uma mão e brincava com os pés: imitação de imitação de imitação. Esquecer os gestos do vestir e do despir: afogar-se na roupa asfixiar na nudez.
Bout Aquilo que a estrela garatujou no céu e em seu ciúme era vazio como o primeiro pensamento. Corpo a bater à porta vestido de cinzento. Nem letras se liam nas rugas nem bocas nas linhas e no calor dos dedos todos os números derretiam. Ningué se recompõe do susto de ter nascido. Dead end Perdi uma ferida no caleidoscópio e uma palavra no calaboiço. Busquei o que sem mãos me ofereceste: apenas se vê ao perto apenas se toca ao longe. Idade do Ferro Tu desenhas eu desejo e o mar lambe a presa depois de ter tentado devorá-la. Histórias do pai sonho e da mãe realidade Aqueles cuja pena se enganou espetada no coração em lugar de flecha são discípulos do amor; buscam beatas numa praça deserta e fumam-nas pelos cantos como quem demora a chorar. O desejo que os faz tremer também os torna desconhecidos no meio de desconhecido.
Procura a hora em que a aurora semeia amor aos teus pés e a sereia despe a cauda e os morde até morrer fora de água. Figura de urso Existe uma cidade escondida e uma cidadania em expansão. A primeira estudará os textos que a segunda grita tirando e pondo a mordaça ao tempo que passa. Necrópole Enrolem-se os tapetes e comece a dança dos diabretes. Cortem-se as casacas gravatas e flores de enfeite. Que da escrita reste apenas algo de putrescível para nosso uso e deleite. O corpo range como a porta amiga antes da casa se fechar e se deixar derrubar. O corpo rangerá como a porta que os obriga a entrar. A casa poderá então fechar-se e ruir.
Bad time story A nova estrela não se habituou à escuridão. Dividi e vi? O corpo dividiu-se em formas de ver e por isso não perdeu a fala. Na alma era o dia da dança de salão e nenhum par se atrevia a olhar para o chão. Tubo de escape Que o prazer me mate não é novidade. Nem novo o prazer nem certa a morte que ele promete. Sorriu por entre dentes cariados como uma criança à solta num supermercado como essa criança a soldo do diabo. Aquilo que não derruba os ninhos nem traça os caminhos Aquilo isto nunca e agora visto dorme sem pesar na almofada. Quando pensares com os pés e caminhares com a cabeça ficarás mais perto da realidade mas não a realidade de ti.
Café Central A tempestade engole o último soluço como peçonha sua e os suspiros são servidos em chávena fria. Há um cheiro a dinheiro mal gasto que me faz companhia. ObsCena no purgatório Olhou para o muro tão atentamente que no fim de olhar o muro ainda lá estava e o mundo também. Não sabia de que lado pendia a saia e em que íntegra parte os olhos trocavam de papel com quem os fitava. O que está para vir mora na barriga prestes a explodir. Encosta a orelha e vem ouvir. O direito de cada um ao estado de choque à beleza ingénua indigente inócua inútil ilesa ilícita e às aulas de pontuação.
Linha de partida Três vezes por dia às refeições declina-se o convite. Entre dois lugares à mesa o passado faz-se convidado. Linha de partida Partilharás os livros com ratos disfarçados de mulheres. Partilharás as refeições com mulheres transformadas em ratos. O resultado de tanto rires foi que o rumor da própria água te soou a falso e o monte te pareceu um cisco no olho dum gigante. De que te serviu saber que a preguiça das presenças nada prova? O capuchinho vermelho não sabe se corre para escapar às garras do lobo mau às garras dum bom livro ou às garras da felicidade. O saber não sabe à mesma coisa em jejum.
Escaramuça Correr correr com a perna inchada de amor. Ser a ovelha branca e feia que tira o sapato na primeira fila da plateia. Obrigar os vendedores de verdade a darem a mão à palmatória. Ser falsa como o perfume de uma boa história pois nada resta que se venda excepto a memória. Dizer tudo À pedra que se solta da muralha chamamos testemunho; e ela a pedra fala a língua que eu estudo. Com a sua licença digo quase tudo. 2. Os cães erram junto à cerca do cárcere e o sol nasce rente ao chão movido pelo desejo poente. São São palavras com a cabeça a preço pequenas manchas a alastrar. Ditas alto fazem rir mas baixo fazem corar. E são bichos que atravessam a estrada na noite da longa mamada.
