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CIÊNCIA & CULTURA POP
from CH 399
pinas, começamos a colher assinaturas. Eu já estava de volta, e tivemos uma oposição ferrenha da Carolina Bori (pesquisadora e psicóloga, 1904-2004). Ela dizia: “Como que vocês estão pedindo dinheiro para fazer assinatura se só têm o suficiente para publicar o número zero? A revista vai morrer!”. APG_ É preciso lembrar que foi dois anos antes disso, em 1980, que o projeto começou a se mover. A SBPC, então presidida pelo físico José Goldemberg, criou uma comissão para estudar a criação de uma revista de divulgação, com Darcy [Fontoura], José Reis, Henrique Krieger e eu. O grupo reuniu-se no Rio algumas vezes e fez contatos com editoras, especialmente com a Nova Fronteira; foi feito um modelo da revista. Finalmente, em 1982, surgiram as condições que viabilizaram o início do proÉ PRECISO LEMBRAR QUE O GOVERNO, jeto: o CNPq concedeu 10 mil cruzeiros, o suficiente para o primeiro número. O então presidente da SBPC, Crodowaldo Pavan (geneticista, ESPECIALMENTE ATRAVÉS DO SERVIÇO NACIONAL DE INFORMAÇÕES (SNI), PRESSIONAVA AS EMPRESAS ESTATAIS 1919-2009), se entusiasmou com a ideia. E a diretoria da SBPC indicou A NÃO CONTRIBUÍREM COM ANÚNCIOS os quatro editores que iriam dirigir a revista: Darcy, Ennio, Roberto e eu. Um conselho editorial com nomes de diferentes estados foi criado. Alberto Passos Guimarães EC_ Pavan estava do nosso lado, mas o Sala não. Dizia que devíamos passar um tempo na Scientific American. Mas fizemos e, na reunião anual, vendemos 10 mil exemplares do número zero e ainda fizemos uma segunda edição. APG_ A revista foi um sucesso notável na reunião anual. Eu me lembro de muitas pessoas olhando e não acreditando naquela coisa bonita, feita no Brasil. Era uma surpresa mesmo. Apesar disso, me lembro de ter ido a Belo Horizonte participar de um evento para apresentar a revista e levei referências de revistas que pararam no número 1. Há infinitas revistas que brilharam uma única vez. Naquele momento, apesar de já termos conseguido dinheiro para um segundo número com a Finep, nós éramos candidatos a esse grupo seleto de revistas (risos). EC_ Acreditar que a revista não continuaria era uma reação muito própria de quem desconhecia que o nosso motor era político. Nós estávamos participando de um movimento de resistência e de afirmação da comunidade científica na construção da abertura. Naquele mesmo ano, lembram que houve o atentado do Riocentro? Estávamos em um momento muito sensível da política local e achávamos que a comunidade científica poderia e deveria participar com uma certa presença.
CH_ A revista sofreu com a censura ou algum tipo de pressão do regime militar? APG_ Na busca por anúncios das empresas estatais, encontramos pressões contrárias: é preciso lembrar que o governo, especialmente através do Serviço Nacional de Informações (SNI), pressionava as empresas estatais a não contribuírem com anúncios. Somente recentemente vimos materiais publicados pelo SNI divulgando entre os órgãos do governo a notícia do lançamento da CH! EC_ O Lynaldo levou um puxão de orelhas por ter financiado a revista, mas ele desconversava. Dizia que era uma questão de divulgação científica, que era preciso fazer. Sim, o SNI observava, mas o Golbery (do Couto e Silva, 1911-1987, um dos criadores do SNI e ministro do governo militar) conhecia o pai dos irmãos Velho e até assinou a revista. Tínhamos uma xerox do cheque assinado por ele (risos). Havia contradições. Respeitavam o que estávamos fazendo, mas nos observavam por estarmos militando por uma abertura mais avançada do que aquela que eles queriam ver realizada. Mas não sofremos censura. Esse clima não ocorria mais em 1982, só com grupos localizados como o do Riocentro, mas já estavam sendo isolados. Claro que com o atentado, tivessem obtido sucesso, a história poderia ser diferente, só que a bomba estourou no colo deles. Mas esse contexto é importante porque sem esse motor, esse engajamento, não teríamos alcançado a mobilização da comunidade científica em uma linha alternativa à da centralização paulista da SBPC. Pavan estava conosco e, no país, estava se preparando a abertura para 1985. Lembro que em 1984, publicamos o número sobre a Amazônia. E era um texto denso.
