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ENTREVISTA
from CH 399
40 ANOS DE RESISTÊNCIA
CRÉDITO: FOTO IEA-USP CRÉDITO: FOTO MAURO BELLESA
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Fundadores da revista Ciência Hoje, os físicos Alberto Passos Guimarães e Ennio Candotti e o neurocientista Roberto Lent relembram como tudo começou, destacam a importância do projeto na mobilização de cientistas pela abertura política, com textos que figuram até na Constituição
O cenário era a redação de uma importante revista de divulgação científica, no 45º andar de um prédio em Nova York. Os personagens: um editor estadunidense para lá de tarimbado e um jovem cientista brasileiro que buscava conselhos para estruturar e lançar a primeira revista de divulgação científica do Brasil dali a poucos meses. “Esqueça isso!”, vaticinou o editor, e o rapaz saiu de lá desanimado, de cabeça baixa. Mas o fato é que meses depois, em julho de 1982, era lançado o primeiro número da CIÊNCIA HOJE. Curioso é que o tal editor não foi o único a decretar que era missão impossível produzir, em tão pouco tempo, uma publicação brasileira multidisciplinar escrita por cientistas para o público em geral. Boa parte da comunidade científica nacional nem acreditava que o projeto passaria daquele número 1 lançado na 34ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Quarenta anos depois, nesta entrevista, os físicos Alberto Passos Guimarães e Ennio Candotti e o neurocientista Roberto Lent (aquele mesmo desapontado em NY), fundadores da revista junto com o geneticista Darcy Fontoura de Almeida (1930-2014), contam como nasceu a ideia do projeto ao final dos anos 1970, ainda na ditadura militar, da sua importância na luta pela redemocratização e para uma transformação da SBPC e da política científica do país. Relembram também muitos dos cientistas e intelectuais essenciais para o projeto ir à frente – não sem muitos tropeços, crises e ameaças de extinção –, dando frutos como a Ciência Hoje das Crianças, o Jornal da Ciência e a análoga argentina da publicação, a Ciencia Hoy.
Valquíria Daher Jornalista ICH
CIÊNCIA HOJE_ Como nasceu a ideia de fazer uma revista de divulgação científica em plena ditadura militar? ROBERTO LENT_ Em 1976, eu me tornei secretário regional da SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência] no Rio de Janeiro, e havia um sentimento juvenil em nós todos de luta contra a ditadura militar. Uma das coisas que fizemos foi uma série de conferências chamada “Ciência às Seis e Meia”, em que chamávamos pesquisadores para falar para o que acreditávamos ser um grande público, no auditório da Academia Brasileira de Ciências, mas, na verdade, eram umas 20 ou 30 pessoas, entre estudantes e outros colegas interessados no assunto. Vejo isso como o começo da nossa própria sensibilização para a importância da divulgação científica. Criamos então, no âmbito da Secretaria Regional da SBPC no Rio, um grupo para avaliar a possibilidade de criar uma revista de divulgação científica. A Scientific American era, de certo ponto de vista, o modelo. Depois, eu fui para o exterior para fazer o pós-doc, e o Ennio me sucedeu como secretário regional da SBPC no Rio, em 1979. Foi ele quem, realmente, viabilizou a criação da revista, anos depois. Ennio teve uma persistência admirável de tornar aquilo perene, mas a ideia começou com o grupo de jovens que tinha vontade de levar ciência para o grande público. ALBERTO PASSOS GUIMARÃES_ Minhas lembranças são um pouco diferentes das do Roberto, e vejo um protagonismo maior dele nessa história. Como primeiro secretário regional da SBPC do Rio, ele não se limitou a cobrar dos sócios, que era o esperado. Criou uma diretoria, da qual faziam parte Reinaldo Guimarães, Ennio Candotti, Mirian Limoeiro e eu. Nós nos reuníamos no bar do “Manel” (no campus da Praia Vermelha da UFRJ) e, logo, conseguimos uma sala num prédio ali ao lado, que era do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (a casa 27, que anos mais tarde se tornou sede da CH). Essa diretoria regional passou a ser uma entidade com uma ambição muito maior e realizou uma série de ações, como o “Ciência às Seis e Meia” e muitas outras conferências. Além dessa ligação, Roberto e eu éramos vizinhos em Laranjeiras e nos encontrávamos constantemente para conversar, estudar música e falar outras abobrinhas. Em 1978, tivemos uma conversa sobre divulgação científica. Desde a adolescência, eu era leitor do físico e divulgador George Gamow (1904-1968) e, esporadicamente, da revista Scientific American, criada em 1845, bem anterior à nossa (risos). Mais tarde, ele me surpreendeu, anunciando que tinha feito uma proposta de uma revista de divulgação científica. Começamos a reunir um grupo de pessoas interessadas, e, em fins de 1978, chegamos ao documento “Ciência Hoje – uma revista de divulgação científica”, que distribuímos entre os membros da comunidade científica, com surpreendente grau de concordância das pessoas, que viam na divulgação científica também uma maneira de buscar adeptos, e fazer propaganda da ciência e buscar apoios dos governos para a ciência. Apesar disso tudo, o projeto não avançou na época. ENNIO CANDOTTI_ Eu acrescentaria que se juntaram vários projetos de jovens participativos daquele tempo, que podemos chamar de resistência. Eu tinha acabado de chegar da Itália, onde, em 1973, vivi em Milão, trabalhando com a Sapere, uma revista de divulgação científica muito engajada politicamente. E voltei para o Brasil com o todo o gás para pensar em divulgação científica. Na época, Roberto e Alberto estavam, de fato, pensando em algo semelhante, e se juntaram várias correntes tanto de divulgação científica como de interdisciplinaridade, o que é algo que acho muito importante. Os irmãos e antropólogos Otávio e Gilberto Velho (1945-2012), o médico e geneticista Darcy Fontoura de Almeida (1930-2014), o historiador José Murilo de Carvalho… Tivemos vários aportes de cientistas sociais e de jovens pesquisadores de diferentes áreas. O clima político era favorável a essas manifestações porque havia resistência, havia oposição, havia contra quem trabalhar.