Um anjo com careta de macaco não subiu ao céu donde caiu. A cada sorriso sua estação e a cada pedra sua interrogação. Para ires onde vou não precisas de caminhar. Eu também não me viro para trás quando quero saber donde venho. Arca de Noé Entre o meu e o teu olhar não há um caudal nem uma palavra completa. E o próprio ar é um cárcere onde o corpo cativo não desperta. Colhi os sinais da terra e vendi-os aos vendidos. Eram lapsos de luz rabos sem lagarto rabiando, falando de boémia rabiando, falando de abstinência e do que morre em nós depois da urgência. Primavera no Pátio Depois da tempestade de estuque os dias começam a aumentar e no bosque mental despertam obscuras rainhas africanas. Quatro cães maltratados tiram a limpo o meu caso: com os olhos estou mais perto e com as mãos aperto... Depois da tempestade de cuspe os dias começam a medrar
e no bosque em carne viva há moiras encantadas e moiras de trabalho. Na cave arranco a cabeça e no sótão a alma dos sapatos. Plantaste no céu todas as estacas zero. Depois dançaste sobre as campas e cada passo media uma distância que já não existia. Dançasta agarrado a uma ideia antiga ou a uma mulher nova. Largaste mão de mim mas eu segurei-me aos teus pés e fiquei pendurada no céu ao contrário ao contrário. Não fomos feitos um para o outro. Fervemos em pouca água pouca mágoa. E voltamos ao degrau escorregadio onde fomos estragados de mimo. Ao degrau polido onde nossos pais nos abandonaram quando eram jovens e nós éramos velhos. Rolámos pela escada de opala ou ficámos a mendigar uma esmola de pólen ou apenas a pedir que dissessem mal de nós e nos deixassem sós. Não sei se a casa estava fria ou a cabeça cheia. Mais vale uma mão vazia do que uma ideia.
Retrato-robot Vim tão depressa que ainda não estavas, meu amor. No teu lugar uma planta esguia crescida às escuras uma pérola a perder o oriente um buraco num muro muito quente. Robot-retrato E Deus poderia ser representado forte e bem alimentado como um animal reprodutor um bicho não se sabe se violado pelo desejo ou pela dor... Retrato-retrato Alguns falavam da educação pelas imagens e eu de como a palavra mar a certas horas lembra o ricochete das baleias ou o sol morto por uma bala perdida ou simplesmente a tristeza do sexo. Robot-robot Tenho vergonha do papel demasiado nu do dia demasiado branco e das pragas que rogo ao fogo como se as palavras fossem pontos cardeais e os meus inimigos meros sinais tu e mais tu e mais tu e tu cada qual no seu no seu canto antes de começar o jogo. Tudo muda de tempo tudo muda de estado. E nada a nada pode ser comparado nem mesmo a criança sangrenta à disputa duma tarde mais cinzenta.
O fim encontrado à pressa Uma coisa que se vê ao longe uma imagem que se perde quando nos olha de perto e vibra em nós como uma miragem doutro deserto. Sacrificámos o fim como um animal para o comermos e não nos fazer mal. Peixe sem espinhas, a tristeza refeição de velho... Não é preciso apetite para me abrir a boca nem motivo para acabares o prato em silêncio nem morte para estares vivo. Uma luz que faz os pássaros parecerem pintados no céu e a boca pintada na cara e todos os erros irreais. Não me olhes com olhos de quem viu o céu e fugiu de susto. Com lágrimas furtadas aos olhos dos vizinhos mal azul da porcelana verdes tormentos das pedras dos dias escuros sem noite das noites claras sem regra. As moedas tilintam no bolso do velho e a chuva diz algo que está certo trajo de gala mortalha alegre da rainha do deserto.
