Woody allen teórico de cinema

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Woody Allen, Teórico de Cinema É possível ser teórico sem derrame de didactismos, sem palavrosos discursos, mas através dos produtos elaborados, porque a sua percepção implica o reconhecimento de uma concepção original do medium. É o caso da maioria dos grandes realizadores, mas a reflexão limita-se geralmente ao produto — neste caso o filme e o seu funcionamento — no âmbito duma concepção social do medium — o cinema — que não é em si, posta em causa. Assim, Hitchcock, Truffaut, Visconti, etc. Mais raros são os que, dentro da instituição cinematográfica, transgridem a função do cinema — nenhum destes últimos pode conseguir êxitos comerciais, a não ser por obra dum mal-entendido. À medida que os filmes de Woody Allen têm vindo a deixar o domínio, perfeitamente circunscrito, do cómico — e que o seu público começa a decair — revela-se uma concepção original do cinema, concepção que não está directamente ligada à qualidade dos filmes ou à originalidade — ao nível da «autoria» — dos enredos ou da encenação. Esta viragem pode ser datada com uma certa precisão — a partir de Annie Hall, em que os dois protagonistas estão numa bicha de bilheteira para ir ver Le Chagrin et la Pitié — e caracterizada pela presença sistemática de elementos «cinematográficos não-fílmicos» na diegese «fílmica» — perdoem-nos a terminologia repugnante do Sr. Cohen-Séat, a esclarecer no seguimento do artigo. Estes elementos ocupam um lugar preponderante nos últimos filmes, em que o enredo se organiza em relação a eles. Assim Woody Allen tem abordado dimensões muito diversas do cinema, que vão do seu papel na informação com Zelig aos meandros do seu meio profissional em Broadway Danny Rose, passando pelos seus circuitos de distribuição na recente Rosa Púrpura do Cairo. Antes de mais, é preciso relembrar que os «bastidores» da produção constituem um cenário tradicional da comédia musical americana — mas, de facto, não passam justamente dum cenário, estereotipado, frente ao qual as personagens evoluem representando uma ficção igualmente estereotipada — enquanto que, na Europa, trata-se quase de um tema-tabu, que Godard só esporadicamente e a custo tem mostrado, e que Truffaut camuflou totalmente, revelando-os, pretensamente, no seu A noite americana (em que rodagem não chega a ser mais do que um pretexto dentro do filme, aparecendo tão estereotipada como nas comédias americanas). Por que razão(ões) Woody Allen tem conseguido comunicar-nos uma reflexão sobre o cinema duma forma tão clara? Porque não tenta impingir-nos um discurso sobre os problemas da produção — a criação, por definição, só é comunicável sob forma de produto acabado — mas sim sobre o espectador — o terceiro termo da «terceidade» segundo Deleuze. Sem manipulação, nem agressão, sentimo-nos comovidos, envolvidos, porque Woody Allen é «sincero», porque o primeiro espectador de quem fala e a quem se dirige é ele próprio, e porque perante um referente cinefílico comum, nos reconhecemos nele. Pois a primeira relação confessada de Allen com o cinema — acontece aliás o mesmo com toda a gente e esse deve evidentemente ser o ponto de partida da reflexão — consiste em ser espectador. Quando passa do teatro ao cinema, Woody Allen só logra forjar uma criação cómica original porque para além do «tipo» que criou e do cómico de palavras, introduz nos filmes a sua própria cinefilia. O efeito cómico dominante nos seus primeiros filmes reside, efectivamente, no facto do personagem não corresponder ao papel que desempenha, seja este de criminoso, sedutor ou aventureiro — em Take the money and run, Play it again, Sam e Bananas respectivamente. O facto desse papel, grande de mais (como se diria dum casaco) para ele, estar ainda marcado pelos vestígios do seu ocupante convencional provoca o efeito de desfasamento. Trata-se pois de um cómico de citações — que se irá esgotando nos três ou quatro filmes seguintes até Annie Hall — recheado com um comentário sobre o cinema: a função deste último é definida como modelagem dos sonhos, sonhos de vida, de sociedade e de futuro, função que o cineasta denuncia na medida em que não possui as qualidades que lhe permitiriam integrar-se nesse modelo. Donde a importância da psicanálise na construção deste comentário: trata-se dum problema de adaptação, não à sociedade mas à imagem idealizada que o cinema dela nos oferece. Woody Allen encontra o «tom» pessoal a partir de Annie Hall; o cómico continua presente, mas decantado da facilidade complacente de


assumir papéis que não são ele; doravante Woody Allen vai jogar com a sua próprioa personagem e precisar o alvo da sua denúncia: o cinema modela antes de tudo as relações amorosas e intervém nos momentos mais triviais do quotidiano dessas relações; a crítica já não funciona só «por dentro» — num espaço exclusivamente diegético —, expõe também a natureza da relação de Woody Allen com o cinema: enquanto espectador — cena já citada na qual intervém Marshall McLuhan. É verdade que, profundamente, Woody Allen não fez mais do que alargar o domínio das suas citações, tirando a ideia desta introdução dum neo-real do cinema europeu — aliás só encontra o «estilo» pessoal após uma série de exercícios de estilo, com os quais adquire uma mestria formal plagiando Bergman (Intimidade, Uma comédia sexual numa Noite de Verão) e Fellini (Stardust Memories) —, mas o que o cinema fez só o cinema podia desfazer. A temática de Woody Allen torna-se coerente: o amor só pode existir graças ao cinema — que fornece o modelo — mas ao mesmo tempo contra o cinema — porque o modelo é falsificado (Zelig), inacessível, desadaptado (A Rosa Púrpura do Cairo), etc. A ambivalência desta atitude para com o cinema confere aos filmes o tom agridoce que todos os críticos sublinharam. Assim, enquanto cinéfilos, o discurso de Woody Allen sobre o cinema diz-nos directamente respeito. Enquanto espectadores somos protagonistas do filme, aptos a identificar Zelig no meio das notícias do mundo tão rapidamente como Mia Farrow; se não assumirmos o desejo infantil da mesma Mia Farrow de entrar em contacto directo com o personagem de A Rosa Púrpura do Cairo, o argumento do filme perde toda a consistência. Simultaneamente, devemos ser capazes de recuo, pois a presença de Zelig não passa duma colagem, a do herói de A rosa Púrpura do Cairo é uma metáfora tomada à letra. A nossa imagem no ecrã remete-nos para a posição inicial de Woody Allen espectador. A presença de W. Allen no écran não faz deste um espelho antes um espelho sem aço — uma vez que o contacto é impossível por definição e que a mediação é necessária — através do qual, para além da imagem, encontramos o nosso próprio reflexo, e, para além deste reflexo, Woody Allen, tão próximo. Toda a teoria do cinema implica uma definição da função deste medium. Godard diz que faz filmes para «falar com o carniceiro» mas na sua boca esta afirmação é um dito espirituoso, W. Allen não faz a sua própria psicanálise ao realizar os seus filmes, muito pelo contrário — uma análise desenrola-se sob forma de monólogo —, ele enceta e mantém um diálogo em que o cinema serve de intérprete. E, como se trata de falar cinema, esse diálogo só pode ser o amor. Talvez devêssemos ter começado por aqui; Woody Allen ofereceu-nos os mais belos filmes de amor, como já desde há muito não nos era dado ver. S.


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