Who framed janet

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WHO FRAMED JANET? As decepções sentimentais vão sendo cada vez mais raras para o espectador de cinema, como são raros os amores à primeira vista e as paixões assolapadas. Fiel admiradora do Senhor Godard, devo confessar que me desiludiram um pouco as godardices de DETECTIVE e de NOVA VAGA. No entanto, este último filme, com todo o seu excesso de carga metaficcional, parece mesmo assim tão acima dos esquemas narrativos habituais que os próprios jornalistas culturais da nossa praça e de ailleurs se limitaram a tirar o cineasta do purgatório para onde fora relegado (e, sufocando de êxtase, comentaram «que lindo e que bem lambido»), passando ao largo do núcleo narrativo que estrutura a obra (The Long Goodbye de Raymond Chandler), ainda que confusamente toda a gente entendesse que o irascível iconoclasta suíço daquela vez fizera cinema para crítico ver. Apetece desabafar: «Será que inevitavelmente esperamos que algo, alguém ou algo em alguém morra para que nos fuja a boca suja para o apetite da escrita?» Mas desta vez a grande desilusão não é a propósito de Godard e é pior um muito. Se o filme de Jane Campion era à partida um tele-documentário, nunca devia ter saído desse canal de difusão. Dantes a gente falava como (se) pensava agora fala como (se) vê (na) televisão. E não haja dúvidas de que a TV estraga, a gramática tele-narrativa arrasa e eleva a matéria à quase quadrada estupidez. O melhor de Jane Campion — o sentido agudo, quase doloroso, do enquadramento, por um lado, e a iconografia de uma infância ilimitada, por outro — desaparece debaixo do lixo colorido das paisagens e das cabeças, nem tanto à fauve nem tanto à pop, para agradar a espec-grego e conquistar tador-troiano. Vi SWEET1E — que me fora recomendado por uma pessoa querida — com a emoção forte de quem não sabe responder a uma pergunta vital ou se perde no campo magnético de uma rosa de muitos centos e espinhos. Era um filme não tanto sobre a loucura, porque isso não existe, mas antes sobre a monstruosidade primitiva do amor familiar, num mundo colonizado pelos modelos e pelos media. Vejo UM ANJO À MINHA MESA como se me tivessem aviado ÁFRICA MINHA à falsa fé: é mais carneiro menos antílope, com a agravante de se flirtar com um assunto tão grave como a doença mental e a instituição psiquiátrica. Janet Frame é ilibada desse péché mignon que é a presunção da esquizofrenia para os artistas e Jane Campion recusa-se a aprofundar o «jogo do sério» e a «imitação da loucura», portas ou barreiras da fúria criativa. E não me venham com a conversa douta e tranquilizadora da sublimação pela escrita que lava mais branco todas as frustrações porque ela só pode pintá-las de preto. O próprio campo lamacento, verde e de oceano rodeado (a Nova Zelândia onde as pirâmides da memória de Janet podem desafiar a ruína) não passa duma mensagem mandada por postal e, nas costas escritas, más notícias de férias. Da escrita de Janet resta uma suposta história de amor com a literatura que substitui os béguins da adolescência — e dessa relação com a literatura conhecemos apenas a capa dos livros e alguns nomes — Byron, Shelley — sem eco nem repercussão. Do retrato de Janet, resta sobretudo a ausência da outra, a personagem em detrimento do anjo. O cliché do artista é sempre uma forma de subvalorização do seu trabalho. Se a condenada à leucotomia inscreve na parede do cárcere que escolheu a palavra mágica da salvação — uma palavra bela como nunca virar costas às estações e às suas felizes intempéries — o filme fecha-a numa gaiola dourada e apaga metodicamente a ascensão do devir trágico que é a condenação à vida. A própria sinalização do percurso de Janet parece escapar a Jane e a escrita é o pouco que sobrevive à imundície do sangue e à demência das águas. A fragmentação da escrita fílmica não deveria ser tão apressadamente assimilada à natureza fragmentária da escrita outra, apesar desse crime intelectual compensar. Pelos vistos. R. G.


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