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CH_ Como já mencionaram aqui, o projeto de criar a Ciência Hoje teve oposição por
haver conflito de forças na SBPC. Podem falar mais sobre isso?
APG_ A impressão que eu tenho é que esse conflito entre a SBPC centralizada em São Paulo e a SBPC com sedes no Brasil todo estava no pano de fundo sim. Mas, com o nascimento de Ciência Hoje, demos um passo tão grande que se abriu um horizonte tão mais amplo que essa discussão, que, apesar de não ter desaparecido, perdeu muito do sentido, porque tínhamos no conselho [editorial] representantes do Brasil todo, e que vinham às nossas reuniões. Além disso, a partir de 1985, passamos a ter sucursais, porque, como a sede ficava no Rio, a tendência era ter muitos autores daqui. As sucursais garimpavam autores em outros estados, o que deu um toque mais nacional, principalmente as sucursais de Belo Horizonte e Recife. RL_ Outro aspecto também é que, da mesma forma que a SBPC era centralizada em São Paulo, a Academia Brasileira de Ciências era centralizada no Rio. Então havia uma divisão do poder na comunidade científica. Acho que a existência da Ciência Hoje contribuiu muito para quebrar essa polarização dentro da comunidade científica e abriu o caminho para uma aliança entre essas duas entidades, que hoje funcionam com muita sintonia. São muito combativas juntas, pela democracia, pela política científica de Estado, e isso começou um pouco na nossa época. EC_ Eu só queria registrar que, em 1979, a mudança do estatuto da SBPC foi o passo-chave. Fomos até às seis horas da manhã, atravessamos uma noite, para mudar esse estatuto e dar ao conselho uma presença nacional, ser eleito por regiões, e não eleito só pelos mesmos nomes. Isso deu força às regionais. Ainda hoje há resistência ao conselho por representação regional. É incrível que passados 30, 40 anos as mesmas pessoas que naquela época se opunham à mudança do estatuto na direção ainda existam. Foi uma virada importante.
CH_ Ter cientistas escrevendo para um público leigo foi um desafio? Ainda é?
E a participação dos jornalistas?
APG_ Foi um lento aprendizado: muitos membros da comunidade científica, ao apoiar o projeto, viam imediatamente que era importante ter uma linguagem adequada ao público não especializado. Muitos especialistas desenvolveram essa capacidade de comunicação. A divulgação científica no Brasil não tinha um peso importante, destacando-se o trabalho pioneiro de José Reis (biólogo, 1907-2002). Chamava a atenção também, e negativamente, que o noticiário sobre ciência fosse principalmente baseado em telegramas de agências estrangeiras, descrevendo sempre desenvolvimentos alcançados em países estrangeiros, especialmente no mundo desenvolvido. Mas, hoje, cresceu muito o número de cientistas que escrevem para o grande público, em parte por contribuição da Ciência Hoje. E tanto dentro da Ciência Hoje e nos outros órgãos, a interação com os jornalistas foi vital. O número de cursos de informação e de divulgação científica explodiu nas últimas décadas, mudou muito esse quadro. E acho que demos uma contribuição para isso. Internamente, havia essa interação entre cientistas e jornalistas. EC_ Há três etapas. A primeira: a hipótese de que cientistas escrevam diretamente para o leitor, ou seja, do produtor ao consumidor, tinha a meta de dar à divulgação científica uma outra dimensão, que não estava sendo explorada na divulgação científica feita por jornalistas. Nunca fomos contra os jornalistas, pelo contrário. Nós, simplesmente, ocupamos outra raia, outra faixa que o jornalista não ocupava. Eu vou dar um exemplo: cientistas podem dizer que não sabem; jornalistas não podem. Ou o jornalista escreve aquilo que sabe ou não escreve. Enquanto que ao cientista é permitido colocar dúvidas no texto: “Olha, até aí vai, mas depois eu não sei…” Outro ponto: sempre tivemos o cuidado de recolher artigos dedicados a pesquisas em curso ou pesquisas avançadas. Evitávamos publicar artigos de revisão. APG_ Sim, a gente queria que os pesquisadores se colocassem dentro dos artigos. EC_ Desde o início tivemos dois jornalistas: o Argemiro Ferreira e o Sérgio Flaksman. Sérgio reescrevia os artigos redigidos de forma um tanto azeda pelos cientistas, e o Argemiro dava um tom mais dinâmico e mais jornalístico.
