VIVER DE MUDANÇA Em Mudar de Vida surge, para logo se fixar, o dispositivo de triangulação que estruturará todos os filmes de Paulo Rocha: um homem dividido (no espaço e/ou no tempo) entre duas mulheres, melhor dizendo entre dois espectros de feminidade. A Senhora Vida e a Senhora Morte, em permanente troca de papéis. O autor gosta de se apresentar como homem de histórias — contador de episódios, fazedor de fábula, efabulador... Os germes de ficção (que, de resto, ele sem avareza semeia à sua volta, ao vento de cada amena cavaqueira) são os seus instrumentos de observação do real e consequente desnaturalização. Pese embora o agudíssimo sentido plástico da sua "mise en scène" (termo que ele prefere a outros), uma vez no "plateau", Paulo Rocha parece radicar sempre o seu trabalho numa imagem, ou numa constelação de imagens, conservadas pela memória conquanto ameaçadas de extinção. Terá sido esse o motivo confessado — o iminente desaparecimento das épicas companhas do Furadouro — que deu origem ao desejo deste filme. Tanto bastaria porventura para aventar a hipótese de ser esta a "obra fundadora" de uma estética (e de uma ética) rochiana(s), após o milagroso Verdes Anos, em quase tudo diverso do que para a frente viria. Porém, convirá ainda acrescentar pelo menos dois outros aspectos essenciais e particularmente relevantes no que diz respeito à génese das formas e das práticas que Paulo Rocha perseguirá. No princípio está o encantamento do espaço. O realizador fez seu o projecto de desencantar lugares extremos, dramaticamente falando, e o processo de ficcionalização que ele desenvolve em torno desses territórios consiste em devolver- lhes o encantamento, envolvendo- os numa rede de visitações que obrigam a que cada plano seja marcado como um rito, uma homenagem, um largo gesto de chapéu que saúda a passagem da beleza, ó quão frágil e forte. Cada paisagem de Paulo Rocha se transforma em cenário de interioridade, não propriamente das personagens mas das pulsões que elas pretendem despertar no espectador. E o cineasta comporta- se, julgo não estar a exagerar, como o primeiro espectador abismado dos seus filmes excessivos. Todavia, a feitura do cinema rochiano obedece a um segundo movimento, esse de fascínio pela vida, pela vida com a obra confundida, (só) aparentemente oposto ao primeiro. Trata- se da opção por uma postura de disponibilidade total para a mudança, a cada instante, a cada humor seu ou da equipa, a cada brisa, a cada tropismo abstracto ou concreto. E é essa abertura do seu espírito vibrátil, deambulante entre espectros e corpos, que faz das certezas dúvidas, e das dúvidas aterradores mananciais de soluções, elevando o contador — sedutor seduzido — à condição improvável de genuíno cineasta documental. Não consigo deixar de ver em Mudar de Vida os rastilhos de um e outro ímpeto, de uma e outra energia. São esses rastilhos que conferem força vulcânica (e contudo petrificada, hierática) aos fantasmas que povoam as imagens e delas se evaporam. Regina Guimarães