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DESVENDANDO O COSMOS

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NA REDE/NO RÁDIO

NA REDE/NO RÁDIO

CH_ Então a revista teve força em meio ao processo de redemocratização? EC_ Era 1984, e havia um movimento pelas diretas crescendo, pela redemocratização. A Ciência Hoje estava na linha de frente dos manifestos pró-democratização. A revista estava bastante engajada, era objeto de atenção e de militância. E tinha a marca da SBPC, que, naquela época, graças a nossa interferência (e a Ciência Hoje contribuiu muito para isso), foi levada a participar desse movimento pela redemocratização. Está escrito nas páginas da revista, basta ver os números de 1983 e 1984, que são bastante engajados no processo que estava ocorrendo. Nós queríamos que a ciência tivesse um espaço no novo governo. E de fato se criou o Ministério de CiAS DUAS REVISTAS – CIÊNCIA HOJE E CIÊNCIA HOJE DAS CRIANÇAS – NO ência e Tecnologia. Não quero dizer que foi o resultado da nossa pressão ou da Ciência Hoje, mas a nossa gota de colaboração foi dada e articuÂMBITO GLOBAL DA EDUCAÇÃO SÃO lada, e com detalhes que queríamos colocar no programa de governo – APENAS INSTRUMENTOS. É PRECISO apesar do José Sarney, já que nossas negociações tinham sido com o FAZER UMA SÉRIE DE COISAS NA Tancredo Neves (1910-1985). Também é relevante a participação da SBPC EDUCAÇÃO QUE NÃO PASSAM PELAS e da Ciência Hoje na Constituinte de 1988. Capítulos inteiros da ConstituiREVISTAS ção vieram da Ciência Hoje, eu tive oportunidade de escrever sobre isso Roberto Lent recentemente. São trechos inteiros. Meio ambiente escrito pelo Angelo Machado (médico e entomologista, 1934-2020, editor da sucursal de Minas Gerais); capítulo sobre índios, a violência, o papel da mulher... Tudo aquilo estava nas páginas da Ciência Hoje e foi quase que transcrito para Constituição. Tudo foi preparado regionalmente, com aportes de Pernambuco, do Pará, no Rio Grande do Sul, de Minas Gerais... O capítulo da C&T na Constituição e a permissão para criação de fundações de amparo à pesquisa foram bandeiras levantadas pela Ciência Hoje.

CH_ Podem falar sobre a criação da Ciência Hoje das Crianças? Havia quem achasse

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que cientistas escrevendo para crianças não daria certo?

EC_ Há várias versões. A oficial é de que a revista foi criada e não se deu muita atenção aos que não queriam. A versão alternativa é que Gian Calvi (ilustrador, 1938-2016) e eu éramos leitores, quando pequenos, do Corriere dei Piccoli, um um tabloide que formou os pequenos na Itália. Então pensamos em fazer um Corriere dei Piccoli, e ter um bem-sucedido ilustrador infantil era chave. Alguns artigos eram uma adaptação dos textos escritos para a Ciência Hoje. E deu certo. APG_ Uma pessoa do nosso círculo, gente do bem, do nosso meio, quando viu essa proposta do Ennio, deu uma gargalhada, tão fora isso parecia do nosso mundo. Eu, pessoalmente, acho que a criação da Ciência Hoje das Crianças foi o momento mais importante da história da Ciência Hoje, depois da fundação da CH. Mas muitas pessoas sérias voltadas à divulgação acharam a ideia absurda. Fato é que a CHC ampliou muito o alcance das nossas publicações, nos deu material para ser usado diretamente no ensino e, acima de tudo, estimulou desde cedo o interesse por ciências em crianças em todo o Brasil. EC_ Hoje de manhã, nesta mesma sala que estou no MUSA (Museu da Amazônia, em Manaus), uma arqueóloga, colaboradora de bastante tempo, me confessou que cresceu lendo Ciência Hoje das Crianças. Ela ficou eufórica quando eu disse que tinha participado da criação da revista. É muito bonito saber que isso tem acontecido de fato, com testemunhos de pessoas que foram influenciadas. Isso funcionou. Para além disso, a Ciência Hoje das Crianças se tornou mensal em um momento em que a Ciência Hoje estava para falir. Ela foi uma invenção para criar um produto que o Ministério da Educação poderia comprar em número muito grande e, de fato, comprava um milhão de cópias para todas as escolas por ano. Com isso, tivemos um superávit suficiente para salvar o projeto Ciência Hoje e transitar por aquela época muito difícil da política financeira do país, num cenário de hiperinflação.

CH_ O Brasil ainda enfrenta muitos desafios na educação. Como veem as revistas nesse contexto? RL_ As duas revistas – Ciência Hoje e Ciência Hoje das Crianças – no âmbito global da educação são apenas instrumentos. É preciso fazer uma série de coisas na educação que não passam pelas revistas. Elas são instrumentos que vão contribuir com o que se precisa fazer na educação. E, para isso acontecer, você precisa ter uma sintonia entre a edição das duas revistas e os gestores de educação. A gente se aproximou disso quando vendia (a Ciência Hoje das Crianças) para o FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), mas não me lembro de ter havido nenhum diálogo propriamente de conteúdo entre as partes. Seria muito interessante que essa política fosse englobada por uma discussão crítica, que os educadores se comunicassem com a gente. A inserção de um projeto de divulgação científica na educação depende de haver uma interação ativa entre os gestores, propositores de políticas públicas, com a produção das revistas, que são instrumentos, uma parte do processo, mas não todo. EC_ Concordo plenamente. Eu lembraria aqui que vivemos uma transição entre um sistema tradicional de educação e um novo sistema que ainda não surgiu com clareza, mas mudou completamente a forma como se realiza a divulgação científica e as relações entre o que se descreve e a realidade. A mediação virtual é uma glória e uma tragédia. Não sabemos ainda muito bem como lidar com isso. Vamos ver se nos próximos anos a gente consegue se renovar e acompanhar os tempos. RL_ Eu diria que o projeto Ciência Hoje tem que multiplicar suas formas de atuação. Devemos ter uma agressividade, uma ousadia maior no uso de mediadores digitais, de momentos e de ferramentas digitais para divulgar a ciência. Queiramos ou não, as crianças a partir de seis anos de idade estão usando celular, mesmo que seja o dos pais.

CH_ Para terminar, o que a Ciência Hoje representa ou representou para vocês? RL _ Eu me realizei muito com a Ciência Hoje. E me diverti. Eu diria que foi uma grande diversão, e, quando a gente se diverte se sentindo útil, é a melhor coisa do mundo. Acho que contribui para juntar pessoas, juntar colegas, o projeto é bonito – haja dopamina! – e é reconhecido. Acho que tivemos um papel histórico, não só pela implantação de um projeto de divulgação científica, mas de contribuição com a redemocratização do Brasil depois de uma ditadura de quase 20 anos. Também contribuímos para colocar a ciência como uma alternativa estratégica para o desenvolvimento do país, e isso é muito bom individualmente.

CRÉDITO: FOTO ZÔ GUIMARÃES Otávio Velho, antropólogo, foi editor científico da Ciência Hoje e

membro do Conselho Diretor do Instituto Ciência Hoje

“A CIÊNCIA HOJE foi e continua sendo fundamental para a divulgação científica no país. Quando foi lançada, há 40 anos, não havia nenhuma revista desse tipo no Brasil, e até hoje continua a ser uma publicação muito importante. É difícil a relação entre os cientistas e o grande público. A revista consegue fazer isso muito bem. Uma das virtudes da CIÊNCIA HOJE foi juntar gente das mais diversas áreas. Conseguir essa multidisciplinaridade é raro. Eu, como cientista social, fico particularmente muito feliz e grato por ter me juntado a colegas de outras áreas. Fui um dos pioneiros na fundação da revista. Até hoje me lembro quando Roberto Lent foi ao Museu Nacional, onde eu trabalhava, me convidar para participar da então iniciada Secretaria Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A partir desse trabalho na regional, veio a ideia da revista. Lá, fiz amizades muito importantes, que mantenho até hoje. Então, a CIÊNCIA HOJE, para mim, foi importante em todos os sentidos”.

FOI MUITO FORTE. FOI A FASE MAIS DOLOROSA QUE VIVI EM CIÊNCIA HOJE. DOLOROSA PARA MIM E PARA TODA A EQUIPE. TIVEMOS QUE INTERROMPER A PRODUÇÃO DAS REVISTAS IMPRESSAS, E CHEGAMOS A DEMITIR 2/3 DO NOSSO PESSOAL

Alberto Passos Guimarães APG_ É um grande prazer, uma grande realização e um grande orgulho. É isso. EC_ Eu dividiria em três partes a resposta. Primeiro, é simpático ouvir de pessoas que se formaram lendo a Ciência Hoje e a Ciência Hoje das Crianças, confirmando que estávamos plantando sementes em terra fértil e que foi oportuno. Segundo, participar de um momento importante na vida política do país, particularmente o período pré-Constituinte. Foi muito curiosa a impressão que eu tive depois de ler os textos que, na época, nós não associávamos direito à Constituinte. Mas lendo, vejo que criamos um caldo em que todas essas questões foram tratadas e, muitas vezes, transcritas para a Constituição. E terceiro, é uma questão talvez mais pessoal: se tivesse que repetir a experiência, em vez de usar a terceira marcha e chegar a 60 quilômetros por hora, eu usaria a segunda marcha e ficaria a 20 quilômetros por hora. Os sacrifícios pessoais e familiares foram vorazes, vendo de longe, após 40 anos. RL_ Mas aí a Ciência Hoje não existiria porque foi graças a esse seu acelerador que a coisa toda aconteceu. Essa coisa de, para vencer a crise, fazer um projeto maior ainda.

CH_ Foram mencionadas algumas crises pelas quais o projeto

passou. Alberto esteve à frente do ICH durante sua mais grave crise financeira, houve medo de que CH e CHC acabassem? E o que significa ver o projeto vivo?

