UM YANKEE POUCO TRANQUILO A análise de Bourdieu e Passeron da transmissão de uma herança cultural pela instituição escolar (in La reproduction) pode ser directamente aplicada à difusão da informação — i. e. da ficção social — pelos meios de comunicação de massas; basta o «jornalista» obedecer às regras da profissão para obedecer, simultaneamente e por acréscimo, aos imperativos externos que definem a sua função de legitimação da ordem estabelecida, ou seja, para desempenhar a sua função social de reprodução das relações de classe (...) e, ao mesmo tempo, a função ideológica de dissimulação da primeira função fazendo crer na ilusão da sua autonomia. A imparcialidade jornalística é apenas d veículo de transmissão do consenso, .i. e. do discurso do poder, e a eficácia do jornalista, enquanto agente da ordem estabelecida, é tanto maior quanto acreditar sinceramente que a ética profissional o impede de exprimir as suas opiniões pessoais e os seus juízos críticos. A manipulação depende estreitamente da convicção dos seus agentes. A objectividade é a arma absoluta da manutenção de um estado social. Porém, existe outra tradição de imprensa, mais perigosa, que só se justifica pela concorrência e concebe o equilíbrio como resultado de tensões contraditórias e como um estado sempre precário e imperfeito: trata-se da imprensa «sensacionalista» e da tradição polémica da imprensa comprometida. O perigo reside muito precisamente na ausência de definição de limites dessa «deformação» sensacionalista ou extremista e na impossibilidade de controlar o impacto sobre o público — i. e. a justificação de uma tal concepção da «imprensa de opinião» assenta na confiança no discernimento do público, na sua capacidade de reacção e de crítica. As duas concepções correspondem a duas ideologias e dois modelos de sociedade: a livre iniciativa e a livre concorrência em democracia — modelo americano —, ou o funcionalismo ao serviço do poder central — modelo europeu, «democrático» ou socialista . Este último é sempre conservador, o primeiro pode ser revolucionário ou reaccionário, conforme os pressupostos ideológicos subjacentes à opinião. Samuel Fuller foi, como jornalista e cineasta, talvez o melhor defensor da concepção americana, assumindo a agressividade, a parcialidade, ou até a contradição. Por um lado, sempre foi anticomunista, por outro, severo crítico do desfasamento entre o modelo e a realidade da sociedade americana. Porque a defesa do sistema de livre concorrência assenta numa crença na igualdade fundamental dos homens, sejam eles índios, negros, arianos ou asiáticos. THE DARK PAGE — este argumento de Fuller foi realizado por Phil Karlson com o título SCANDAL SHEET — ou PARK ROW são exemplares para compreender a posição de Fuller, que determina tanto a sua escolha ideológica como o seu trabalho estético. O primeiro mostra um director assassino que leva até ao fim (até ao suicídio) a publicação do inquérito do seu repórter na medida em que a tiragem não pára de aumentar; o segundo descreve o nascimento de um jornal sensacionalista que começa por lançar a história de um apaixonado que se atira à água, transformando-o em herói, e acaba por conseguir a erecção da estátua da Liberdade. Nestas duas obras aparecem já claramente as constantes de Fuller: envolvimento e distância irónica, recurso sistemático à antítese e concepção da identidade americana como um nó de contradições. A consciência individual constitui o garante contra os erros da ideologia — consciência social —, mesmo quando essa consciência individual se engana (PICK UP ON SOUTH STREET em que a lealdade do traidor comunista o impede de ver que os seus chefes são assassinos) ou se eclipsa (SHOCK CORRIDOR, no qual a persistência dos erros/horrores do passado é assimilada à loucura: o homem do sul que revive Gettysburg, o preto que julga ser um líder do Ku-Klux-Klan, o sábio atomista que se refugia na infância). Reciprocamente, vários filmes descrevem a necessidade, para a consciência individual, de se libertar dos preconceitos — racistas em particular — da ideologia social (CHINA GATES, em que o soldado tem de assumir a paternidade do filho com olhos rasgados). Fuller começou por ser reconhecido na Europa, onde acabou por se fixar; ao acolhimento favorável por parte duma certa crítica europeia, não será alheio o facto de ele sempre ter interrogado o sistema americano enquanto modelo vigente há mais de meio século. Desde os seus primeiros filmes, interessou-se pela descrição da originalidade do modelo — princípio democrático desligado das tradições feudais (no seu muito curioso BARON OF ARIZONA, um colono reclama a herança de um estado inteiro); princípio da livre concorrência