Qualquer coisa a sul Ficara na cama a dizer barbaridades com a eloquência dum bêbedo que não quer voltar para casa. Agora a forma é fugidia como a terra destapada estátua jazente dum delfim anfíbio. Fruto mirrado de árvore ausente. Dois homens vêm à fala na boca cheia da floresta. No inverno queimaremos as nossas paredes que tanto queriam ser de papel e lamberemos os dedos como gotas do último mel. Deixa-me, amor, ser osso e sê tu a carne do começo. E vamos de mãos dadas com o caos traçar círculos à volta dos objectos ou lançar corpos no charco. Depois iremos pescá-los com o mais belo barco. Um pássaro alisou a ruga do fato cinzento e caiu no céu como no duro fundo duma cisterna. Caiu como fio de prumo como pedra mágica primeira e eu soube a parede enquanto tu disseste as coisas sem rede. E se deus não der ao menos empreste.
Não quisera deitar-vos neste papel de hospital nesta cama branca que me cheira mal. Precisava eu desse instrumento que me deixa ver cadáveres em tudo o que mexe e a fresca angústia da infância em tudo o que já não cresce? De todas as águas a mais fresca é a que corre pela espinha abaixo aquela que apaga as luzes e acende a chama das plantas aquela que se verte gota a gota na boca de deus até ele morrer na companhia dos seus. Um corpo abandonado nem sempre evoca o areal de ouro onde deu à costa. O observador não sabe se o corpo está vivo ou morto. Um pequeno animal cãozinho, coelho ou castor vai lamber as orelhas do náufrago que estremece. E aí se decide se a história recomeça e qual. Se o olhar se corrompe se a cadeia de feras e esferas se interrompe. O espírito da noite como um imenso caracol segrega a sua concha e nela incrusta ideias e estrelas.
Longe da fonte longe da foz apenas uma vingança de águas frias e uma marcha de palmípedes fora do lugar. Bichos e mais bichos obrigados a voar. É este olhar que nos faz duros por dentro. Que nos faz lentes de aumento. Aqui entre nós que ninguém nos ouve Na distração das estações senti que algo em ti tremia como o papo duma pomba de fogo. Falavas da lei do desgaste e as penas caíam com gestos de chumbo e vénias de ouro. Saías da fartura dum celeiro e debicavas o grão raro e enterrado que se conta pelos dedos duma mão enquanto o ogre do inverno come a outra. Prepara-se um número de magia as luzes baixa para mal se ver e crescem as dores do poente. Uma mulher filiforme engole milhas de pentes e serpentes. Depois, ah depois é o mais belo: a casa de fogo conversa com a casa de papel. Quem não quer ser pastor não lhe veste a pele.
Os textos preguiçosos O corpo não pára para ouvir os cães que uivam à sua passagem. O corpo é assaltado por um exército de pequenos camponeses e pelo ritmo gasto dum sapateado. O corpo cresce para não caber para doer. Mas o corpo cabe onde não sabe. Dom da forma Atrás da grande porta que se fecha da grande boca que se cala a água escuta-nos e não o contrário. Pais de algibeira Neste silêncio talvez inquebrável talvez estilhaço duma antiga explosão as raízes do céu desprendem-se buscando talvez outro cativeiro. E os bichos brincam com os filhos mortos. Dente do sizo Corria, corria esbaforida e ninguém vinha atrás de mim para dizer: chegaste. E aquela que eu trazia no meu sexo sabia que se pode nascer e morrer dum sorriso. Que se pode cair mas não escolher para que lado.
Caminho com infinitas precauções para não despertar essa coisa que dorme e mexe para não acordar em mim o desejo de a despertar. Um pedaço de carne sempre comove mas o sangue é voz sem fala que diz tão-só aquilo que cala. Funções cessantes Trazido a mim o príncipe começou a depenar-se e eu olhei fixamente o alguidar como se o sangue me toldasse e o sol nascesse da minha retina mão negra que se agita antes de ser amputada mão branca-branca que repousa depois do amor mais nada excepto a rebeldia das cores. Atrás do som ouvi outro som. Atrás do corpo vi outro corpo. A noite caía e mais não fazia. Vê a rosa desabrochar em memória duma cor imperdoável. Esta não é a rosa mística a rosa míope. É apenas a primeira letra de um alfabeto desconhecido.