APG_ Hoje fui escrever aqui anotações sobre essa pergunta a respeito da crise que nós passamos e me deu uma emoção muito forte. Eu mal consigo falar agora, me vêm lágrimas nos olhos. Foi muito forte. Foi a fase mais dolorosa que vivi na Ciência Hoje. Dolorosa para mim e para toda a equipe. A crise surgiu quando o MEC parou de comprar as revistas que eram vendidas para distribuição em todas as escolas; dentro desse programa chegamos a vender 35 milhões de Ciência Hoje das Crianças. Tivemos que interromper a produção das revistas impressas, e chegamos a demitir 2/3 do nosso pessoal; a dívida do instituto chegou a alguns milhões. Conseguimos sair do buraco devido à dedicação dos/as funcionários/as que se organizaram para terceirizar o trabalho. E foi fundamental a iniciativa da CAPES de incluir nossas publicações no Portal de Periódicos; a criação do Projeto Ciência Hoje digital, para o Município de Osasco, a partir de 2017, permitiu finalmente pagarmos as dívidas e retornarmos gradualmente à vida normal. EC_ Isso transcende a emoção justa de Alberto, mas eu posso acrescentar que nunca foi diferente. A quantidade de vezes em que estávamos para fechar foi muito grande. Infelizmente, não vivemos em um ambiente em que se cumprem os acordos, em que se valoriza algo extraordinário como aquilo que está sendo feito na Ciência Hoje ou em outros projetos. RL_ Ainda bem que tínhamos 30 anos quando começamos…

CH_ Não podemos deixar de falar de Darcy Fontoura, que também figura como um

dos fundadores da Ciência Hoje…

RL_ Foi constante no projeto todo como um protagonista ativo desde o início. Além disso, ele tinha um conjunto de amizades entre artistas plásticos muito grande, e nós conseguimos, por exemplo, que o Carlos Scliar (1920-2001), um artista de primeira linha, ilustrasse alguns números da revista de graça. EC_ Ele era a ponte entre a geração que nos precedeu, apesar de não ser tão mais velho do que nós. Mas ele tinha o contato com uma geração um pouco mais velha, e ele foi muito importante para nos dar cobertura junto a esses interlocutores. RL_ Faltou a gente fazer a pergunta do que o Alberto significou para a Ciência Hoje. Nesses últimos anos, foi a sobrevivência, o renascimento, a perseverança. g

DE VOLTA PRA CASA: DECOLONIZAÇÃO NA PALEONTOLOGIA

Alexander W. A. Kellner_ Museu Nacional/ UFRJ

Academia Brasileira de Ciências

Aprimeira ilustração de um fóssil brasileiro foi publicada no livro Viagem pelo Brasil, dos naturalistas alemães Johann B. von Spix (1781-1826) e Carl F. P. von Martius (1794-1868). Ambos fizeram parte da comitiva da arquiduquesa austríaca Maria Leopoldina (1797-1826), quando ela veio para o país devido ao seu casamento com D. Pedro I. O material ilustrado em 1823 pode ser identificado como uma arcada de um mastodonte (parente distante extinto dos elefantes) do Pleistoceno (há aproximadamente 12 mil anos) e um peixe dos depósitos cretáceos (110 milhões de anos) da bacia do Araripe, no Nordeste brasileiro.

Ao longo dos anos, tanto durante o período colonial quanto depois da independência do Brasil, diversos outros pesquisadores estrangeiros visitaram o território nacional, interessados em desvendar as riquezas do novo mundo. Durante suas pesquisas, encontraram significativo material paleontológico, que acabou sendo levado para fora do país.

Mas o mundo mudou e, graças à ação de muitos pesquisadores, o Brasil passou a ter várias instituições para abrigar essas riquezas, que evidenciam a diversificação da vida no tempo profundo. Hoje, a comunidade de paleontólogos, apoiada por pesquisadores e pessoas de diversas partes do mundo, tem procurado despertar a atenção para que fósseis relevantes não deixem mais o país e as principais peças que já não estão mais aqui sejam trazidas de volta. Trata-se de uma espécie de decolonização da paleontologia, um movimento de repatriação de exemplares importantes que tenham sido retirados do Brasil à revelia, impedindo o enriquecimento da cultura e da pesquisa brasileiras.

A proteção da lei

Não são poucos os exemplares brasileiros importantes que se encontram depositados no exterior. Dinossauros, pterossauros, insetos, peixes e plantas – a maior parte retirada de forma duvidosa do território nacional e, às vezes, com uma aparente conivência do órgão fiscalizador – foram descritos ao longo de décadas e enriquecem museus estrangeiros, principalmente na Europa e na América do Norte. Os depósitos brasileiros mais afetados são os encontrados na bacia do Araripe, curiosamente, de onde provém um daqueles dois primeiros fósseis brasileiros ilustrados. O motivo principal é a riqueza do material dessa região: numeroso, diversificado e, sobretudo, muito bem preservado, o que encanta pesquisadores e públicos em todo o mundo.

No entanto, se, em determinado momento histórico, a saída de material paleontológico poderia encontrar alguma justificativa (mesmo que passível de questionamento), o mesmo não ocorre nos dias de hoje. A legislação vigente no Brasil regula o trabalho com fósseis no país e dispõe sobre sua proteção, com destaque para o Decreto-Lei n.º 4.146, publicado em 1942, durante o governo de Getúlio Vargas. De forma simplificada, como, pela Constituição Federal, os bens encontrados no subsolo pertencem à União, todos que queiram fazer extração de fósseis necessitam de uma autorização da Agência Nacional de Mineração, com exceção dos pesquisadores que estejam vinculados a uma instituição de pesquisa e ensino.

A aranha fóssil Cretapalpus vittari, encontrada em rochas de 115 a 120 milhões de anos na bacia do Araripe, foi devolvida ao Brasil e agora está depositada no museu de paleontologia em Santana do Cariri, no Ceará CRÉDITO: FLAVIANA LIMA

Portanto, a maior parte dos fósseis brasileiros que se encontram fora do país é ilegal e pode ser objeto de apreensão ou de ações judiciais para repatriação. Apesar dessa situação irregular, fato é que muitos paleontólogos estrangeiros, talvez até por desconhecimento, continuam a publicar a descrição de novas espécies fósseis brasileiras com base em exemplares retirados ilegalmente do país e depositados no exterior.

O caso do dinossauro Ubirajara: um divisor de águas

O que pode ser considerado o maior avanço dos últimos anos em relação à situação dos fósseis irregulares ocorreu após a descrição de um novo dinossauro procedente da bacia do Araripe, que havia recebido o nome de Ubirajara. Devido a questões éticas e legais, a revista Cretaceous Research, onde a nova espécie havia sido descrita por pesquisadores estrangeiros, retirou o trabalho de publicação, depois de uma análise criteriosa. Contribuiu para essa atitude da revista a enorme pressão de paleontólogos brasileiros e do público em geral, a partir das redes sociais (#UbirajarabelongstoBrazil), e a ação firme da Sociedade Brasileira de Paleontologia.

Esse fato, até então inédito, fez com que diversas revistas científicas passassem a se preocupar com os aspectos legais dos fósseis brasileiros antes de aprovarem publicações sobre eles. O mesmo ocorreu com pesquisadores do exterior, que passaram a se preocupar com sua própria reputação.

Após o caso do Ubirajara, dois novos episódios de repatriação acabaram ocorrendo, ambos com material da bacia do Araripe. O primeiro foi o da aranha Cretapalpus vittari, descrita em homenagem à cantora Pablo Vittar. Os pesquisadores envolvidos na descrição, quando alertados, não apenas devolveram o fóssil, como também 35 outros exemplares que estavam em uma instituição nos Estados Unidos. O segundo episódio envolveu um crânio do pterossauro Tupandactylus imperator, cuja descrição foi apenas aceita por uma revista após a devolução do exemplar ao Brasil. Iniciativas como essas enchem de esperança os que estão no front da luta para que peças importantes sejam devolvidas ao país.

Controvérsias e soluções

Para certos pesquisadores, os fósseis devem ser considerados bens minerais e, dessa forma, poderiam ser minerados e comercializados. Há também alguns poucos que defendem que fósseis que estejam fora do país, mesmo que ‘exportados’ ilegalmente, contribuem para a divulgação de sua região de origem, podendo gerar alguma van-

O crânio do pterossauro Tupandactylus imperator, encontrado em rochas de 115 a 120 milhões de anos na bacia do Araripe, foi devolvido ao país e hoje está depositado no Museu de Ciências da Terra, no Rio de Janeiro

CRÉDITO: RAFAEL COSTA DA SILVA

tagem econômica, como fomento do turismo local. Há ainda aqueles que defendem a inclusão obrigatória de pesquisadores brasileiros nos estudos de fósseis do Brasil depositados no exterior. Essa, no entanto, é uma ideia para lá de controversa, pois coloca as parcerias científicas como moeda de troca para ‘regularizar’ fósseis. A meu ver, tais posições são equivocadas e caminham na contramão das iniciativas para a recuperação de material importante fora do país. Felizmente, não representam a maioria dos paleontólogos brasileiros.

Apesar das grandes dificuldades pelas quais passa a ciência brasileira, fato é que, ao longo de décadas, o Brasil tem investido na formação de recursos humanos para a pesquisa paleontológica, com inúmeras bolsas de pós-graduação, recursos para projetos e abertura de vagas em centros de pesquisa, particularmente nas universidades federais. Claro que ainda há muito por fazer, sobretudo em termos de obtenção de investimentos expressivos para atividades de campo, como coleta e preparação de novos exemplares. Mas a realidade é que o país reúne diversas instituições com possibilidade não apenas de abrigar exemplares, como também – e sobretudo – de desenvolver pesquisa científica relevante.

Diante desse cenário, a Sociedade Brasileira de Paleontologia deveria ser mais proativa, sobretudo esclarecendo a situação ilegal dos fósseis depositados fora do país e promovendo campanhas de conscientização junto à comunidade internacional. g

ZUMBIS DO MUNDO REAL

Muito além dos filmes de terror, animais infectados com microrganismos parasitas podem perder o controle de seu corpo e viver escravizados e sem vontade própria

Lucas Mascarenhas de Miranda

Físico e divulgador de ciência no canal Ciência Nerd Universidade Federal de Juiz de Fora

OS FILMES DE ZUMBIS se consolidaram como um subgênero cinematográfico, dentro do gênero de terror, no final da década de 1960, com o lançamento de A noite dos mortos-vivos (1968), do cineasta norte-americano George Romero (1940-2017).

O sucesso foi tão grande que a fórmula vem sendo repetida até os dias de hoje. Nesse período, surgiram filmes com diferentes explicações para a origem dos zumbis (desde as mais mágicas e esotéricas até as mais científicas e tecnológicas). Também foram variadas as características físicas atribuídas a esses seres (uns são mais lentos e estúpidos, outros são mais rápidos e espertos).

Mas o que parece ser uma constante é que o zumbi representa um ser escravizado, um indivíduo sem qualquer vontade própria. Um ser morto, mas encarcerado em um corpo animado, que existe com a única finalidade de se alimentar e se reproduzir.

Você pode achar que não há nada no mundo real que se assemelhe a essa descrição. Mas a verdade é que seres zumbis podem ser muito mais reais do que você imagina.

Formiga-zumbi

Se uma formiga está caminhando e pisa em um esporo de um fungo, seus dias podem estar contados. Descoberto pelo naturalista britânico Alfred Russel Wallace (18231913), o fungo Ophiocordyceps unilateralis é conhecido por transformar formigas em verdadeiros zumbis.

