Um moralista

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UM MORALISTA Na presente estação cinematográfica, Nova Iorque está mais na berra do que nunca. Não só aqueles que a têm celebrado se juntaram para co-fabricar um filme — HISTÓRIAS DE NOVA IORQUE— como chegou a vez das comunidades, cuja existência só se (re)conhecia como cenário, tomarem a palavra: a comunidade negra, com DO THE RIGHT TH1NG de Spike Lee; a comunidade judia, com CROSSING DELANCEY de J.-Micklin Silver... O último filme de James Ivory pode muito bem vir a ser assimilado aos acima citados, tanto mais que aparentemente tem por objecto os mesmos espaços, os mesmos meios — o mundo da elite e dos artistas. Porém, as diferenças são flagrantes e o interesse principal deste trabalho reside no facto de retomar uma reflexão elaborada ao longo de toda a obra do cineasta. Enquanto os cineastas nova-iorquinos filmam, como é natural, os conflitos da cidade vividos «por dentro» -- estabelecendo por consenso que no mundo só existe uma cidade —, Ivory opta por um ponto de vista exterior, quase turístico — mostrando, complacente, a incongruência do campo de baseball à beira da ponte de Brooklin. O facto de o filme acompanhar o trajecto de uma personagem considerada inapta pelo simples facto de ser desadaptada e de reivindicar a «normalidade» como uma tara, permite aplicar esse padrão aos outros protagonistas cujo à-vontade ou dificuldade em navegar no mar de códigos esotéricos das práticas sociais (que pretendem fazer-se passar por arte) mas não são mais do que moda, parece simultaneamente artificial e de uma ingenuidade que roça o provincianismo. «Parece» é, neste caso, força de expressão visto que a preocupação que os devora é justamente camuflar as suas verdadeiras origens: acontece que são oriundos de fora da cidade («out» por oposição a «in»). A agressividade ostentada é um mero reflexo de defesa — cf. a cena da desinfecção do apartamento — que, por ser inconfessável, os condena. Ao demonstrar — a parábola de Ivory não é isenta de didactismo — de que maneira a fauna nova-iorquina forja o sistema de correntes que a escraviza, movida que é pelo desejo de ocultar e exorcizar a mediocridade que lhe é natural, normal — note-se que essa suposta mediocridade, quando assumida, pode revelar-se cheia duma criatividade naïve e barroca: cf. os chapéus da heroína —, o cineasta corre o risco de julgar. A utilização dos efeitos visuais (ecrã dividido) funciona aqui como um jogo para provar que a «in»ovação está ao alcance de qualquer um e pode inserir-se perfeitamente numa trama narrativa «normal». A atitude irónica pode ser superficialmente sentida como reaccionária se não atentarmos nas etapas anteriores do discurso sobre a civilização que Ivory tem vindo a elaborar de há 25 anos a esta parte. Um discurso cujo empenhamento ao nível ético nunca vacilou. Ivory começa por surgir como um americano instalado na Índia durante a década de sessenta. Conquanto tenha regressado ao Ocidente, não deixou de reafirmar a sua escolha de valores com HEAT AND DUST, em que a protagonista, ao seguir o rasto duma antepassada, descobre na Índia que a integração num modo de civilização pelo qual se sente fascinada e seduzida só depende duma capacidade pessoal de se libertar dos hábitos de pensamento que contrariam os desejos naturais. Em 1964, a complexidade de SHAKESPEARE WALLAH fora erradamente descrita como o choque entre duas culturas, quando o filme mostrava muito pelo contrário a sua identidade essencial logo que caíam os véus da etiqueta europeia — a digressão da companhia de teatro pela Índia baseava-se na compreensão profunda, para além de certos enganos superficiais de interpretação, dos dramas de Shakespeare pelo público indiano. Todos os equívocos no domínio do discurso desapareceram, aliás, com SAVAGES em que a parábola mostrava claramente o parentesco entre os ritos mundanos de uma cultura requintada e os que alicerçam a organização hierárquica duma tribo primitiva. Se o «modelo» indiano é apresentado como problemático e discutível a vários níveis — THE GURU, AUTOBIOGRAPHY OF A PRINCESS —, em contrapartida o discurso sobre os valores promovidos ou rejeitados pela «civilização» foi-se clarificando de filme para filme: a condenação desta última resulta numa auto-condenação devida a uma intransponível impotência (com todas as implicações de ordem sexual do termo) de deixar exprimirem-se as forças primordiais da vida — o prazer natural —, atenuada pelo facto de o combate individual no seio da civilização — melhor dizendo contra os seus códigos — poder saldar-se numa vitória — dificultada apenas pela vontade de ver o desejo (e a sua satisfação) admitido pela sociedade. A constatação é simples: a pretensão de se


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