APG_ Mas é verdade que havia alguns cientistas que não toleravam isso, não queriam que mexessem e pronto. RL_ Uma coisa importante é que conseguimos construir uma área de convívio e de compartilhamento entre cientistas e jornalistas porque as práticas das duas categorias são diferentes por natureza. Não que um seja ruim ou o outro bom, mas, por exemplo, os tempos dos jornalistas são muito diferentes dos tempos dos cientistas. Os cientistas escrevem e reescrevem uma coisa para sair em três meses. O jornalista tem que escrever algo para ficar pronto em duas horas. E a gente conseguiu, dadas as características da revista, que era mensal, uma mediação, uma intermediação interessante do cientista com o jornalista. Outro aspecto é a linguagem, obviamente. O cientista escreve duro, técnico, difícil de compreender, e o jornalista quer o contrário. E a revista proporcionou um ambiente de tolerância, vamos dizer, com as manias dos dois lados. Do ponto de vista da comunidade científica, isso foi muito importante porque permitiu que o cientista compreendesse que o jornalista não é ruim porque tem que terminar um texto em duas horas, é da natureza do trabalho dele. Assim também, o jornalista aprendeu que o cientista tem um tempo. É como o Ennio disse, ele pode dizer não sei. Isso significa o seguinte: eu vou verificar e, para eu verificar, preciso de uns quatro ou cinco dias para olhar a literatura correspondente. E o jornalista não pode esperar. Essa dicotomia, o convívio desses dois personagens, eu acho que foi um ganho que tivemos com a Ciência Hoje. Depois apareceram várias outras revistas, a da Fapesp, as institucionais, a Superinteressante… Isso acentuou um pouco a compreensão dos cientistas de que eles tinham que se debruçar sobre essa tarefa de divulgar ciência. E aí apareceram cientistas escrevendo em vários lugares. O pioneiro foi o José Reis, que todos nós conhecemos, mas depois vários outros nomes começaram a se dedicar a escrever para a grande imprensa ou revistas de público amplo. E eu acho que a Ciência Hoje foi pioneira nessa direção, de como juntar as duas partes e criar um produto administrável.
CH_ A revista chegou a ter uma edição com tiragem de 55 mil exemplares, mais do que alguns jornais diários impressos hoje. Ciência atraía tanta atenção? APG_ Havia poucas alternativas à época ou ausência de alternativas. A revista era única e atraía muita atenção. Mas minha resposta é que isso foi um mistério, um milagre. Também havia o prestígio social da SBPC, que cresceu muito nos anos de contestação e no final da ditadura. EC_ Tínhamos revistas com grandes tiragens. Eram enviadas às bancas, em um grande sacrifício, com a volta de um número grande de exemplares. Uma equação que hoje seria tratada de outra forma. Mas não tínhamos mesmo muita competição. A [editora] Abril tentou lançar uma revista e fracassou, acho que era uma adaptação da Discovery. A Superinteressante veio para substituí-la depois.
CRÉDITO: FOTO ZÔ GUIMARÃES JOSÉ MONSERRAT FILHO, integrante do primeiro conselho editorial da revista e editor do Jornal da Ciência
“O Brasil não tinha, naquela época, uma revista de ciência. A revista tinha novidades importantes como ter os próprios cientistas escrevendo, o que na época era muito raro. A CIÊNCIA HOJE foi um dos meios para promover as ideias da comunidade científica, que era muito desunida e não tinha organização – isso começou a mudar naquela época.
O Jornal da Ciência [lançado em 1985] foi uma iniciativa minha. Eu propus ao Ennio Candotti a criação de uma espécie de um boletim que cresceu, depois, para ser um jornal. Foi muito bom. Exerceu um grande papel na SBPC. Era mais simples de fazer e chegava mais rapidamente às pessoas do que a revista.”