capaz de afrontar os poderes do dinheiro e ameaçado apenas quando as regras do jogo são transgredidas (PARK ROW). Mas, pouco depois, Fuller passa a abordar o sistema americano na sua relação complexa com outros modos de vida — japonês em NO USE OF BAMBOO, índio em RUN OF THE ARROW, europeu em VERBOTEN, e, mais tarde, THE BIG RED ONE. Assim, o cineasta tanto mostra o duvidoso contributo — o gangsterismo e os seus métodos — dos americanos no Japão em, HOUSE OF BAMBOO, como o contributo positivo — sensibilidade, sentido do sacrifício, lealdade — dos japoneses na América, em CRIMSON KIMONO. Vai mais longe ainda, tentando analisar os vestígios deixados pela História na estruturação das mentalidades (e a história das nossas sociedades é fundamentalmente a das guerras): arrogância dos vencedores e humilhação dos vencidos, igualmente nocivas enquanto as atitudes que ambos os estados engendram não forem ultrapassadas; a ideia de vingança é condenada por Fuller, tanto a propósito dos nazis (VERBOTEN) como no caso de justiceiros com motivos pessoais (UNDERWORLD USA). Profundamente, Fuller põe em causa as razões inconscientes, ou pelo menos inconfessadas, que motivam tanto os actos heróicos — o tema do medo é central em todos os filmes de guerra — como simplesmente generosos: o jornalista quer descobrir a verdade sobre o incidente no manicómio para fins de promoção pessoal (SHOCK CORRIDOR); os actos de beneficência do filantropo dissimulam graves perversões (THE NAKED KISS); o senador manda um agente desmantelar a rede de chantagistas apenas porque deles foi vítima — i. e. foi para a cama com a rapariga (TOTE TAUBE IN DER BEETHOVEN STRASSE). A originalidade de Fuller consiste em tratar problemáticas desta ordem de complexidade através de filmes de acção submetidos às regras do «género» no plano narrativo, regras essas que o realizador respeita e até reforça, recorrendo a soluções inéditas de encenação e de montagem para aumentar o efeito de violência. Ora, embora Fuller não possa ser assimilado aos realizadores de série B (a maior parte das vezes é produtor dos seus próprios filmes), a verdade é que frequentemente trabalha em más condições, o que leva a utilizar expedientes imaginativos: rodagens em dez dias (STEEL HELMET), introdução de documentos em cenas de ficção (VERBOTEN), transgressões de montagem (flecha nas costas dos soldados afrontados em RUN OF THE ARROW, lançamento de azagaia repetido e imagem que se estilhaça no espelho [TOTE TAUBE IN DER BEETHOVEN STRASSE], alternância de imagens de filmes de gangsters e de sequência de guerra [TINGER-LING, LA VIERGE ET LE DRAGON]), etc.. Estas soluções formais — sem mencionar os célebres planos-sequência em travelling de PARK ROW, as imagens-choque da tempestade no corredor de SHOCK CORRIDOR, da prostituta de cabeça rapada no início de NAKED KISS, do Cristo carunchoso que abre THE BIG RED ONE, etc. — vistosas — Fuller é indubitavelmente um autor barroco — não são gratuitas, posto que delas decorre um segundo grau da crítica em que a ideologia se torna inseparável da estética. O critério é a eficácia, o impacto. Por isso, Fuller concentra a acção até a violência do exagero atingir o nível simbólico: a batalha das Ardenas, em THE BIG RED ONE, desenrola-se num convento transformado em manicómio; o desejo da mulher coincide «naturalmente» com o desejo incestuoso (SHOCK CORRIDOR); a capacidade de adaptação a um modo de vida diferente é consequência de uma derrota (nesse aspecto RUN OF THE ARROW, que reconstitui a história do «soldado que disparou a última bala da guerra... e falhou» opõe-se significativamente a DANCES WITH WOLVES, apesar de Kevin Costner ter copiado o esqueleto do filme). Fuller não ilustra as ideias com a acção, mas excede-se na encenação da acção, acumulando elementos extremos e antitéticos até que nela se represente um conflito mais lato, ideológico e moral. Com Fuller, a «grande forma» — para retomar as categorias deleuzianas — da imagem-movimento desagua, como em Welles, na metafísica. A RTP permitiunos rever uma retrospectiva quase completa da obra de Fuller. Agradeçamos ao programador e façamos votos para que este reconhecimento televisivo do contributo de Fuller não seja uma certidão de óbito. S.