Ao entrar em contato com a formiga, o esporo do fungo invade seu organismo e se multiplica em várias novas células, que se alimentarão do inseto sem causar sua morte. Durante uma ou duas semanas, a formiga segue exercendo suas funções no ninho, embora apresentando movimento trêmulo e errático, escalando e caindo de arbustos, devido a convulsões, como descrevem pesquisas científicas.

Os filmes de zumbis são um subgênero de grande sucesso no cinema. Algumas características desses seres podem ser encontradas em animais infectados por parasitas CRÉDITO: DIVULGAÇÃO

Formiga morta pelo fungo Ophiocordyceps

CRÉDITO: ADOBE STOCK

Em certo momento, as células do fungo se comunicam quimicamente com o cérebro da formiga, obrigando-a a subir em uma planta e morder firmemente uma folha. Em seguida, o parasita termina de matar sua hospedeira e coloniza seu corpo completamente. Depois de alguns dias, o fungo faz brotar da cabeça da formiga uma estrutura denominada ascocarpo (que popularmente chamamos de cogumelo). Essa estrutura irá produzir e liberar novos esporos, transformando o solo em um campo minado para novas formigas.

Como relatam pesquisadores, em algumas áreas, é possível encontrar mais de 26 cadáveres de formigas por metro quadrado. Nesses cemitérios, a maior parte das formigas mortas está a 25 centímetros de altura do chão, em locais onde a temperatura e a umidade favorecem a produção e dispersão dos esporos.

Nos últimos anos, o Ophiocordyceps ficou ainda mais famoso graças à franquia de jogos The last of us. No game, que se passa em um mundo pós-apocalíptico, existe um fungo capaz de infectar uma pessoa e, depois de certo tempo, atingir seu cérebro. Diferentemente do que acontece com as formigas, o fungo do jogo realmente assume o controle do cérebro do indivíduo, deteriorando sua racionalidade, seus sentidos e até sua forma física.

Caracol-zumbi e sua fantasia de lagarta

Se um dia você encontrar um caracol com as duas antenas maiores bem mais espessas e coloridas do que geralmente são, é bem provável que esse molusco esteja sendo parasitado por um platelminto chamado Leucochloridium paradoxum.

Quando o caracol ingere as fezes de um pássaro infectado, os ovos do verme eclodem dentro dele. As larvas, então, se desenvolvem até o estágio de esporocisto e se dirigem para a antena do animal (também chamada de tentáculo ocular). O esporocisto é uma estrutura que se assemelha a uma bolsa longa e inchada que produz esporos em seu interior. Desse modo, a antena do caracol, que geralmente é fina e de uma cor discreta, dá lugar a uma bolsa comprida, espessa, com faixas coloridas e que pulsam, pelo movimento das larvas que a habitam.

Essa transformação parece ser um caso de mimetismo agressivo, no qual o parasita faz com que o caracol se assemelhe a uma lagarta ou animal similar. Pesquisas mostram que o golpe final do Leucochloridium é exercer uma espécie de controle mental sobre o caracol e levá-lo a se posicionar em uma região bem iluminada e aberta (algo que o molusco jamais faria espontaneamente). Por

se assemelhar a uma lagarta, o caracol vira presa fácil de um pássaro, que é o hospedeiro definitivo do platelminto e onde ele poderá concluir seu ciclo reprodutivo e iniciar novamente o pesadelo dos caracóis.

Gafanhoto kamikaze

Se um grilo ou gafanhoto ingerir um inseto infectado com larvas do verme Paragordius tricuspidatus, ele servirá de hospedeiro temporário para esse verme. Nesses artrópodes, o P. tricuspidatus se desenvolverá até seu último estágio, que precisa ocorrer na água.

Para alcançar a água, o parasita exerce um controle sobre o gafanhoto, fazendo-o buscar e saltar na água, sem pensar duas vezes. O gafanhoto se afoga e o verme, finalmente, consegue se libertar do antigo hospedeiro e se reproduzir.

Parasita silencioso

Uma das zoonoses mais comuns em todo o mundo é a toxoplasmose. Essa doença é causada pelo protozoário Toxoplasma gondii, que tem como hospedeiros definitivos os gatos e outros felinos, mas pode infectar outros animais, incluindo o ser humano, por meio da ingestão de alimentos e água contaminados. A toxoplasmose também pode ser transmitida da mãe para o feto através da placenta.

Estima-se que mais da metade da população brasileira possua a doença, que pode permanecer assintomática por toda a vida do indivíduo. Os que mais sofrem com ela são as pessoas com baixa imunidade, as que passam por tratamento quimioterápico contra o câncer, as recém-transplantadas e as gestantes. Nos casos mais graves, a toxoplasmose pode provocar lesões oculares, microcefalia, hidrocefalia, alterações motoras, entre outros sintomas.

Existe uma curiosa relação entre esse protozoário e o cérebro. Na Universidade de Oxford (Reino Unido), pesquisadores descobriram que ratos infectados pelo microrganismo perdem o medo do odor de gatos e podem até se sentir atraídos por um feromônio (hormônio associado à sexualidade) presente na urina dos felinos. Com isso, os ratos se expõem mais a esses predadores e, por consequência, são mais facilmente predados. Graças a essa manipulação cerebral, o rato serve de veículo para que o Toxoplasma chegue a seu hospedeiro definitivo.

Além de zumbificar os ratos, há fortes evidências de que esse protozoário provoque alterações mentais em seres humanos. Nas últimas décadas, muitas pesquisas vêm mostrando que a toxoplasmose pode ser um importante fator de risco para algumas doenças psiquiátricas, como a esquizofrenia, a bipolaridade, a doença de Alzheimer, a depressão, a epilepsia, entre outras. Por se tratarem de doenças multifatoriais, é difícil dizer o real papel da toxoplasmose no desenvolvimento delas, mas só o fato de haver correlação entre essas enfermidades e a presença do Toxoplasma, já é um grande alerta vermelho e um indicativo de que precisamos de mais pesquisas na área.

Caracol infectado pelo platelminto Leucochloridium

CRÉDITO: ADOBE STOCK

Apocalipse zumbi?

Por sermos uma espécie bastante complexa, é muito difícil que um microrganismo seja capaz de assumir o controle do nosso corpo e nos forçar a agir de maneiras estranhas e que facilitem o desenvolvimento e a reprodução desse parasita. Mas seres capazes de causar danos ao nosso cérebro (e provocar alterações importantes no nosso comportamento e até na personalidade) não são nada fictícios.

Por isso, recomendo sempre a leitura do texto ‘Será que a humanidade sobreviveria a um apocalipse zumbi?’, publicado na edição 349 da Ciência Hoje. Lá, você terá uma ideia de como a humanidade poderia se preparar no caso de esse apocalipse acontecer. g

ADIVINHA ONDE ESTOU!

Carla Madureira Cruz_Departamento de Geografia Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro

Sim, é possível viajar e conhecer lugares sem sair de casa. Eu, particularmente, prefiro sair, mas isso nem sempre é possível. Existem limitações individuais e situações que impõem soluções criativas de mobilidade. Recentemente passamos por um longo período assim, o da pandemia. E foi durante a quarentena que o desenvolvedor estadunidense Paul McBurney Jr. criou um projeto chamado City Guesser, para ajudar as pessoas a fugirem do tédio e ainda se sentirem viajando. Conhece?

No endereço https://virtualvacation.us/guess você pode acessar este projeto e entrar no jogo de adivinhação da cidade que está sendo apresentada por meio de fotos ou vídeos. Imagina poder usar vários símbolos e aspectos culturais que possam servir de dicas para identificar a cidade que está sendo filmada! O sistema utiliza imagens obtidas a partir do terreno, como se você mesmo estivesse caminhando pelas ruas da cidade. O participante faz suas tentativas de marcação através de um mapa, no qual é possível navegar com zoom e perceber detalhes através de outro ponto de vista, fundamental para a linguagem cartográfica, o de cima!

As dicas podem ser muitas e diferentes. Aparecem na forma de construções clássicas, estações de trem ou metrô, eventualmente bandeiras, placas de identificação, vestimentas, tipos de carros etc. O exercício é viciante, principalmente se é feito em grupo com o apoio da internet ou ainda com amigos reunidos fisicamente.

Esse recurso em sala de aula promete! Além do exercício de buscar dicas que sejam importantes no processo de identificação/reconhecimento de um lugar, vários padrões podem ser ressaltados durante o exercício, de modo a reforçar a importância dos aspectos culturais e estruturais de um país ou cidade. Mas o jogo exige uma definição mais precisa do lugar em questão, por isso a leitura do mapa em associação direta com a paisagem urbana que está sendo apresentada é fundamental. Entender os elementos relevantes de uma área e sua posição no espaço possibilita que, em um nível maior de detalhe, seja identificado o lugar que está sendo percorrido com maior precisão. Afinal, sua pontuação final depende da distância entre o lugar correto e o que você indicar! E quem não quer dizer ‘bingo’?

Para iniciar, é possível selecionar a abrangência (ou limites) da área que deverá ser buscada, ou o grau de dificuldade das dicas. O recorte de busca pode ser um determinado país, um continente ou até o globo inteiro! O negócio é tentar ir fechando a área de busca cada vez mais aproveitando bem as dicas. Entender as relações topológicas e as formas de representação espacial de elementos como rios, pontes, grandes edificações, estações de trem etc., é o que realmente ajuda na navegação e na pontaria final.

As formas de exploração do jogo podem ir além da adivinhação, pois é possível explorar a comparação entre diferentes lugares a cada rodada. Por fim: que tal participar desta construção colocando seus próprios vídeos à disposição? Enquanto nos deslocamos, podemos pensar nesta brincadeira de gato e rato e tentar também filmar dicas para que outros descubram onde estivemos. Para isso, basta fazer upload no Youtube com o título ‘City Guesser Video’, incluindo o nome da cidade. Agora lá vai a minha dica para você: coloque um pin no globo para marcar os lugares que visitar! g

LIBERTOS DE VOLTA À ÁFRICA

Durante o século 19, libertos africanos e seus descendentes viajaram em direção à África desde diferentes regiões das Américas. Por muito tempo, acreditou-se que, no Brasil, o único ponto de partida era Salvador, Bahia. Pesquisa, iniciada depois da descoberta de um documento ao acaso, revela que o Rio de Janeiro também foi um importante porto desse caminho de volta. A investigação, ainda em curso, ampliou as informações sobre as motivações e as condições que marcaram a história do “retornados”.