Abri a carta: um cheiro intenso a cavalariça e a estrelas de conserva derrubava os afectos construídos. E vi com os olhos do outro o trovão azul do cerejal e ouvi com os olhos da cegueira a verdade intacta e a mentira verdadeira. Despi-me à pressa dentro da tua goela. Depois enfunei como uma vela neste mar em estado de promessa. Matéria instável tem dó de mim quem bem me quer bem me quer mal me conhece... Um instrumento cortante precisa de ser afiado e o olho terá de se fechar antes de ser usado. Plantei um renque de ciprestes para cercar o teu sono. E um espantalho para o afugentar. Sol nascente O barulho da primeira água não se distingue do crepitar do fogo nem dessa voz que ordena que adormeças de novo sobre cama de escórias e de jóias. Ainda me lembro como o sol nascia no passado antes do início duma viagem ou dum sacrifício do corpo ou do mundo desde sempre condenado.
Nenhum atleta dá saltos no vazio. Para ser anjo não se deve treinar. Caixa de Pandora Puxou por uma ponta e tudo lhe veio à cabeça... O saber é vómito e toda a ciência tem o encanto exigente duma náusea. O mais difícil era não sair do sítio porque o espaço que ocupamos nos persegue. Somos o cão desse espaço cego e mendigo onde as ideias são luminosas e sem perigo enquanto ninguém as pensa. Voltface Se ficasses fechado numa cela que outro remédio terias? Um catre Uma cadeira Uma porta Uma janela. Ouvir o tempo e esperar o segundo sopro que corta as asas ao pensamento. Bebida infalível, pouca comida e uma silhueta de princesa dentro da lâmpada única fundida. As coisas falam sozinhas porque não podem arder. Também eu queria emitir luz própria. Que outras vidas desejo sem o saber?
Procuro o sinal que se alimenta do desejo de buscar e a órbita onde se sente que a terra muda de lugar. De tudo me satisfaço: foi algures dentro do meu coração que o sol nasceu de um banho de multidão. Esse mesmo sol apodreceu as rações de combate de uma guerra que não se combateu e derrubou o monte em cuja ara outrora declinara. Ele e eu. Depois da chuva tudo cresce irregularmente no jardim. E o sol ao nascer rasga a camisa dum homem feliz. Pedi à palavra que vigiasse a flor e à flor pedi que fugisse. Dei o braço a torcer e esperei sem merecer que a pedra fútil me sorrisse.
Sente-se na pele o segredo inseguro dos osssos e o silêncio capaz de colar as pétalas às horas de chorar todas as vitórias e de as contar como se fossem outras as histórias. Então a derrota parece sublime e cada sorriso um crime de lesa-vontade de lesa-verdade. Mas há uma máquina de ver tem mais dentes que o relógio tem mais dentes que a estrela é essa que te ofereço não por ser bela mas porque a beleza é indefesa. Sarça frígida Na mata das vaidades órfãos e mães jogam às escondidas. Corre um sopro tão leve que o castelo é ponte levadiça de um castelo de cartas mais vermelho. No bosque dos órgãos ligaram o coração da máquina ao mais pequeno arbusto. E é tão irregular o ritmo de cada despertar que a palavra sono se espalhou como um susto e já lambe os teus pés saudosos de sapatos de cristal.
Poente O sol doido cospe pevides pretas e o soldado afagado por dedos oleosos e olhares de bolor arrepia caminho. Parti. Combati na primeira linha duma guerra interior. Pequei por excesso e por defeito e acho que me enganei no fato pois este aperta-me no peito. Não parti. A estrada do desejo secreto a rota da outra pimenta e da carne lazarenta era parda e indistinta como uma farda. E o fogo de artifício rebentava nas mãos de quem o lançava. E a gargalhada morria na boca da sentinela. Corre um rio de saliva com uma ilha na lapela. Acena, acena a essa mulher tão bela enquanto é viva. Ó jóia perdida da coroa da terra Ó ponta do manto do céu se te olho nos olhos sinto descarrilar o comboio das vértebras. À nossa volta paira a pequenez sonâmbula e o próprio nome dos objectos. E à nossa volta gira um mudo carrocel com dois lugares vazios cativos lugares de luto no teatro dos vivos.
