UMA IMAGEM Até ao princípio dos anos sessenta, a semântica alarga o seu campo de investigação e absorve a imagem fazendo dela seu objecto — de início, sobretudo a imagem publicitária —, e adapta as suas grelhas de análise do discurso verbal ao ícone: a imagem passa assim a ser decomposta em elementos substantivos — os objectos denotados —, qualificativos — formas, cores — e os elos de colocações e de associações que ligam os objectos denotados entre si e à mensagem verbal explícita ou implícita são descritos. A produtividade da grelha não vai além deste estádio: o ícone não se organiza em torno de um núcleo verbal, o discurso que desenvolve parece dilatar os processos nominativos mas não possui os atributos do verbo, os seus valores de aspecto — acabamento, hipótese, etc. — nem a sua dinâmica de conexão — causa, consequência, fim, etc. — que o «leitor» da imagem tem de restabelecer graças à mensagem verbal próxima, presente ou latente. O ícone funciona basicamente como o célebre quadro de Magritte «Je ne vois pas la femme nue cachée dans la forêt» (Não vejo a mulher nua escondida na floresta) em que a mulher nua aparece pintada e substitui as palavras que a designam na frase. Como qualquer núcleo substantivo, o ícone tem simultaneamente poderes de denotação e de conotação; a conotação funciona a partir do momento em que qualquer objecto denotado é expressamente sinédoque ou metonímia de um outro objecto ou de um conceito abstracto — os lábios para o beijo, os óculos para a seriedade, os olhos de Van Gogh para a cotação dos seus quadros... Em contrapartida, a complexidade do ícone é de tal ordem que ainda não foi possível determinar a sua unidade mínima — a franja de cabelos que caracteriza a «romanidade» nos peplums hollywoodianos funcionará autonomamente ou entrará numa relação de redundância/distinção com os outros elementos de anacronismo e de antiguidade? (cf. Barthes: Mitologias, 1957) — posto que cada pormenor pode ser significativo dentro dum objecto representado. É hoje dado adquirido que a sucessão — tanto no discurso verbal, como na imagem animada ou até numa campanha orquestrada no tempo — é suficiente para introduzir os valores de aspecto do verbo sem que a sua presença seja necessária: entre dois enunciados independentes, «café entornado» e «acenar ao homem», basta fazer entrar o «empregado de café» no paradigma «homem» para estabelecer um valor de causa/consequência entre os dois enunciados. Esta breve resenha, infelizmente simplificadora, de algumas noções de semântica visa apenas servir de ponto de partida para umas tantas propostas sobre a imagem cinematográfica com base em duas constatações simples: 1) Os instrumentos de análise semântica quase não foram utilizados pela crítica ou pela teoria cinematográfica — as obras de Deleuze constituem a única excepção notória, mas retomam um estado taxinómico da semântica sem utilizarem os escassos conceitos dinâmicos desde então elaborados (Greimas) —, devido às inúmeras dificuldades que este tipo de abordagem levanta — para descrever a menor ligação ou relação de uma palavra com outra, o esforço desenvolvido é já considerável... —, devido também à necessidade evidente de considerar prioritariamente o efeito produzido sobre o espectador antes mesmo da coerência interna do objecto-filme questionado, devido sem dúvida ainda à inoperância das categorias semióticas, demasiado abstractas, que esta disciplina produziu. 2) Mantém-se todavia uma tendência espontânea, que entronca na nossa história cultural, para projectar as propriedades do discurso verbal sobre o funcionamento dos ícones, da qual encontramos inúmeras manifestações quando o discurso crítico tenta, por exemplo, apreender certos efeitos de ordem estética e se vê reduzido a lançar mão de termos como rima, eco ou repetição através dos quais o objecto-filme é assimilado a um poema. Descrevendo um funcionamento semântico particular dos elementos denotados, as propostas que a seguir formularemos tentam simultaneamente preencher uma lacuna ao nível das aplicações possíveis da semântica à crítica cinematográfica, e justificar provisoriamente o reflexo adquirido de dar prioridade ao verbo sobre a representação icónica — já Descartes tentara demonstrar a pertinência desta hierarquia através do exemplo do polígono regular com cem lados. Dado o carácter verbal deste artigo, exemplificaremos a nossa análise a partir de textos e referiremos de seguida algumas imagens de filmes, a título de ilustração ou de citação.