Monica Lima

Laboratório de Estudos Africanos (LEAFRICA) Instituto de História Universidade Federal do Rio de Janeiro

No dia 11 de maio de 1836 saíram do porto do Rio de Janeiro em direção à Costa da Mina, litoral ocidental da África, numa barca de nome Maria Adelaide, 234 pretos e pretas libertos – o que, no vocabulário da época, era o mesmo que dizer que essas pessoas eram africanas. Uma parte desse grupo viajava sem acompanhante, outros com a família. No livro da Polícia da Corte em que constam as saídas de navios com a relação de passageiros brasileiros e estrangeiros, a lista de nomes desses homens e mulheres que voltavam para seu continente de origem vinha numa folha azul solta, à parte. O registro feito no próprio livro só fazia referência ao número total de libertos, trazia o nome do mestre da embarcação e de outro passageiro, um português, que viajava acompanhado por seu filho menor.

Encontrar esse documento numa tarde dedicada à pesquisa no Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, em busca de informações sobre a movimentação de mercadorias que eram transportadas do Brasil para a África durante o século 19, foi um daqueles momentos da vida de uma historiadora em que o acaso oferece um presente. Não sem razão os arquivos históricos causam tanto fascínio: as caixas amareladas e os conjuntos de doMUITAS VEZES, NA PROCURA POR DETERMINADAS INFORMAÇÕES, SÃO ENCONTRADOS DADOS OU PISTAS QUE NÃO ESTAVAM SENDO INVESTIGADOS, E ISSO PODE MUDAR TUDO. TEM ATÉ UM NOME PARA ISSO: SERENDIPIDADE

cumentos embrulhados em papel pardo podem sempre surpreender com seu conteúdo e revelar histórias até então desconhecidas. Muitas vezes, na procura por determinadas informações, são encontrados dados ou pistas que não estavam sendo investigados, e isso pode mudar tudo. Tem até um nome para isso: serendipidade.

A surpresa ao ler o documento não era relativa ao retorno de libertos do Brasil para a África no século 19. Isso já se sabia – havia uma bibliografia, não exatamente abundante, mas conhecida por quem estuda a história africana desse período. A novidade era encontrar um retorno dessa natureza a partir do porto do Rio de Janeiro. Até então, somente havia notícias dessas viagens a partir do porto de Salvador. As conexões entre a Bahia e a Costa da Mina, a presença de uma comunidade de brasileiros estabelecida naquele litoral pelo menos desde fins do século 18, a existência de comerciantes com representação nos dois lados do oceano e até mesmo vínculos da administração colonial portuguesa, unindo a capital baiana e fortalezas no Golfo do Benin, explicavam esse destino dos retornos. Mas nada até então havia sido pesquisado sobre as rotas do chamado refluxo do tráfico a partir das terras cariocas.

A pesquisa começou com essa descoberta, e as perguntas que dela desdobraram – não há nada melhor, para uma investigação histórica, do que o surgimento de novas questões a serem indagadas às fontes. O tema inicial das mercadorias em trânsito atlântico deu lugar a um projeto sobre os retornos de libertos do Brasil à África no século 19, incluindo os grupos que partiram do porto do Rio de Janeiro. A consulta a muitos conjuntos documentais em diferentes arquivos, em diversos países, trouxe novos dados e ainda mais perguntas.

Praia de Uidá, Benim, 1994

FOTO MILTON GURAN / LABHOI/UFF

Os retornados

Durante o século 19, libertos africanos e seus descendentes partiram em direção à África desde diferentes regiões das Américas, em especial saindo do Brasil. Esses movimentos migratórios vinham ocorrendo mesmo antes, no século 18, mas em menor número e como parte de trajetórias principalmente individuais. Já no século 19, os retornos a partir do Brasil muitas vezes se fizeram de forma coletiva, em embarques de grupos numerosos de africanos, entre os quais muitos partiam acompanhados de membros de suas famílias e de pessoas próximas e na mesma condição.

A história desses retornos e das pessoas neles envolvidas está documentada em diversas fontes de época, tais como os livros com controle de movimentação portuária, registros de passaporte, notícias de jornal que anunciavam as partidas dos libertos, relatos de viagem, contratos firmados entre grupos de retornados e capitães de navio e diferentes tipos de correspondência – de autoridades e particulares. E também nas evidências, que chegam aos tempos atuais, da presença das comunidades que foram se formando no continente africano a partir dos retornos e que marcaram sua identidade com base em experiências atlânticas e da diáspora nas Américas. Os libertos que volta-

ram para a África a partir do Brasil no século 19 construíram identidades referenciadas na cultura brasileira: uso da língua portuguesa abrasileirada/africanizada, nomes e sobrenomes, hábitos, religiosidade católica e até mesmo as festividades.

Em sociedades africanas com marcadores identitários vinculados ao parentesco reconhecido a partir de um ancestral comum, além de idiomas e cosmologias religiosas, os retornados, que não compartilhavam esses elementos, formaram as bases de seu pertencimento à comunidade que criaram naquilo que viveram e aprenderam no Brasil. Nessa elaboração, ressignificaram inclusive a memória da escravidão, retirando o sofrimento e a dor do eixo constitutivo dessa experiência. Valorizaram os conhecimentos que acumularam e tudo que conseguiram alcançar, inclusive a chance de voltar. O antropólogo Milton Guran, brasileiro responsável pela mais detalhada pesquisa até hoje existente sobre a comunidade de retornados conhecida como os agudás do Benin, chamou esse processo de “bricolagem da memória”.

Diversos outros estudos foram realizados, ao longo da segunda metade do século 20, sobre o tema dos retornos de libertos à África e, em sua maioria, apresentaram como ponto de partida a existência de grupos de retornados na costa ocidental africana, os quais chamam a atenção pela forma como se constituíram e pela maneira como se colocaram nas sociedades locais. Os grupos conhecidos como agudás no Benin, os tábon de Gana e Togo ou os brasileiros da Nigéria resultam dos processos de formação dessas comunidades e assim são nomeados por seus integrantes. Aliás, existem até hoje e acionam esse passado histórico para se identificar como parte de um mesmo grupo.

Casa da Família Amaral. Preparação para o desfile de véspera da missa de celebração do N. S. do Bonfim - 21 de janeiro de 1995 - Porto Novo, Benim

FOTO MILTON GURAN / LABHOI/UFF

A história que a História contava

A produção historiográfica, até o início do século 21, vinha demonstrando maior preocupação com as comunidades tal como se constituíram na costa ocidental africana do que com o processo de retorno em si. O encontro com os grupos que reivindicavam uma herança brasileira na África, celebrando o Senhor do Bonfim, o bumba-meu-boi e o Carnaval, e cantando em português, fascinou gerações de pesquisadores. Os estudos voltaram-se para as dinâmicas de formação dessas identidades e sua relação com o mundo atlântico e com o tráfico de africanos escravizados.

Por sua vez, a dimensão demográfica desses retornos, a constituição dos grupos que realizaram as viagens, suas motivações ao longo do tempo e as condições para a realização das viagens foram relativamente pouco abordadas, ainda que presentes. Identificar esses aspectos demanda pesquisa sobre vários tipos de fonte em diversos arquivos nas diferentes margens do oceano, para se tentar obter as informações e estabelecer as relações entre elas.

Investigações dessa natureza podem iluminar aspectos até então pouco visíveis no tratamento do tema. Um deles é a presença de redes sociais de parentesco, vínculos religiosos e dependência entre os grupos de retornados, a partir da descoberta de conexões entre eles. Tais dados somente podem ser obtidos por meio do cruzamento das informações de diferentes fontes. Elas incluem desde as listas dos embarques até as informações pessoais dos viajantes que possam ser localizadas em registros de casamento, batismo e inventários, ou em documentos da polícia local. De outra parte, os contratos de viagem que os grupos mais numerosos de retornados firmavam com os capitães de navio que os levariam de volta à África e suas exposições de mo-

A Rota dos Escravos - fevereiro de 1995 - Uidá, Benim

FOTO MILTON GURAN / LABHOI/UFF

tivos para pedir apoio nessas empreitadas podem revelar as condições das viagens e os conteúdos das justificativas elaboradas com fins de se conseguir solidariedade.

Os retornos de libertos do Brasil para a África Ocidental no século 19 foram tratados pela historiografia durante certo tempo como um processo com caráter geral semelhante durante seu período de realização. Havia uma narrativa muito marcada pelo caráter quase compulsório, ou pelo menos indesejado, desses movimentos de volta à África. Os grupos teriam decidido regressar após o endurecimento de todas as formas de controle sobre a circulação e o trabalho de africanos, fossem alforriados ou cativos, bem como das punições frente a qualquer sinal de insurgência, em especial após aprovação da lei de 1835 – conhecida como “lei nefanda”, que estabelecera pena capital para vários casos. O retorno, portanto, seria uma saída para os libertos africanos, vigiados, perseguidos, considerados potencialmente perigosos por sua liberdade de movimentação. Essas pessoas não tinham os direitos de todos os cidadãos livres no Brasil e, sendo negros, tinham que provar o tempo todo sua condição de libertos.

Novas fontes, outras histórias

A pesquisa iniciada com a descoberta da lista de libertos da barca Maria Adelaide trouxe alguns outros aspectos às análises sobre esses retornos à África. Um deles é a existência de fases distintas nos movimentos migratórios: a partir do século 18 até aproximadamente a década de 1820, em que funcionam as conexões por meio do tráfico atlântico de africanos escravizados e se caracterizam por viagens de pequenos grupos sendo, sobretudo, individuais; a partir de 1830, em especial após 1835, em grupos maiores e motivadas por perseguições e condições mais restritivas impostas aos libertos no Brasil; depois da extinção do comércio escravista no Brasil, em grupos tanto numerosos como pequenos, apresentando razões que revelam tanto a intenção de instalarem-se na costa

africana numa posição privilegiada (na qualidade de parceiros dos novos interesses europeus), como o desejo de regresso com motivos pessoais e religiosos – neste último caso, com a possibilidade de ir e, eventualmente, voltar.

Essas migrações com motivações religiosas foram especialmente estudadas por uma pesquisadora radicada na Bahia chamada Lisa Castillo. Já os projetos de retorno enunciando estratégias para constituírem no continente africano grupos de apoio no combate ao tráfico atlântico de escravizados e na promoção do chamado comércio lícito foram trazidos por esta pesquisa iniciada pelo registro de embarque da barca Maria Adelaide.

A predominância do enfoque das pesquisas sobre as comunidades de retornados do Brasil no Golfo do Benin também levou a uma redução na identificação dos lugares de partida e destino. O porto de Salvador foi, sem dúvida, o lugar de embarque majoritário durante todo o período das viagens a partir do Brasil, porém, do Rio de Janeiro, partiram diversos navios levando grupos de africanos e seus descendentes ao continente na mesma época. E os locais para onde se dirigiam não se restringiram à costa ocidental africana, mas também ao litoral da região Congo-Angola.

