Visão duma visão

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VISÃO DUMA VISÃO Propositadamente a despropósito, a ideia de falar de Rossellini. Desde o desaparecimento das sessões ditas «clássicas» os «clássicos» estão, entre nós, definitivamente fora de campo, tendo sido vantajosamente substituídos pelos requentados Fosses-Beneixes e Cia, inesgotáveis de público e involuntários coveiros da cinefilia. Mais sorte, «malgré tout», têm os parisienses que mataram sete Rossellinis duma vez, na passada estação. Respectivamente ROMA CIDADE ABERTA, PAÏSÁ, ALEMANHA ANO ZERO, O AMOR, STROMBOLI, VIAGEM À ITÁLIA, O MEDO. ROSSELLINI NOS ÉCRANS JÁ! A descoberta (por visão quase consecutiva) de momentos tão diversos da obra de Rossellini como são O AMOR, PAÏSÁ ou STROMBOLI deixam a espectadora, que eu sobretudo sou, perplexa. Há cinema de que muito se fala, esse mesmo que, por acaso, pouco se vê. O must Rossellini (como o must Oliveira) parece dispensar que certa crítica lhe abra, para além das colunas, o coração. A etiqueta é, mais coisa menos coisa, O TAL DO NEO-REALISMO / O TAL DA LIGAÇÃO COM A BERGMAN NAS BOCAS DO MUNDO / O TAL CATÓLICO AINDA QUE MODERNO, CHATO AINDA QUE INCONTESTÁVEL. O embate com os filmes coloca-nos perante a invenção do media. Com efeito, cada mensagem — Rossellini assumidamente didáctico acreditava que esta precedia a criação, tendo chegado até a pôr em prática a solução de acabar com as fitas e pegar na pena — segrega uma forma inédita, de natureza a combater a simplificação. Nesse sentido experimental, Rossellini é um dos pioneiros mais chegados a nós: ROMA CIDADE ABERTA está para o cinema que se fez depois da Guerra corno MATOU para o que se fez antes. PAÏSÁ está certamente para a memória italiana (da guerra, significativamente) como o Painel de S. Vicente para a memória portuguesa. Naquele tempo, e naquele caso, criar era materialmente difícil e inventar moralmente urgente. Ocorre-me que foi tanto mais fácil canonizar Roberto R. em vida, quanto os seus filmes careciam totalmente de sentido de humor (Oliveira nem pouco mais ou menos...). Histórias de sobreviventes. A exigência de originalidade conjuga-se com outros princípios, meios e fins: a) tornar a defesa de valores compatível com a ausência de heróis; b) transformar o encontro das histórias anedóticas e pessoais com a História dos homens e dos lugares na história do cinema; c) arrancar a verdade ao que se representa como quem arranca um dente de leite, i.e., para que outra possa nascer. Se a história da recepção dos filmes, contada pelo próprio Rossellini, parece acidentada, senão negra, é talvez por eles funcionarem um pouco como bombas a retardador. Confesso que chorei baba e ranho por causa de O MEDO, mas só quando já estava longe do escuro, em plena rua. Os homens maquilham-se de realidade e ela desfigura-os, torna-os irredutíveis à máscara. Assim, tanto o humor como o pathos são impossíveis. NO WAY OUT, como no fim de STROMBOLI, a salvação (a perdição) está para não ser contada. VIAGEM EM ITÁLIA diz rigorosamente o contrário e a mesma coisa: o lugar do homem é o seu espírito e este vem-lhe dos lugares dos homens. Logo, o milagre é o acontecimento útil mais provável e desaproveitado que existe. E, quanto mais não seja, fabrica a dúvida. O documentário inicia a sua expedição punitiva à ficção: enfrentem-se os monstros, como a star, os primitivos e vice-versa. A VOZ HUMANA, tirado da peça homónima de Jean Cocteau (o autor deve ter ficado tão desfeito como o público), é a crueldade feita lente de aumento a deformar a par e passo o desalinho de uma paixão, na clausura de um laboratório que o cineasta decorou como um quarto. A vista fica exausta de seguir as convulsões do corpo, feito voz, de A. Magnani. Conta Rossellini que o argumento de O MILAGRE (distribuído, juntamente com os insuficientes» 40 minutos de A VOZ HUMANA, sob o título genérico de O AMOR) lhe terá sido sugerido por F. Fellini, seu assistente. Este último começara por lhe apresentar a intriga como sendo extraída duma novela russa, mas, pressionado por Rossellini, acabaria por confessar que tinha inventado a fonte de inspiração para dar mais credibilidade à proposta. Desta gestação, um tanto cómica, nasceu uma apologia (herética?) da fé enquanto


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Visão duma visão by Helastre - Issuu