VALISE-SURPRISE Anuncia a citação de Borges, colocada à cabeça do filme, uma preferência, supostamente sagaz, pelas metáforas eternas. Vulgo lugares comuns. E é sobre uma cerrada malha de lugares comuns que este desconcertante trabalho de Jean-Luc Godard inscreve a sua fábula acerca da voracidade de uma guerra difícil de ilustrar: a vertigem devoradora dos sonhos de conquista e posse dentro de um sistema socio-político no qual com uma mão se promete e com a outra se tira. Longe do deboche de sinais, caminhos e cruzamentos da cidade (ali tão perto, porém...), num terreno ermo, suburbano, vive uma família cujos membros se chamam Ulisses, Cleópatra, MiguelÂngelo e Vénus (bem antes do truque de argumentista das Tartarugas Ninja). Mas não suficientemente longe para escaparem à fúria mobilizadora dos carabineiros que, em nome de um Rei (no fundo de um vazio da Razão Política) os vêm corromper, agitando a sedutora miragem de ganharem tudo quanto há para desfrutar — desde o bâton Max Factor à máquina de lavar, passando pelo privilégio de praticar o mal impunemente. Sucumbir à tentação de ser contemplado com todos os produtos que a sociedade de consumo "oferece" significa partir para uma guerra bárbara e virtualmente interminável onde Ulisses e Miguel-Ângelo nem se perderão nem se encontrarão, parêntese num destino de primitivos solitários que só se fechará para que os carabineiros viracasacas lhes apliquem o golpe de misericórdia. Das miragens apenas lhes restará o prazer de fazer o mal em todas as circunstâncias — quer seja humilhando os pobres e assassinando porteiras, quer seja fuzilando a bela leninista, declamadora de Maiakovski (qui n'en finit pas de mourir), ou roubando limousines aos ricos cujas esposas "mexicaines" os autorizam a justificar a aniquilação de "mecs si cons". Duchamp e a insolente veia surrealista passara por lá antes, mas abençoado seja Godard, malgré tout, por ter trazido ao cinema algum do veneno que a modernidade literária e plástica já se cansara de espalhar. Regressados de oito anos de pilhagem e carnificina "a brincar", Ulisses e Miguel-Ângelo trazem na mala o mundo resumido a uma dúzia de colecções de postais — monumentos, transportes, animais, indústrias, mulheres — que constituem, na sua crédula versão dos factos da guerra, outros tantos títulos de propriedade... Mas entretanto veras imagens da verdadeira guerra — real, fictícia ou ficcionada — vieram perturbar a leitura desta fábula em que cada personagem parece querer "jouer au plus con". E é nisso que o artista troca as voltas à convencional utilização dos "documentos", já que eles ali estão para documentar uma guerra outra. Godard esconjura aquilo que a personagem de Miguel-Ângelo faz perante o retrato de Rembrandt — a saudação servil do soldado ao artista. Por outro lado, não deixa de ser emocionante assistir ao nascimento do estilo de um dos mais importantes cineastas de todos os tempos, com todos os gritos e silêncios selváticos, com todos os silenciamentos sonorizados que a banda musical em si cristaliza, num jogo audaz de rupturas a que sua obra posterior dará consistente continuidade. Perante a infinita escolha de possibilidades estilísticas, Godard escolhe o "tout, tout de suite" que os seus párias reivindicam, conjugando todos os movimentos de aparelho com toda a fixidez, o contraste com o seu contrário, o depuramento da "collage" com a acumulação e a enumeração, o revelado com o oculto, o mais cínico patético com o mais infantil desejo de rir e fazer rir... Etc. E se (este se é meu, claro está) o cineasta não opta, a talho de foice, por um caminho acima dos caminhos, será porventura porque a sua postura paranóica (como a de todos os loucos a quem a história dá razão) o leva a desconfiar de sentidos únicos e de estradas de Damasco. Toda a saudade do cinema vindouro, aqui e agora, saúda em Godard a capacidade lunática de trabalhar em quarto crescente e em quarto minguante ao mesmo tempo. E de tornar nossa, palpável, hesitantemente violenta como o amante confrontado com o fantasma da impotência, a temporalidade da criação. Regina Guimarães