Além dos libertos do Maria Adelaide, na pesquisa foram encontrados outros retornos numerosos a partir do porto do Rio de Janeiro. Em 1840, o brigue Feliz Animoso partiu da cidade levando 30 pretos libertos, passando pela Costa da Mina (África Ocidental) e Benguela. E, em 1851, outro brigue, de nome Robert, levou 63 pessoas africanas libertas, numa viagem que ainda iria passar por Salvador para recolher outros passageiros. O grupo de libertos firmou um contrato detalhado com o capitão do navio, transcrito por dois missionários quacres estadunidenses no Rio de Janeiro, que haviam sido contatados para verificar o compromisso do capitão da embarcação.

Uma correspondência de 14 de agosto de 1851, guardada nos arquivos do Foreign Office britânico, trouxe uma fonte de diferente tipo e preciosa: a carta de um grupo que se autodefinia como “libertos congo”, que solicitava apoio para voltar à África, mais exatamente para Cabinda (África Centro-Ocidental), e apresentava suas razões e compromissos relativos a esse retorno. Este documento foi encontrado por outra historiadora que, sabendo do trabalho em curso, o enviou (obrigada sempre, Beatriz Mamigonian) para esta pesquisadora. Esta correspondência, assinada pelo líder do grupo, o liberto Joaquim Nicolau de Brito, constituiu importante fonte para trazer outros aspectos: o retorno como projeto e em diálogo com as transformações no mundo atlântico em meados do século 19.

A pesquisa segue em processo, e ainda há muito o que se conhecer sobre os caminhos que tornaram possível a organização dessas viagens do lado de cá do oceano. Sabemos que no Brasil nunca houve apoio oficial a esses retornos, diferentemente do que houve em outras regiões das Américas. Os que voltaram a partir do Brasil em retornos voluntários construíram suas condições para empreender a volta à África. São histórias extraordinárias, de pessoas que nos fazem relembrar a força dos projetos coletivos de nossos antepassados. g

LEIA +

DAVIES, P. J. Plant Hormones. 3ª edition. Springer, Dordrecht. 802 p., 2010.

KERBAUY, G.B. Fisiologia Vegetal. 2ª edição. Guanabara Koogan, 446 p., 2012.

LARCHER, W. Ecofisiologia Vegetal. Editora APGIQ, 550 p., 2000.

MELO, H. C. Plantas: Biologia Sensorial, Comunicação, Memória e Inteligência. 1ª edição. Editora Appris, 365 p., 2021.

RAVEN, P.H.; EICHHORN, S.E.; EVERT, R.F. Biologia Vegetal. 8ª edição. Guanabara Koogan, 867 p., 2014.

TAIZ, L.; ZEIGER, E. Fisiologia Vegetal. 5ª edição. Artmed, 719 p., 2013.

Senhora da Família Martins - 1995 - Cotonu, Benim

FOTO MILTON GURAN / LABHOI/UFF

COMO UMA BACTÉRIA PODERÁ NOS PROTEGER DA DENGUE?

Luciano A. Moreira_ Instituto René Rachou > Fundação OswaldoCruz | World Mosquito Program Brasil

Uma vez por semana, um veículo com as palavras ‘Saúde Fiocruz’ estampadas no capô passa na minha rua, e um tubo cheio de mosquitos é aberto, começando um ciclo para proteger o nosso bairro. No início, achamos estranho, pois como se consegue reduzir a incidência de doenças transmitidas por mosquitos, como dengue, Zika e Chikungunya, liberando mais mosquitos? Esse é o método Wolbachia, um projeto inovador que utiliza uma bactéria muito comum no ambiente – a Wolbachia – e que, quando presente no mosquito Aedes aegypti, impede que os vírus se repliquem nele, reduzindo a chance de transmissão dessas doenças. A intenção é que os Aedes aegypti liberados se reproduzam com os já existentes no ambiente, gerando, aos poucos, uma nova população de mosquitos, todos com Wolbachia.

O método Wolbachia integra o World Mosquito Program (WMP), que está presente em 11 países e trabalha para proteger a população das doenças transmitidas por mosquitos (as chamadas arboviroses), sendo conduzido no Brasil pela Fundação Oswaldo Cruz, com apoio do Ministério da Saúde. O método é seguro, natural, autossustentável e sem fins lucrativos e apresenta potencial para alcançar impacto significativo na saúde pública em áreas endêmicas para esses vírus.

O projeto se inicia quando as equipes do programa interagem com a população e instituições parceiras para difundir informações sobre a iniciativa e promover o engajamento da comunidade onde ela será implementada. Nessa etapa, são aplicadas pesquisas que evidenciam o entendimento e a aceitação da população local sobre o método. Além disso, é constituído um comitê local – chamado Grupo Comunitário de Referência – que acompanha todas as ações realizadas na localidade, e são abertos canais de comunicação com a população, por telefone, e-mail e mídias sociais. As ações de engajamento são complementadas por um projeto-satélite, denominado Wolbito na Escola, que dissemina conteúdos relacionados ao manejo ambiental e controle de vetores, incluindo um e-book para professores com material para várias faixas de idade.

Somente depois desse processo e da aprovação da população é que as liberações de mosquitos são iniciadas. Elas ocorrem durante cerca de quatro a seis meses em determinado bairro, e podem ser realizadas por meio da soltura de mosquitos adultos com Wolbachia ou da instalação de dispositivos contendo ovos de mosquitos com a bactéria.

Para saber se os Wolbitos (nome dado aos mosquitos com Wolbachia) estão se estabelecendo no bairro, são instaladas armadilhas para ovos ou mosquitos adultos em casas ou estabelecimentos comerciais e, pelo menos uma vez por mês, o material coletado é testado por técnicas moleculares para checar a prevalência de Wolbachia. A partir daí, podemos inferir sobre a redução de casos naquela localidade que recebe o método. Em parceria com os municípios, realizamos análises das incidências de arboviroses, com base no histórico de casos das localidades, e comparamos com os dados após a implementação do método.

E já estamos colhendo bons frutos. Dados da cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, mostraram que houve redução de 69% na incidência de casos de dengue e 56% nos casos de Chikungunya em áreas que receberam os Wolbitos. Esses resultados são corroborados por dados de um estudo controlado realizado em uma cidade da Indonésia que concluiu que áreas onde foram liberados mosquitos com Wolbachia tiveram uma redução de 77% no número de casos de dengue e de 86% nas hospitalizações causadas pela doença.

Hoje o método Wolbachia já está presente em cinco municípios do Brasil – Rio de Janeiro, Niterói, Belo Horizonte (MG), Campo Grande (MS) e Petrolina (PE) –, com o objetivo de proteger cerca de três milhões de habitantes das doenças transmitidas pelos mosquitos. Esperamos, cada vez mais, poder trazer essa inovação para mais cidades do Brasil e, juntamente com outras estratégias de controle, reduzir o impacto que as arboviroses têm na população brasileira. Mas também é importante que cada um continue a fazer seu dever de casa, para evitar a presença de criadouros de mosquitos, e converse com seus vizinhos para que, juntos, possamos diminuir a incidência dessas doenças. g

30 | CH 389 | JULHO 2022

TRANSFORMAÇÕES CONFORMES

De mapas e água a ímãs e partículas... as vastas aplicações de uma poderosa ferramenta matemática

Haveria semelhanças entre um mapa-múndi, os estados da água, a magnetização de ímãs e a teoria de cordas, proposta de descrição do mundo microscópico? O denominador comum é a possibilidade de eles serem estudados pelas chamadas transformações conformes, ferramenta matemática poderosa que tem ajudado cientistas a entender fenômenos que, aparentemente diversos, guardam similaridades entre si.

A utilidade dessa linguagem está em descobrir e entender o que é conservado quando sistemas físicos sofrem transformações.

Marco Moriconi

Instituto de Física Universidade Federal Fluminense

Quando pedimos ajuda para chegarmos a um destino, frequentemente, recebemos instruções do tipo: “Siga em frente; logo depois da padaria, vire à direita e continue; depois, vire na primeira à esquerda...”. A razão para termos instruções assim é simples: para navegarmos em qualquer lugar, precisamos saber, literalmente, como nos orientarmos. É fundamental sabermos os ângulos para virarmos em pontos cruciais (no caso, padaria, esquina…).

Esse modo de navegar vale tanto para um bairro quanto para a Terra. Para o globo terrestre – na ausência de pontos de referência simples, como padarias e esquinas –, criamos um sistema de coordenadas que nos permite localizar um ponto na superfície do planeta. Esse sistema é formado por arcos de círculo que vão de um polo a outro – os meridianos, que nos dão a longitude de um ponto – e por círculos que cortam a Terra paralelamente ao plano da linha do equador – daí, o nome de paralelos, que nos dão a latitude.

Imagine um meridiano como sendo um grande arco de círculo que pode girar, como uma porta de banco, pelo eixo que passa pelos polos. Tomando como ponto de referência o meridiano que passa pelo Observatório Real de Greenwich (Inglaterra), o meridiano primário, medimos o ângulo que temos que girar para passarmos por um ponto qualquer do globo. Esse ângulo é medido de 0o a 180o no sentido oeste-leste e de 0o a 180o negativos no sentido oposto. Esse ângulo é a longitude do ponto.

Como todos os pontos em um mesmo meridiano têm a mesma longitude, precisamos de mais informação – obtida a partir da latitude. De modo semelhante, a latitude é medida pelo ângulo que temos que ‘subir’ ou ‘descer’ em relação ao plano equatorial. Esse ângulo é positivo e vai de 0o a 90o no sentido que leva ao Polo Norte e negativo (de 0o a - 90o) em sentido ao Polo Sul.

Com essas duas informações, podemos encontrar qualquer ponto do planeta. Mas como os navegadores usam essa informação?

Historicamente, essa informação tinha que ser impressa em uma folha de papel – mais modernamente, pode ser mostrada em uma tela de vídeo –, para facilitar sua visualização e seu transporte. O problema que surge aqui é que a superfície da Terra é, em boa aproximação, uma esfera, mas uma folha de papel ou tela são planas.

Como podemos passar a informação de uma superfície para a outra, preservando os ângulos entre curvas que se cruzam?

Projeção estereográfica

Seguindo o exemplo das instruções para o deslocamento em um bairro, gostaríamos de ter um mapa que nos orientasse, preservando ângulos entre curvas, do mesmo modo que usamos o “vire à direita” ou “vire à esquerda”. Para isso, é importante entender o que é um ângulo entre duas curvas, pois, normalmente, pensamos em ângulos entre segmentos de linha reta.

