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BASTIDORES DA CIÊNCIA
from CH 399
E qual o papel dos espaços de ciência?
Museus e centros de ciência têm uma posição privilegiada para transformar a relação ciênciasociedade. No mundo, estimase que mais de 300 milhões de pessoas frequentam esses espaços a cada ano. No Brasil, temos cerca de 270 instituições desse tipo distribuídas por todas as regiões. A concentração geográfica, no entanto, ainda é uma questão: esses espaços são mais presentes nas cidades mais ricas e, dentro destas, nas áreas de alta renda ou turísticas. Mesmo quando estão fora dos bairros de elite, ainda há uma disparidade grande entre o público visitante e o perfil da população brasileira. E isso não é apenas uma percepção, muitas pesquisas apontam essa desigualdade.
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Investigação no MAST
O Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), localizado na cidade do Rio de Janeiro, foi pioneiro na realização de investigações sobre o tema da inclusão social em museus de ciências. Os estudos, realizados entre 2006 e 2014, partiram do conceito de que a experiência e o empoderamento são capazes de promover laços de pertencimento, identidade, além de uma relação afetiva e estética com o conhecimento científico.
Em uma das pesquisas, foram convidados adultos e famílias advindas das camadas mais pobres para uma visita com mediação da equipe do museu, seguida do preenchimento de um questionário. Na ocasião, foi oferecido transporte e lanche aos participantes. Os resultados revelaram boa avaliação da visita e foi constatada uma grande percepção de ganho em relação aos chamados aspectos cognitivos do empoderamento, que indicam uma percepção de ganho de aprendizagem relacionada à visita.
Mas, em relação aos aspectos sociais do empoderamento e a conexão com a vida cotidiana, a percepção de ganho foi bem menor. Propõese que o empoderamento desses visitantes está relacionado ao vínculo entre o que foi observado e seu cotidiano ou o aproveitamento daquela visita para a melhoria das condições de vida das pessoas. Além disso, a visita representou a inauguração de um tipo de experiência para muitos que nunca tinham visitado um museu, o que teria valor por si. A visita, no entanto, não se repetiu de forma espontânea, conforme apontado em entrevistas realizadas mais de um ano após as visitas estimuladas. Portanto, não foi modificado um hábito social e cultural.
CRÉDITO: FOTO MARIA BUZANOVSKY/FIOCRUZ
Perfil da população X público dos museus na cidade do Rio de Janeiro
Análise na Grã-Bretanha
No Reino Unido, a pesquisadora Emily Dawson, do departamento de estudos de ciência e tecnologia da University College London, realizou visitas a museus de ciência com grupos de minorias étnicas. Seus resultados ressaltam que os indivíduos deixaram os museus ainda menos propensos a repetir a experiência. Os relatos transpareceram a violência simbólica vivida nos espaços que reproduzem desvantagens sociais em vez de atuarem para rompêlas. Dawson argumenta o quanto os benefícios atribuídos aos museus de ciências não estão igualmente disponíveis para todos, pois as visitas podem reforçar desvantagens sociais para alguns visitantes. Em todos os grupos, os indivíduos vivenciaram as instituições como locais indesejáveis, onde seus conhecimentos, práticas e identidade são ignorados ou desqualificados. Assim como a experiência brasileira, essa pesquisa não tinha expectativas de promover mudanças radicais nas percepções dos visitantes após a realização de apenas uma visita, mas, neste caso, eles se posicionaram contra as instituições e descartaram a possibilidade de visitálas novamente.
Pesquisa aponta exclusão
No Rio de Janeiro, um consórcio de museus, o Observatório de Centros e Museus de Ciência e Tecnologia, vem realizando, desde 2005, pesquisas para estabelecer o perfil do público que visita esses estabelecimentos. O resultado, que corrobora outras pesquisas, mostra que, apesar dos esforços dessas instituições, o público que as frequenta ainda é predominantemente branco, com renda acima da média e com formação de ensino superior.
O Museu da Vida, instituição vinculada à Fiocruz, é um dos museus desse consórcio. O museu tem um histórico de relacionamento com seu território, predominantemente caracterizados por grandes complexos de favelas e comunidades socialmente vulnerabilizadas. Das instituições mapeadas, é a que tem o público que mais se aproxima da distribuição demográfica da própria cidade. Em um estudo recente, mapeou sua área de influência, com o qual estabelece relações no espaço, tempo e memória, além do diálogo com grupos sociais. A pesquisa foi realizada nas zonas central, Norte e parte da Zona Oeste da cidade, regiões de onde vem a ampla maioria do público de visitação espontânea do museu, onde habitam cerca de 56% da população da cidade. A região engloba bairros com os seis menores IDHs e inclui os cinco dos maiores complexos de favelas da cidade.