Qualquer objecto denotado — nomeado ou representado — só adquire sentido para além da sua identificação na medida em que está situado numa rede isotópica, i. e. ligado a um conjunto pelo lugar que ocupa no sintagma — ex: a indicação temporal que completa o verbo «sair» em «a marquesa saiu às cinco horas» — ou num paradigma — directamente no caso de uma enumeração, indirectamente no caso de uma descrição, ex: «O quarto não continha nada de especial. Os móveis, de madeiras amarelas, eram todos muito velhos. Um divã, um toucador com um espelho encostados ao vão entre as janelas, cadeiras a todo o comprimento das paredes, duas ou três gravuras sem valor que representavam meninas alemãs com pássaros pousados nas mãos — o mobiliário reduzia-se a isto». (Dostoïevski, Crime e Castigo); cada objecto descrito funciona apenas em relação ao traço semântico «móvel», enquanto especificação do termo genérico final, no entanto todos realizam a passagem de «nada» a «o quê», contradizendo o primeiro termo mas sendo intrinsecamente desvalorizados pelo nada que compõem; pertencem portanto a duas redes isotópicas sobrepostas que desmobilizam todos os outros traços semânticos específicos a cada um — o «assento» para o divã e para as cadeiras, o «reflexo» para o espelho, etc. A continuidade narrativa pode caracterizarse pela selecção que opera dos traços semânticos dos objectos denotados — i.e. das redes isotópicas em que os insere — de maneira a permitir que o discurso se desenvolva sem ser interrompido pela multiplicidade de traços contidos em cada um deles. Deste ponto de vista, a narratividade é empobrecedora posto que o papel dos diversos objectos intervenientes se reduz à manifestação de um número restrito de isotopias; a redução máxima ocorre na narração realista em que o objecto particular é assimilado ao seu arquétipo e tem por única função, além da simples identificação, materializar um valor positivo ou negativo conforme a moral circunstancial defendida pelo discurso. Por contraste, a poesia poderia ser definida como a organização que tece o maior número de isotopias em torno de cada objecto de maneira a convocar o maior número possível dos seus traços — por isso cada termo funciona como um «cruzamento» isotópico; examinemos o seguinte poema de Benjamim Péret (do livro Je sublime): ALLO Meu avião em chamas meu castelo inundado de vinho do Reno meu gueto de lírio negro minha orelha de cristal meu rochedo rolando pela falésia para esmagar o guarda florestal meu caracol de opala meu mosquito de ar meu edredão de aves-do-paraíso, minha cabeleira de espuma preta meu túmulo estoirado minha chuva de gafanhotos vermelhos minha ilha volante minha uva de turquesa minha colisão de carros loucos e prudentes meu canteiro selvagem meu pistilo de papoila projectado no meu olho minha gazela desgarrada num cinema da avenida minha caixinha de sol meu fruto de vulcão meu riso de charco escondido onde se afogam os profetas distraídos minha cheia de groselha minha borboleta de míscaro minha cascata azul como o maremoto a partir a primavera meu revólver de coral cuja boca me puxa como o olho dum poço cintilante gelado como o espelho onde contemplas a fuga dos colibris do teu olhar perdido numa exposição de branco cercada por múmias amo-te.
Sem tentarmos aprofundar aqui a construção binária que reforça no corpo de cada verso a estrutura anafórica invocatória — uma análise mais completa deste poema foi efectuada no âmbito dum estudo de poética e publicada pela Revista da Faculdade de Letras do Porto em 1988 —, observamos que cada invocação constrói uma imagem na qual dois termos são associados — o segundo é, na maioria dos casos, um complemento, de matéria, do primeiro substantivo. A estrutura formal estabelece relações semânticas entre as duas componentes da imagem, entre as duas imagens do verso, entre as imagens de um verso e a dos versos vizinhos, entre os elementos espalhados pelo poema que pertencem à mesma isotopia. Os termos associados para a construção da imagem possuem um traço comum, ora ao nível da localização — «mosquito de ar» — ora numa relação do tipo sinédoque — a pena do «edredão» e das «aves-do-paraíso» — ora devido a uma associação convencional fixa na língua — «riso» e «distraído», etc. Mas a construção do poema faz com que cada lexema se encontre no centro de várias redes isotópicas e cada rede põe em jogo um traço semântico diferente: «cristal», no segundo verso, está ligado a «orelha» pelo traço sonoridade