Para entender um ângulo entre curvas em uma superfície qualquer, podemos usar a ideia de que, ‘vista de muito perto’, uma superfície curva pode ser aproximada por um plano. Quando analisamos um campo de futebol, não nos preocupamos com a curvatura da Terra, por exemplo.

Dizemos que estamos analisando as curvas localmente. Desse ponto de vista, a definição de ângulo é a que usamos normalmente (ou seja, entre segmentos de

Figura 1. Projeção estereográfica

CRÉDITO: CEDIDO PELO AUTOR COMO PODEMOS PASSAR A INFORMAÇÃO DE UMA SUPERFÍCIE PARA A OUTRA, PRESERVANDO OS ÂNGULOS ENTRE CURVAS QUE SE CRUZAM?

QUANDO ANALISAMOS UM CAMPO DE FUTEBOL, NÃO NOS PREOCUPAMOS COM A CURVATURA DA TERRA, POR EXEMPLO

Figura 2. América invertida, obra de Torres-García, de 1943

CRÉDITO: WIKIMEDIA COMMONS

linha reta), e isso nos permite definir o ângulo entre duas curvas quaisquer. Transformações geométricas que preservam os ângulos entre curvas são tão importantes que merecem nome especial: transformações conformes.

O modo de pô-las em prática é razoavelmente simples: apoie uma esfera em um plano e ‘sente-se’ no polo norte dela – ‘N’, na figura 1, onde ‘O’ é o centro da esfera, e ‘S’, o polo sul. Para um ponto qualquer na superfície da esfera (P), trace uma reta que une esse ponto ao polo norte.

Essa reta irá intersectar o plano em algum ponto. Esse ponto (P’) é a projeção estereográfica do ponto P na superfície da esfera – podemos repetir esse procedimento para todos os pontos da esfera, obtendo para cada um deles sua projeção estereográfica. Em tempo: provar matematicamente que essa projeção preserva ângulos entre curvas requer um pouco mais de trabalho, e, para nossos propósitos aqui, vamos dispensá-lo, para evitar tecnicalidades.

A projeção estereográfica preserva os ângulos entre duas curvas que se cruzam – como as da latitude e longitude –, mas não preserva áreas. Áreas próximas ao polo norte (tanto terrestre quando de uma esfera) ficam ampliadas. É por isso que, apesar de a Groenlândia ter área de aproximadamente 2.166.000 km2, ela parece, nos mapas planos, maior que o Brasil, com aproximadamente 8.516.000 Km.

Claro que a escolha do ponto onde ‘nos sentamos’ para fazer a projeção estereográfica é arbitrária e, dependendo dela, o resultado é uma orientação e dimensão particular ao mapa-múndi. Com base na escolha desse ponto – no caso, o Polo Sul terrestre –, o artista uruguaio Joaquín Torres-García (1874- 1949) fez provocação interessante com sua obra América invertida (figura 2).

Não bastasse a grande utilidade de uma transformação conforme em nos permitir produzir um mapa extremamente útil para a navegação, ela tem outras aplicações. Por exemplo, na descrição de fenômenos relacionados aos estados da água, a um ímã ou a partículas subatômicas, como veremos.

Transições e simetrias

Uma experiência simples do dia a dia é o que acontece com a água, à medida que ela é aquecida. Começando com gelo, ele vai derreter até se liquefazer completamente e, em seguida, evaporar. Essas mudanças são conhecidas como transições de fase.

Podemos repetir esse mesmo experimento a diferentes pressões. Se ajustarmos a pressão e temperatura de maneira cuidadosa, podemos chegar a um ponto ‘mágico’ da água, no qual não há mais diferença entre vapor e líquido (figura 3). Esse é o chamado ponto crítico. Vale notar que esse ponto não acontece no dia a dia, mas em situação controlada de laboratório. Nele, coisas interessantes acontecem.

Para entendermos o que se passa no ponto crítico, dois conceitos são importantes: simetria e comprimento de correlação.

A simetria de um sistema é uma ação (transformação) que fazemos nele que o deixa idêntico à configuração inicial. Por exemplo, se girarmos um quadrado em 90o por um eixo perpendicular que passa por seu centro, a nova figura será idêntica à inicial. Dizemos que o quadrado é invariante por rotações de 90o .

A natureza é invariante com base em várias simetrias, como a de rotação ou translação. Por exemplo, se analisarmos a estrutura cristalina do gelo – ou seja, o modo como os átomos de hidrogênio e oxigênio estão dispostos –, veremos que é possível girá-la em 60o, e o resultado permanecerá idêntico. Nesse caso, dizemos que o gelo tem simetria hexagonal – aliás, uma bela consequência dessa simetria é sua relação com flocos de neve (figura 4).

As simetrias têm consequências profundas para os fenômenos naturais: elas não só implicam leis de conservação, ou seja, quantidades que não mudam com o tempo (por exemplo, a conservação da energia), mas também dão estrutura às leis da natureza.

Entender quais são as simetrias de um sistema físico permite deduzir, de forma bem específica, como devem ser as possíveis soluções de dado problema. Exemplo: o fato de existir uma simetria de translação espacial no universo – ou seja, o fato de podermos

Figura 3. O ponto crítico da água (alto, à direita), no qual não há diferença entre as fases líquida e gasosa

CRÉDITO: CEDIDO PELO AUTOR

ENTENDER QUAIS SÃO AS SIMETRIAS DE UM SISTEMA FÍSICO PERMITE DEDUZIR, DE FORMA BEM ESPECÍFICA, COMO DEVEM SER AS POSSÍVEIS SOLUÇÕES DE DADO PROBLEMA

IMAGINE LADRILHOS ENCAIXADOS DE FORMA PRECISA, COBRINDO O CHÃO. SE SOUBERMOS A POSIÇÃO DE UM DELES, SABEREMOS A POSIÇÃO DE TODOS OS OUTROS

Figura 4. A estrutura de um floco de neve se deve à simetria hexagonal dos cristais de gelo nos transladar de um ponto a outro do espaço, sem que as leis da natureza se alterem – é o que nos permite realizar experimentos em diferentes laboratórios. E a simetria de translação temporal é o que nos permite fazer experimentos em momentos diferentes (passado, presente e futuro).

Mas há simetrias que surgem dinamicamente. Elas ‘aparecem’ ao mudarmos certos parâmetros do sistema que estamos investigando. Vejamos o caso do gelo derretendo e virando água. O número de mudanças (rotações) que podemos realizar na estrutura cristalina do gelo – deixando-a invariante – é pequeno.

Mas, ao derreter completamente, devemos levar em conta a simetria da água em estado líquido, cuja estrutura tem agora uma nova simetria, diferente daquela do cristal de gelo: em vez de podermos girar apenas em 60o ao redor de certos eixos, qualquer rotação é permitida.

Comprimento de correlação

Vejamos agora o segundo daqueles dois conceitos citados como importantes: o comprimento de correlação, que dá ideia de qual a distância entre partes de um sistema que apresentam comportamentos semelhantes.

Exemplo: imagine ladrilhos encaixados de forma precisa, cobrindo o chão. Se soubermos a posição de um deles, saberemos a posição de todos os outros – tecnicamente, dizemos que a posição dos ladrilhos é fortemente correlacionada, e o comprimento de correlação é grande.

Mas, caso os ladrilhos não estejam bem encaixados, a análise de um deles pode nos dar a ideia incerta sobre a posição do seguinte. E, à medida que nos afastamos do ladrilho inicial, podemos perder completamente a informação de onde o próximo ladrilho deverá estar. Nesse caso, dizemos que o comprimento de correlação é finito. No caso extremo – ladrilhos simplesmente jogados um ao lado do outro –, a posição de um deles não nos diz nada sobre a dos outros. Então, o comprimento de correlação é zero. Agora, podemos voltar à questão que lançamos acima: o que simetrias e comprimento de correlação têm a ver com o ponto crítico da água? Nesse ponto, o comprimento de correlação se torna grande – tecnicamente, dizemos que ele diverge –, e o sistema não tem mais uma escala de comprimento, ou seja, mesmo pontos muito distantes entre si estão correlacionados. Surge uma nova fase da água. A consequência disso é que o sistema líquido-vapor pode ser descrito matematicamente por uma teoria que é invariante por transformações conformes. E, aqui, entra o tão importante conceito de simetria: surgem novas simetrias no sistema, a chamada invariância conforme, que nos permite estudar com precisão quantitativa o ponto crítico. Até aqui analisamos o que se passa com a água. Mas o surpreendente (e belo) é que a mesma linguagem usada para descrever o ponto crítico da água pode ser empregada para descrever o que se passa em outros sistemas físicos bem diferentes, como um ímã.

Apesar de toda familiaridade que temos com ímãs – basta olhar para uma geladeira… desde os ímãs que prendem a porta até aqueles que seguram lembretes e desenhos –, a explicação de como ‘funcionam’ não é tão simples.

Essencialmente, um ímã é formado por ‘mini-ímãs’, que têm sua origem em propriedades dos elétrons e dos átomos em si. Sabemos que um ímã tem um polo norte e um sul, mas isso só ocorre caso os mini-ímãs estejam orientados em uma direção. Se estiverem distribuídos aleatoriamente – imagine-os como diminutas bússolas cujas agulhas apontam em várias direções –, seus efeitos se cancelam. Resultado: o ímã macroscópico não vai atrair agulhas, pregos etc. Ou seja, não será um ímã.

Seria possível restaurar a magnetização, a propriedade que faz um ímã atrair outros metais?

A resposta é sim. Basta reduzirmos sua temperatura, o que fará com que cada mini-ímã ‘sinta’ os companheiros em sua vizinhança e comece a se alinhar com eles – nesse caso, teríamos todas as agulhas das diminutas bússolas apontando em uma única direção.

Para os ímãs, há também um ‘ponto crítico’ – no caso, temperatura crítica. Abaixo dela, o sistema se magnetiza. É nesse ponto (ou temperatura) que o comprimento de correlação se torna grande (diverge), pois mesmo mini-ímãs distantes apontam para a mesma direção. Com isso, surge uma nova simetria no sistema: sim, a invariância conforme.

Apesar de os dois sistemas (transição líquido-gás na água e magnetização de um ímã) serem tão distintos, a descrição teórica dos dois é semelhante. E não só de forma qualitativa: eles têm várias propriedades matemáticas em comum, as quais variam segundo as mesmas leis. Dizemos que pertencem à mesma classe de universalidade.

Teoria de cordas

Na década de 1970, foi proposta uma ideia revolucionária segundo a qual as partículas elementares não seriam entidades pontuais, mas, sim, pequenas cordas dotadas de diferentes modos de vibração. Cada um deles corresponderia a uma partícula que observamos na natureza, como elétron, próton, fóton (partícula de luz) etc.