Enquanto eu esfregava os olhos e via o inferno, o sexo, o coração e o cérebro faziam uma corrida para ver quem chegava mais depressa a mim. Não sei se busco clareza ou claridade sentada num monte de sal caída num poço de sol. Pronto-a-sonhar E o vento em profunda vénia cheira a flor áspera dos pés. Passa a sombra côxa dum ourives... E toda luz se perde numa vã meditação. É certo que alguém vigia as estrelas quando elas sobem do chão e se tornam belas. Não canta o marinheiro mas conta até três... Alice absoluta A minha casa é um modesto cogumelo roído quase pôdre doce e quente como vinho novo num velho ôdre.
Alice obsoleta O meu amor antigo regressa a casa. Primeiro não me vê atravessa-me como se eu fosse luz duvidosa. Depois dá meia volta e vem a mim. Desfaço-me em lágrimas que o meu amor bebe sem sede nem medo. Por fim veste-me de gestos e eu sou borboleta obsoleta sou filigrana de ferrugem rainha adivinhada num truque de cartas. As árvores seriam os nossos antepassados porque inventaram a estação de pé e as casas a nossa descendência porque melhor do que o resto imitam o fervor da ruína. Nem o corpo nem a superstição sofrem de desgaste. Mas as sombras embora cansadas caminham à nossa frente. O prazo de validade O coração fala com a língua trilhada cinzento roedor preso numa ratoeira ou solto no caudal duma casa abandonada. Coração forja do metal mais frágil da palavra fácil Coração boca em busca de mão para escavar o escuro da toca.
Grande e pequeno Ergueu a cabeça para espantar os pássaros rivais e dormiu os sonos agitados e reais de quem não sabe onde dorme. Escreveu numa folha verde e trémula bela boca de um deus desdentado. Era verdade que o grande sonhador acordava com as pernas mais curtas e as costas mais curvadas. Podes agora entrar no cenário que eu tirei do meu peito pequeno armário. A criança pensa: vai chover. Quando chove as árvores fazem pelas pernas abaixo. Amamos mal, pensa ela bem mais tarde. Colocamos os nossos bem-amados sobre barris de pólvora; com coroas de vapores de gasolina lhes cingimos as frontes. Mas depois é no nosso coração que ateamos a chama. Antes que chova. A negra trovadora A trovadora preta tangia as suas trovas num pau de sabão macaco. Entre duas crises de lirismo cuspia olhos de peixe e mascava em seco até o mar lhe vir à boca.
Francamente há mais em que pensar quando a mentira não chega em primeiro lugar. Uma mulher a rilhar fruta verde por exemplo. É muda a ruína dentro da garrafa e sua mensagem escassa. Se o mundo emudecer e eu mudar de mundo que coisa dentro de mim continuará a ganir? Acordo com o cadá ver de uma ideia a meu lado; não posso desgrenhar a escrita se o morto morreu penteado. Ao leilão das mais belas penas assistem os pássaros defuntos. Rematam a beleza antiga como se fora um conjunto de defeitos. É preciso São precisas duas mãos para buscar a mão segunda e um olhar que exala um perfume de fim. Rasgo a bainha do vestido e encontro a mais fina areia quantos estios até tomar parte no vestígio?
Causa explícita A menina atravessa o mar em brasas. Só cai com a noite Só cai quando a noite a trai. Cães de outono Desossar a carne dos poemas para alimentar o animal do sono. Apenas. Por debaixo da gritaria oiço os esboços de tempestade dessa que limpa a sola dos sapatos antes de entrar em casa. Procuro o grito antes de nascer e só o encontro depois. O outro amor Fizeram amor como deuses isto é: com o olhar. Fizeram amor como criaturas isto é: às cegas e às escuras.