56% Brancos 67% Ensino Superior Incompleto ou + 51% Renda 10 SM Ou +
47%
Brancos 4% Ensino Superior +Incompleto ou 14%
Renda 10 SM Ou +
A pesquisa revelou que, para o público avaliado, a visita ao museu proporcionou ganho significativo em uma série de dimensões da relação com a ciência: percepção de compreensão e conhecimento; interesse e curiosidade, e participação em atividades e eventos relacionados à ciência e tecnologia. Esse ganho se mantém nessa população, que é predominantemente vulnerável socialmente, e tem continuidade também independentemente da escolaridade e da faixa de renda.
A pesquisa mostrou ainda que essa população é mais capaz de discernir informações falsas sobre ciência. Esses ganhos aumentam quanto maior o número de visitas ao museu. Por outro lado, quase metade da população nunca tinha ouvido falar do museu, ou seja, uma boa parte das pessoas que vivem próximas da instituição não sabe da sua existência.
Obstáculos e vontade de mudar
Cada vez mais, pesquisadores e profissionais de museus têm se preocupado com práticas inclusivas, mas grande parte relata não saber como começar. Dentre as investigações comentadas neste artigo, há alguns pontos de consenso na direção da inclusão, como a adoção de compromisso institucional de longo prazo, combinado à proatividade para iniciar um diálogo respeitoso que leve em conta os valores, as práticas, as aspirações e as motivações do público. Ir ao encontro, convidar, comunicarse com o público. Esta abordagem pode representar embates por parte da cultura institucional e do preconceito estrutural que perpassam as instituições, assim como profissionais e público, pela dificuldade que existe em se lidar com diferenças. Além disso, alguns museus e centros de ciência ainda acreditam que basta manter suas portas abertas, e isso é o suficiente para ser inclusivo com seus públicos, mesmo que suas exposições reproduzam violências simbólicas.
São também conhecidas as dificuldades estruturais e limitações no tamanho das equipes que trabalham nas instituições. É importante lembrar também a relativa juventude de grande parte dessas instituições em relação ao cenário mundial e a inconsistência de políticas públicas na área em nosso país, aspectos que colaboram para a precariedade da estrutura de muitas delas. Para contornar essas limitações, é indicada a realização de parcerias de longo prazo com ONGs do território, por exemplo. Esse movimento é considerado essencial para viabilizar o diálogo, tanto para acesso ao público quanto para a contextualização da experiência que será encontrada no museu. A contratação de profissionais que vivam no território também foi uma importante ação mencionada por funcionários e pesquisadores.
Outro ponto relevante é que grande parte das atividades cotidianas migraram para o meio digital, um ambiente que segue excludente para o público em vulnerabilidade social, seja por questões de acesso, conexão, dispositivo, seja pelas mesmas questões culturais ou de identidade que excluem os pobres dos museus de ciências. Fazse urgente repensar políticas públicas de longo prazo para a divulgação da ciência e tecnologia, especialmente aquelas direcionadas ao público em vulnerabilidade socioeconômica.
Os últimos anos, marcados pela pandemia da covid19, nos trazem a demanda por um novo contrato social entre o campo científico e a sociedade. O escancaramento dos impactos na saúde das iniquidades sociais, o uso político da desinformação como estratégia de mobilização social e a demanda por maior envolvimento da população nas questões científicas nos apresentam um contexto de mudança necessária. Nesse panorama, cabe aos centros e museus de ciência se reafirmarem como espaços democráticos, refletirem sobre seu histórico excludente e como suas representações poderiam traduzir violências simbólicas. Ao mesmo tempo, repensar as práticas imbuídas do racismo estrutural, reafirmando o compromisso de atuarem como um espaço de acolhimento, diálogo e debate, no lugar de simplesmente propagar informações e conteúdos sobre uma ciência distante da realidade da maioria da população. g
LEIA +
BOURDIEU, P. Os três estados do capital cultural. In: CATANI, Maria Alice (Org.). Escritos de Educação. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999. p. 71–79.
CASTELFRANCHI, Y. Por que comunicar temas de ciência e tecnologia ao público? (Muitas respostas óbvias... mas uma necessária). In: MASSARANI, Luisa (Org.). Jornalismo e ciência: uma perspectiva iberoamericana. 1. ed. Rio de Janeiro: Museu da Vida, COC, FIOCRUZ, 2010. p. 13–22.