Essa nova formulação se mostrou promissora não só por explicar a origem das diferentes partículas elementares, mas também por elucidar a existência de uma partícula que daria origem à gravidade, o gráviton.

No caso da teoria de cordas, a invariância conforme também tem papel fundamental. Se uma partícula, ao se deslocar no tempo e espaço, descreve uma linha, uma corda em movimento descreve uma superfície. A partir dessas linhas e superfícies é possível calcular uma quantidade matemática chamada ação, fundamental para deduzir as equações que governam o movimento de partículas ou cordas. Em particular, existem transformações matemáticas que não alteram o valor da ação. Estas são justamente as transformações conformes.

Desde o nascimento da teoria de cordas, houve avanços em seu entendimento, mas ela segue como um trabalho em andamento. Mesmo assim, esse é um caminho promissor, que pode nos levar a uma teoria que junte, em um só corpo teórico, tanto os fenômenos microscópicos, da física quântica, quanto aqueles das grandes escalas (estrelas, galáxias, buracos negros etc.), da gravidade. Ou seja, uma teoria quântica da gravidade.

Mapas de nosso planeta, transições de fase da água, ímãs, gravitação quântica… Uma gama impressionante de aplicações distintas unidas por uma linguagem matemática comum, a das transformações conformes.

A sensação que temos ao perceber isso é perfeitamente traduzida pelo poeta britânico William Blake (1757-1827): “Ver um mundo em um grão de areia/E um paraíso numa flor selvagem/Segure o infinito na palma da sua mão/E a eternidade em uma hora”. g APESAR DE OS DOIS SISTEMAS (TRANSIÇÃO LÍQUIDO-GÁS NA ÁGUA E MAGNETIZAÇÃO DE UM ÍMÃ) SEREM TÃO DISTINTOS, A DESCRIÇÃO TEÓRICA DOS DOIS É SEMELHANTE

DESVENDANDO OS MISTÉRIOS DO COSMOS HÁ 40 ANOS

Adilson de Oliveira_ Departamento de Física, Universidade Federal de São Carlos (SP)

Oano era 1982. Um adolescente que morava em uma pequena cidade próxima à capital paulista tinha grande fascínio pela ciência. Havia descoberto as maravilhas da natureza por meio da fantástica viagem proporcionada pelo astrônomo norte-americano Carl Sagan (1934-1996) na série Cosmos. Aquela experiência foi tão impactante que ele criou um clube de astronomia para poder também contar para outras pessoas o quão maravilhosa e bela é a ciência.

Naquele tempo, existiam poucas revistas nas bancas que apresentassem a ciência de forma acessível. A maioria eram edições estrangeiras traduzidas para o português. Mas o adolescente encontrou uma revista brasileira que trazia a ciência ao alcance de todos e, ainda, com artigos de cientistas brasileiros.

Tratava-se da Ciência Hoje! Vinte e quatro anos depois, em junho de 2006, o adolescente, que tinha virado cientista, foi convidado a contribuir para esse espaço extraordinário de disseminação da cultura científica, que sempre lhe deu liberdade para abordar qualquer tema e expressar opiniões, contando com o auxílio de dedicados editores.

A cada mês, um novo desafio surge: contar sobre o fascinante mundo da física e astronomia. Muitos desses textos se tornaram material de apoio para dezenas de livros didáticos, apareceram em concursos públicos e vestibulares e foram reproduzidos em inúmeros blogues e redes sociais.

Para recriar as ideias de diferentes teorias físicas – de forma que elas possam ser compreendidas, sem a necessidade de conhecimentos matemáticos sofisticados –, é preciso conhecer profundamente o tema e exercer a criatividade para conseguir aproximar leitores e leitoras do tema.

No caso da teoria da relatividade restrita, do físico de origem alemã Albert Einstein (1879-1955) – baseada em dois princípios fundamentais de grande alcance e consequências –, é necessário desenvolver a intuição. Esses princípios são expressos da seguinte maneira: i) as leis da física devem ser as mesmas em todos os referenciais inerciais, ou seja, para quem está ou parado, ou se movimentando com velocidade constante; ii) a velocidade da luz no vácuo (cerca de 300 mil km/s) é sempre a mesma, independentemente do referencial em que ela é observada.

Como esses princípios são válidos simultaneamente, temos como consequência algo que é (muito) contraintuitivo: tanto o espaço quanto o tempo deixam de ser absolutos e se tornam relativos (daí o nome da teoria) a cada observador – em termos simples, o espaço pode se contrair, e o tempo, se dilatar.

Além disso, quando se inclui a necessidade de eles também satisfazerem outros dois princípios básicos da física (conservação da energia e quantidade de movimento), surge como conclusão que massa (m) e energia (E) são equivalentes, segundo a mais famosa equação da física: E = mc2 – no caso, ‘c2’ é a velocidade da luz no vácuo elevada ao quadrado.

Embora essas ideias sobre espaço e tempo possam parecer surpreendentes (ou mesmo perturbadoras), elas representam o modo como a natureza se comporta. E esse comportamento já foi comprovado uma infinidade de vezes. Por exemplo, experimentos mostram que a luz sempre tem a mesma velocidade (cerca de 300 mil km/s). Mais: aceleradores de partículas funcionam de acordo com essas ideias e têm mostrado que a compreensão da natureza está muito além do modo como a percebemos no cotidiano.

Em todos estes anos, o maior retorno que já tive como divulgador da ciência foi quando um de meus alunos, ao fim de uma disciplina que eu lecionava, disse-me que tinha optado por estudar física na universidade porque tinha lido artigo de minha autoria na Ciência Hoje – e que fazia questão ser aluno daquele que lhe havia inspirado a seguir essa carreira.

Essa declaração mostra o quanto é importante esse trabalho de disseminação do conhecimento científico para o grande público. Essa nobre tarefa é capaz de transformar vidas – e, como consequência, nosso próprio país.

Por isso, espero que a Ciência Hoje continue desvendando os mistérios do cosmos do conhecimento por muito tempo. Vida longa e próspera para a Ciência Hoje! g

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A CURA QUE VEM DO INTESTINO ALHEIO

Os primeiros resultados significativos do chamado transplante de microbiota fecal para tratar infecções recorrentes foram publicados em 2013 nos EUA. De lá pra cá, a técnica foi aprimorada e novos estudos vieram corroborar seu sucesso. O princípio é simples: repopular o intestino do paciente receptor com microrganismos benéficos de um doador saudável. Cientistas acreditam que, no futuro, doenças crônicas, sem tratamento definido e que hoje afligem milhões de pessoas poderão ser tratadas com a ingestão de uma simples cápsula, feita de microrganismos que um dia habitaram o intestino de alguém.

Leandro Araujo Lobo Scarlathe Bezerra da Costa

Instituto de Microbiologia Paulo de Góes Universidade Federal do Rio de Janeiro

Ahistória dos transplantes de órgãos humanos começou na década de 1950 com transplantes de rins e progrediu rapidamente, nas décadas seguintes, para os de fígado, coração, pâncreas e pulmões. Atualmente, a medicina já contempla o transplante de órgãos artificiais ou órgãos criados em laboratório. Com todo esse progresso, pode ser uma surpresa para o leitor que, na atualidade, um dos transplantes mais promissores para o tratamento de inúmeras doenças seja o de microbiota fecal (TMF).

À primeira vista, pode parecer estranho; afinal, quem gostaria de receber fezes de outra pessoa? E por que alguém faria tal procedimento? Resumidamente, a ideia por trás do transplante de microbiota fecal não é simplesmente a de transferir fezes de uma pessoa para outra, mas sim a de repopular o intestino do paciente receptor com os microrganismos benéficos que vivem no intestino do doador. Mas, para entender por que isso é importante, vamos falar brevemente sobre o conceito de microbiota.

Essencial para a saúde

Nós – e todos os seres vivos do planeta – vivemos em associação muito próxima a uma multidão de diferentes microrganismos: bactérias, vírus, archaeas, fungos e até os protozoários, que habitam os diferentes tecidos do corpo humano sem causar danos. São trilhões e trilhões de células microscópicas que vivem na nossa pele, boca, nos intestinos, órgãos genitais e onde mais conseguirem se instalar.

Os mais preocupados com limpeza podem se apavorar só de pensar nessa ideia, e podem até tentar se livrar desses microrganismos, com álcool gel, sabonetes que prometem eliminar 99,99% dos germes e antibióticos, mas, mesmo assim, não terão sucesso. Ainda bem! Porque esse conjunto de microrganismos, conhecido como a microbiota humana, é essencial para nossa boa saúde!

As descobertas mais recentes da microbiologia mostram que ser colonizado por uma quantidade enorme de microrganismos não é prejudicial; muito pelo contrário. Esses microrganismos ajudam na nossa digestão, produzem compostos importantes para nossa saúde (como vitaminas), estimulam nosso sistema imune e bloqueiam (por competição) o acesso de microrganismos que nos fazem mal.

Em paz com a microbiota

Nosso organismo evoluiu para conviver pacificamente com a microbiota. O que nos causa problemas não é a quantidade de microrganismos presentes, mas sua qualidade. Quando nossa microbiota sofre alterações que levam a um desequilíbrio nas populações microbianas que a compõem, dizemos que a microbiota está em ‘disbiose’. Nesses casos, podemos ser acometidos por diferentes doenças e síndromes, que podem ser leves e autolimitadas, como uma diarreia passageira, ou crônicas e graves, como a colite pseudomembranosa, a doença inflamatória intestinal, a diabetes, a asma e até doenças do sistema nervoso.

Vejam o exemplo de pacientes acometidos por infecções gastrointestinais pela bactéria Clostridioides difficile. Essa bactéria causa pavor em qualquer médico ou microbiologista que trabalha na área clínica de um hospital. O C. difficile é um patógeno oportunista, quer dizer, ele espera que nossas defesas estejam baixas para causar uma infecção.

Pessoas acometidas por essa bactéria podem sofrer de diarreia intensa, precisando ir ao banheiro 10 vezes ou mais por dia. Essa infecção também é acompanhada por fortes SÃO TRILHÕES E TRILHÕES DE CÉLULAS MICROSCÓPICAS QUE VIVEM NA NOSSA PELE, BOCA, NOS INTESTINOS, ÓRGÃOS GENITAIS E ONDE MAIS CONSEGUIREM SE INSTALAR

QUANDO NOSSA MICROBIOTA SOFRE ALTERAÇÕES QUE LEVAM A UM DESEQUILÍBRIO NAS POPULAÇÕES MICROBIANAS QUE A COMPÕEM, DIZEMOS QUE A MICROBIOTA ESTÁ EM ‘DISBIOSE’

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cólicas, enjoos, febre e perda de apetite. Alguns casos mais graves podem evoluir para um quadro conhecido como megacolon tóxico, que pode levar à ruptura da parede intestinal com infecção generalizada e até à morte do paciente.

