Uma Página de Mal-Dizer
Orson Welles foi o gigante da história do cinema a quem a crítica bem-pensante fingiu perdoar a «falta de rigor» que pretensamente comprometia a cotação dos seus filmes na bolsa das obrasprimas. Talvez por a crítica considerar que, das competências e atribuições da grande ilusão cinematográfica, também faz parte a ilusão da dedicatória ao espectador ideal. O nirvana da crítica atinge-se quando o cineasta inventa ou complica as regras de cortesia que permitem ao entendido ascender ao papel de cúmplice. Então, no auge do «fair play» e como tudo neste mundo se paga, o crítico pode desatar a elogiar as chagas expostas, os defeitos muito especiais do realizador: «Aquele corpo a corpo com o texto»! «Aquele combate de galos com os actores!» «Aquela coragem de vender a alma ao guião!» ... E muitas outras coisas que Ela gosta de afirmar porque, como é sabido, a arte já não imita a natureza. Os artigos necrológicos sobre o desaparecimento do gordo Welles são elegantes de mais para esconder o sinistro à vontade daquela silhueta, daquela obscenidade mundana no trabalho e no ócio. A verdade é, desde Citizen Kane, um valor de troca para os outros. Avesso a moldar o barro de que todos somos ou fomos feitos, o cinema de Welles esbanjador, barroco, distribui o homem por situações excepcionais de desenlace obrigatório, concedendo-lhe uma chance de seduzir em tempo muito limitado. A profusão, o volume, o balanço das imagens de Welles atiram-nos à cara que uma relação livre não exclui a vertigem. Que é mãe de todas as tentações. O facto de Welles reservar um papel primordial à montagem corresponde à sua necessidade de conservar um espaço para o excesso na ordenação da memória. É nesse espaço de fantasia que o corpo quer morar. É revoltante pensar que muitos dos seus filmes foram prematuramente despejados. Objecto do deboche dos políticos culturais no país das liberdades, Welles lembra-nos que, no banquete de promessas da democracia, raramente se escolhe o lugar à mesa. R. G.