— relação de complementaridade —, a «negro» pela transparência — relação de oposição —, a «rochedo» pela mineralidade — relação de redundância —, a «opala» pela preciosidade dentro de uma rede que compreende também «turquesa» e «coral»; «sol» faz intervir os traços «ouro» na associação com «caixinha», «fogo» com «vulcão», «sul» com «gazela», «luz» contida no adjectivo «cintilante», «calor» por contraste com «gelado»... Este mecanismo é facilmente transponível para a análise de imagens de filmes que deverão ser consideradas em função da sua inserção: o «cruzamento isotópico» é produto da montagem (não faria sentido retomarmos aqui as propostas formuladas no nosso estudo «Para uma teoria da montagem» in A Grande Ilusão nº 8 e do qual este artigo pretende ser uma espécie de apêndice). Limitar-nos-emos a apresentar alguns exemplos ao correr da memória, mas exortamos o leitor cinéfilo a prosseguir esta etapa: em O DESPREZO de Godard, a dado momento Jack Palance, na sala de projecção, agarra numa lata de película e arremessa-a tomando a pose do discóbolo. Esta imagem que poderia não passar duma brincadeira, cristaliza em si todo o discurso de Godard sobre o cinema no filme: o produtor é uma antítese dos deuses (estátuas animadas pelos movimentos de câmara que vimos nos rushes); o produtor e o realizador estão em oposição (o primeiro está de pé, o segundo sentado); a evocação das esculturas da antiguidade confrontada com a «ausência de futuro» do cinema (expressa na citação de Lumière que aparece inscrita debaixo do ecrã) funciona como uma redundância; a sala de projecção como espaço diegético é uma figura «en abyme»; aliás, a imagem das latas espalhadas pelo chão abarcará novos sentidos ao ser retomada e encenada doutra maneira em ATENÇÃO À ESQUERDA. Em O DESEJADO de Paulo Rocha, na sequência central da estada dos «herdeiros» na Índia, onde as autoridades locais lhes vão devolver as cinzas dum antepassado, um dos primeiros planos mostra-os no topo dum emaranhado de raízes que ocupa dois terços da imagem e apresenta a curiosa forma de meia-mandala. Para além da sua força estética, a imagem impõe-se como visualização da busca das «raízes» que percorre todo o filme, mas as origens tradicionais são invertidas posto que as raízes se encontram na ex-colónia. Este motivo reaparece duas vezes: uma primeira junto ao rio onde os amantes virão a desaparecer — a raiz da qual se desprendem; a segunda, nos montes de Sintra (Convento dos Capuchos) anuncia, pelo contrário, a continuidade da linhagem, dos reis mortos ao novo rebento, filho de pai incerto que o próprio monarca vizinho reconhece... A aparência de «tecido» do primeiro emblema das raízes indianas é já portadora das imagens contraditórias que a ele se sobrepõem; as raízes podem ser percebidas como fios ou como cortina. Não vale a pena multiplicar os exemplos — do concerto na igreja do Carmo das RECORDAÇÕES DA CASA AMARELA de João César Monteiro, ao mesmo tempo citação pervertida do plano final de NOSTALGIA de Tarkovski e prefiguração das imagens de ruína do Chiado, mas também do manicómio, reduzido ao seu pátio circular, à árvore que abre a interrogação sobre a História do «NON» OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR de Manoel de Oliveira. Preferimos terminar com o contra-exemplo de uma imagem que não consegue convocar outro significado que não o da sua identificação inicial: NUVEM, o título do filme de Ana Luísa Guimarães, parece, à partida, justificado pela epígrafe de Wordsworth, enquanto imagem poética da errância e da solidão. Ora a palavra ressurge mais tarde, em néon, como nome da pensão onde se desenrolam duas cenas capitais — simbólicas? —: é por não poder penetrar na pensão quando, perseguido pelo bando, tenta proteger-se acompanhando Laura que Jaime será obrigado a fugir para a ponte onde encontrará a morte; é por sair da mesma pensão, durante a sua noite de núpcias, que Tomás apanha uma tareia dum bando rival. Todavia, as duas cenas não são em si decisivas e o regresso ao local só estabelece um paralelismo de alusão a um fugaz sétimo céu, justamente em contradição com a equivalência inicial. Sem aprofundarmos a incoerência de a mesma pensão ser a residência do ex-polícia — Porque é que Laura aceita a escolha daquele sítio para passar a noite de núpcias? Como é que o ex-polícia pode ignorar a estadia dos noivos? —, a escolha do nome não esclarece nem o enredo — perfeitamente sintetizada numa só imagem no cartaz do filme — nem o título... Assim afigura-se-nos possível enumerar algumas propostas a partir da análise deste funcionamento semântico particular da imagem enquanto «cruzamento isotópico»: 1. A riqueza de uma imagem não é de ordem narrativa mas poética.
2. Tal riqueza é directamente proporcional ao número de isotopias que se cruzam numa só imagem. 3. A análise aqui efectuada ao nível de uma microestrutura pode ser alargada a unidades mais vastas: à cena ou ao filme. As redes isotópicas são então constituídas por categorias abstractas materializadas de maneira homogénea e coerente ao longo da diegese — por exemplo, identidade, racismo, ilusão, ficção, logro em HOMICIDE de David Mamet (cf. o nosso artigo sobre o filme). 4. O «juízo» crítico, juízo de valor, deve tentar objectivar-se a partir da análise deste tipo de mecanismos. A radiação semântica — que nada tem a ver com polissemia — aqui descrita é apenas um aspecto particular, não necessariamente primordial, da imagem fílmica. Só pareceu merecer-nos esta longa análise na medida em que constatamos no discurso crítico uma certa dificuldade em apreender a essência do filme que é ser composto, não tanto de «histórias» ou de «temas», mas de imagens... S.