O MUNDO ESTAVA SE TRANSFORMANDO, E ESTÁVAMOS DANDO A NOSSA PEQUENA CONTRIBUIÇÃO. ESSE MOVIMENTO FOI ESSENCIAL PARA CRIAR O CLIMA QUE JUSTIFICOU TODOS OS SACRIFÍCIOS, AS NOITES MAL DORMIDAS E OS ESFORÇOS NECESSÁRIOS PARA CRIAR UMA REVISTA, MOVENDO MONTANHAS Ennio Candotti
CH_ O contexto político então teve grande peso na criação da revista… EC_ Sem dúvida. Como Roberto e Alberto mencionaram, o passo central pode ter sido quando Roberto assumiu a Secretaria Regional da SBPC do Rio, iniciando um movimento que juntava gente de ciências, de divulgação, de política, desafiando também a SBPC a se renovar e a participar ativamente do movimento pela redemocratização. A SBPC era um tanto parada, centrada em São Paulo e dominada pelo físico Oscar Sala (1922-2010), um santo nome, pessoa muito querida, mas, na época, um entrave ao engajamento da SBPC nos movimentos pela redemocratização. O Sala era muito cauteloso e nos puxava as orelhas sempre que achava que estávamos fazendo alguma coisa que não era própria para SBPC. E nós não ouvíamos, fomos para frente e politizamos a SBPC. Sim, politizamos, essa é a palavra correta, tanto que, poucos anos depois, em 1979, mudamos o estatuto da SBPC para que ela tivesse dimensões nacionais, com participação de base mais ativa dos com secretários regionais e dos sócios. O mundo estava se transformando, e estávamos dando a nossa pequena contribuição. Esse movimento foi essencial para criar o clima que justificou todos os sacrifícios, as noites mal dormidas e os esforços necessários para criar uma revista, movendo montanhas.
CH_ Depois de toda essa movimentação, como, de fato, se deu o lançamento da revista em 1982? Como vocês se prepararam? RL_ Eu estava nos Estados Unidos fazendo pós-doc entre 1979 e 1982. O Ennio me ligou e disse: você precisa investigar aí o que os americanos estão fazendo de revista de divulgação científica. Eu lembro que fui a uma [redação], do grupo Time-Life, no 45º andar de um arranha-céu em Nova York, acho que em março de 1982. Não sei como consegui ser recebido pelo editor e expliquei a ele que estávamos criando uma revista [de divulgação científica no Brasil] e queríamos lançá-la em julho. Ele morreu de rir, me perguntou qual era a pauta, e eu não sabia. APG_ Você contou que ele respondeu “forget it”... [“esqueça”, traduzido do inglês] RL_ “Forget it”. Exatamente. E voltei de lá todo desanimado. Contei essa história para o Ennio, que já estava a todo vapor com o Lynaldo Cavalcanti (então presidente do CNPq), com quem ele conseguiu dinheiro para fazer o número zero. Na reunião da SBPC daquele ano, em Cam-
REINALDO GUIMARÃES, membro do conselho editorial do Instituto Ciência Hoje e professor do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ
“Por que a CIÊNCIA HOJE apareceu em 1982, de onde veio aquela inspiração? Em 1982, a política científica brasileira mais institucionalizada era muito nova e muito recente O CNPq havia sido fundado em 1951, menos de 30 anos antes. Foi um momento em que a produção científica brasileira apareceu com muita força. O regime militar já estava em frangalhos, e isso estimulou também muito esse tipo de iniciativa. A comunidade científica estava empoderada para fazer coisas. Havia ainda o papel que a SBPC exercia naquele final dos anos 1970 e 1980 tanto na política científica como na política mesmo. Acho que tudo isso contribuiu para a criação de uma revista de divulgação feita no Brasil e assinada por cientistas brasileiros. Havia as revistas estrangeiras, mas isso era uma novidade aqui.
No início, houve uma repercussão muito grande, e a revista teve um papel fundamental na divulgação científica, ainda que seja difícil de medir. Claro que certos acontecimentos com uma dimensão social muito grande têm um impacto maior. A pandemia de covid-19, por exemplo, fez com que a divulgação científica no Brasil e no mundo tivesse um impulso enorme, mas a Ciência Hoje cumpriu e cumpre um papel poderoso nessa história. E mais: hoje há esse personagem de divulgador científico, e acho que a Ciência Hoje teve um papel importante em formar gente dessa categoria.”