CASTELFRANCHI, Y, Notícias Falsas na Ciência, https:// cienciahoje.org.br/artigo/ noticias-falsas-na-ciencia/
CENTROS e museus de ciência do Brasil: 2015. Rio de Janeiro: ABCMC, Casa da Ciência, Museu da Vida, 2015. il.
MUSEUS de ciência e seus visitantes: estudo longitudinal - 2005, 2009, 2013 / Sonia Mano, Sibele Cazelli, Andréa Fernandes Costa, José Sergio Damico, Loloano Claudionor da Silva, Wailã de Souza Cruz, Vanessa Fernandes Guimarães. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz / Casa de Oswaldo Cruz/ Museu da Vida, 2017.
Instagram Science Capital Brasil, https://www.instagram. com/sciencecapitalbrasil/
FABRICAÇÃO DOSPORTENTOS
Georgina Martins_ Curso de Especialização em Literatura Infantil e Juvenil, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro > Escritora de livros para crianças e jovens
Uma das crenças do século 6 da nossa era propagava que a Terra era quadrada, tendo como parâmetro o Tabernáculo de Moisés. Sua descrição seria a de uma gaiola onde estavam encerrados o Sol, a Lua e todos os astros. No entanto, outras formas de representar a Terra foram surgindo com o tempo: oblíquas, triangulares, ovais ou semicirculares, e vários mapas foram criados para dar conta dessas representações. Qualquer uma era possível, desde que estivesse abalizada pelas escrituras sagradas.
Em conformidade com o pensamento de que a Terra era quadrada, o ocidente medieval acreditava que nos confins do planeta habitavam raças fabulosas, seres que não se podia definir como homem ou animal. Relatos de historiadores, viajantes, poetas, clérigos enfeixavam esses seres em listagens maravilhosas.
Até mesmo Cristóvão Colombo dizia que “nos quatro lados, nossa Terra é habitável por uma terra desconhecida”. Essa afirmação decorria da dificuldade em representar o planeta, uma vez que os mapas medievais não o ajudavam. No entanto, o navegador, já intuindo a esfericidade do planeta, o representava em forma de pera, supondo que o paraíso ficava na par te superior, logo abaixo da haste da fruta, e por ser o ponto mais elevado não fora atingido pelo dilúvio. Em seu diário da descoberta da América, ele jurou ter avistado três sereias saltarem sobre o mar, “mas elas não eram bonitas como se diziam, pois tinham cara de homem”. Esse diário foi visto pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) como o primeiro livro do realismo mágico, porque muitas das descrições de Colombo nada deviam aos enredos dos contos maravilhosos.
Quando contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982, García Márquez escreveu um discurso que pode ser considerado material fundamental para entendermos a nossa realidade, e também o que muitos críticos de literatura (alguns de forma pejorativa) chamaram de realismo mágico. No discurso, que deixou a Academia Sueca de Letras abismada, o laureado dá conta de que o insólito e o maravilhoso de sua produção literária tinham como pano de fundo a barbárie latinoamericana – daí o título A solidão da América Latina.
A crença do europeu na existência de monstros e toda sorte de seres maravilhosos que, em geral, habitavam um lugar desconhecido, não colonizado, servia para justificar a inferioridade, a incivilidade e a necessidade de cristianização dos outros, como ocorreu na descoberta do novo mundo, no continente africano e nas Índias.
Até mesmo o grande naturalista francês Conde de Buffon (17071788), que influenciou as teoria evolucionistas de Darwin e Lamarck, registra em sua monumental obra História Natural que, na fronteira dos desertos da Etiópia havia um povo chamado de acridófago ou comedores de gafanhoto. Tratavase de um povo negro, muito magro e muito ligeiro nas corridas, e que, na primavera, se alimentava do tal inseto; o que até então não seria inverossímil, tampouco preconceituoso, não fosse o fato de, por conta desta alimentação, nasceremlhes na pele insetos alados que se multiplicavam, provocando uma insuportável comichão que levava à morte. Os tais gafanhotos começavam a devorar o ventre, o peito e até os ossos do infeliz hospedeiro. Buffon reproduz essa história dos relatos de viagem do famoso navegador inglês Francis Drack (c.1540-1596) – corsário e traficante de escravos –, que, em sua viagem ao redor do mundo, conheceu esse povo. O mais incrível deste relato é que Buffon, apesar de achar a história um tanto extraordinária, afirma que ela não lhe parece de todo inverossímil.
Diferente da maioria dos viajantes, Buffon era um intelectual. Formou-se em Direito e dedicou-se aos estudos de Matemática e Medicina, assim como vários outros naturalistas. Essas suas qualificações contribuíram para abalizar, disseminar e fixar o preconceito e o genocídio cometido contra os povos colonizados. g