O C. difficile pode se proteger em uma estrutura chamada esporo bacteriano – um tipo de casulo super-resistente onde a bactéria fica num estado de dormência. Esses esporos são acidentalmente ingeridos e se instalam no intestino, onde podem novamente germinar (retornar ao estado ativo). A bactéria ativa produz toxinas que causam o quadro da doença. Normalmente, a germinação e a atividade do C. difficile são controlados pela nossa própria microbiota intestinal, mas indivíduos que sofrem uma disbiose na microbiota são mais susceptíveis e acabam desenvolvendo a infecção por C. difficile.

O lado mau dos antibióticos

A disbiose intestinal muitas vezes está associada ao uso de antibióticos. Parece contraintuitivo que um antibiótico seja responsável por uma infecção, mas é fácil de entender. Quando alguém toma um antibiótico para tratar uma infecção, por exemplo, apesar do sucesso do tratamento, a medicação se espalha por todos os tecidos do corpo e, inadvertidamente, destrói parte dos microrganismos que habitam de modo pacífico o intestino, causando uma queda na população e na diversidade das espécies que ali estão. Isso abre caminho para a colonização pelo C. difficile (antes controlado pela microbiota).

É mais ou menos como uma floresta incendiada. Imagine nossa microbiota intestinal como uma floresta rica e verde, cheia de árvores, arbustos e plantas de diferentes espécies. De repente um incêndio destrói a maioria dessas plantas, exceto por uma erva daninha resistente ao fogo, que começa a crescer rapidamente, tomando todo o terreno e consumindo os nutrientes da terra. O fogo é o antibiótico, e a erva daninha, o C. difficile.

Tratar a infecção por C. difficile com um novo antibiótico, às vezes funciona muito bem. Mas lembrem-se de que essa bactéria produz esporos resistentes! Então, em alguns casos, o novo antibiótico é inofensivo para a bactéria, o paciente desenvolve uma doença crônica e passa a ter episódios recorrentes, e cada um deles é um risco à sua vida. É aí que entra o transplante de microbiota fecal.

Transplante de microbiota fecal

Os primeiros registros escritos do uso do transplante de microbiota vêm da China, cerca de 700 anos antes da Era Cristã. Um texto chamado Cinquenta e duas fórmulas de tratamento traz detalhes da preparação do “suco dourado”, feito a partir de fezes humanas frescas ou fermentadas e usado de forma genérica para desintoxicação. Textos posteriores, no século 4, também da China, descrevem o uso de preparações contendo fezes humanas para o tratamento de diarreias graves, constipação ou dor abdominal.

Na medicina moderna, o primeiro uso do transplante de microbiota fecal descrito foi uma tentativa feita pelo microbiologista norte-americano Stanley Falkow (1934-2018) na década de 1950. Falkow coletou amostras de fezes de pacientes que receberiam um tratamento com antibióticos em preparação para um procedimento cirúrgico. Apesar do sucesso da cirurgia, os pacientes constantemente reclamavam de sintomas gastrointestinais.

Falkow sugeriu que os antibióticos estavam destruindo a microbiota intestinal dos pacientes e pediu para que eles coletassem fezes antes de tomar os antibióticos. Ele colocou essas fezes secas em capsulas de gelatina e produziu pílulas para que os pacientes ingerissem após a recuperação da cirurgia.

O diretor do hospital descobriu o que estava acontecendo e demitiu Falkow imediatamente. Os pacientes que receberam e ingeriram essas pílulas reportaram menos problemas intestinais do que os que não as receberam; mas esses resultados nunca foram publicados.

Em 1958, um grupo de cientistas liderados pelo cirurgião norte-americano Ben Eiseman (1917-2012), na Universidade do Colorado (EUA), obteve um sucesso estrondoso tratando quatro pacientes com colite pseudomembranosa grave, usando enemas (inserção de líquidos pelo ânus) com material fecal de doadores saudáveis. Outros 16 casos foram selecionados para serem submetidos ao mesmo procedimento, com uma taxa de sucesso de 94%.

Em 2013, foram publicados os resultados do primeiro grande teste clínico randomizado do uso de transplante de microbiota fecal para tratamento de infecção recorrente por C. difficile nos EUA. A taxa de sucesso chegou a 80% em comparação aos 31% obtidos com o uso de antibiótico (vancomicina). Esses dados foram confirmados por inúmeros estudos e testes clínicos na década passada.

Nas últimas duas décadas, diversas publicações e estudos acadêmicos vêm correlacionando e até estabelecendo relações de causalidade entre a disbiose intestinal e doenças extraintestinais. Esses estudos, somados ao marcante sucesso no tratamento da infecção recorrente por C. difficile, despertaram grande interesse da comunidade médica no transplante de microbiota fecal, e novas pesquisas e testes clínicos com alvos em outras doenças estão em curso atualmente.

Tais testes estão mostrando que o transplante de microbiota fecal pode ser útil no tratamento de condições que afligem outros órgãos fora do trato gastrointestinal, como psoríase, síndrome metabólica e obesidade, arteriosclerose, esteatose hepática, encefalopatia hepática, resistência à insulina, diabetes, esclerose múltipla, doença de Parkinson, entre outras. EM 2013, FORAM PUBLICADOS OS RESULTADOS DO PRIMEIRO GRANDE TESTE CLÍNICO RANDOMIZADO DO USO DE TRANSPLANTE DE MICROBIOTA FECAL PARA TRATAMENTO DE INFECÇÃO RECORRENTE POR C. DIFFICILE NOS EUA. A TAXA DE SUCESSO CHEGOU A 80% EM COMPARAÇÃO AOS 31% OBTIDOS COM O USO DE ANTIBIÓTICO (VANCOMICINA)

Microbiota transplantada para o cólon do paciente

Paciente

Como é o transplante?

O princípio do transplante de microbioma é muito simples: repopular um sítio anatômico do paciente receptor com microrganismos benéficos do microbioma de um doador saudável. Na prática, porém, essa técnica é complicada e requer muito cuidado. O primeiro – e crucial – passo para esse tipo de transplante é a seleção do doador.

Os critérios ideais de seleção de doadores ainda não estão bem estabelecidos na literatura médica e, por questões de segurança, os candidatos são submetidos a extensos e rigorosos métodos de triagem. Os doadores devem ser saudáveis, sem doenças crônicas ou agudas, e submetidos a uma avaliação similar à usada para selecionar doadores de sangue.

Além disso, os doadores passam por exames laboratoriais, como hemograma completo, bioquímica do sangue, exames de fezes e urina, e o material doado é analisado para detectar qualquer microrganismo indesejado que possa causar doença no receptor. Após essa exaustiva seleção, as taxas de elegibilidade reportadas na literatura ficam em torno de 3%.

Após a coleta das fezes do doador, esse material deve ser processado. As fezes são diluídas e homogeneizadas em soluções salinas fisiológicas, com pH controlado, e o material é filtrado em gaze para remover partículas grandes, como fibras alimentares e qualquer resto de alimento não digerido. Também é adicionado um componente crioprotetor, para evitar a formação de cristais de gelo, que destroem os microrganismos ali presentes. Logo depois, esse material é armazenado em ultracongeladores a -80°C até o momento do uso.

Para efetuar a transferência entre doador e receptor, o método mais usado atualmente é a colonoscopia. O colonoscópio é inserido no reto do paciente receptor até alcançar o início do intestino delgado e, à medida que é retirado, o material do doador é depositado no cólon. Outros métodos de transferência testados incluem sondas nasogástricas, enemas, supositórios e pílulas. Após o transplante, pacientes receptores são monitorados regularmente, e qualquer evento adverso é imediatamente reportado.

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Transplante de microbiota fecal

Doador

Líquido pronto para transplante

Fezes de doador saudável

Transplante de microbiota no Brasil

No Brasil, a infecção por Clostridioides difficile é o principal causador de diarreia associada ao uso de antimicrobianos no ambiente hospitalar, e muitos pacientes sofrem de infecção recorrente; mas, infelizmente, o transplante de microbiota ainda não está estabelecido em nossos hospitais. Em 2015, um estudo de São Paulo reportou o uso do transplante de microbiota fecal para tratar 12 pacientes com infecção recorrente por C. Difficile, obtendo uma taxa de sucesso de 90%.

Um grande avanço que permitirá o estabelecimento dessa técnica no Brasil foi a criação de uma unidade de coleta de fezes no Centro de Transplante de Microbiota Fecal (FMTC), associado ao Banco de Tumores e Tecidos do Instituto Alfa de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)/Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) (IAG-HC/UFMG). Esse centro foi estabelecido na última década e contou com a parceria do Laboratório de Bacteriose da Escola de Veterinária da UFMG e da Unidade de Endoscopia do IAG-HC/UFMG.

A equipe do FMTC é formada por gastroenterologistas, endoscopistas, microbiologistas, biomédicos e farmacêuticos. No futuro, doadores saudáveis poderão depositar suas fezes nesse banco, que poderá realizar todos os procedimentos de triagem e análise do material para garantir a segurança do mesmo, e assim distribuí-lo para todos os hospitais do país.

Transplante em outros sítios do corpo

Recentemente, pesquisadores israelenses publicaram os resultados de um estudo exploratório, usando o transplante de microbiota vaginal (TMV) para o tratamento de vaginose bacteriana recorrente. Essa doença é causada por um desequilíbrio (disbiose) nas populações de bactérias que habitam o canal vaginal, e os sintomas podem causar grande desconforto para a paciente, como coceira intensa, queimação e desconforto ao urinar.

Em muitos casos, a vaginose pode ser tratada, mas, em algumas mulheres, os sintomas retornam de forma recorrente. Nesse estudo, cinco mulheres foram tratadas com TMV, e quatro delas apresentaram sucesso em longo prazo, com remissão total dos sintomas. Apesar do pequeno número de pacientes, os resultados foram animadores e novos estudos clínicos estão em andamento.

Questões a considerar

Como todo procedimento médico, o transplante de microbiota não é isento de riscos. O fator crucial no sucesso do transplante é a seleção de um doador saudável, que não transfira microrganismos que façam mal ao receptor. Esses microrganismos podem estar num estado dormente ou em pequenas quantidades e podem passar despercebidos em testes de laboratório.

Outro problema é que bactérias intestinais muitas vezes carregam genes de resistência a antibióticos, que, por sua vez, podem ser transferidos para outras bactérias na vizinhança. Os testes de triagem para seleção de doadores devem levar isso em consideração, mas, para detecção de todos os genes de resistência presentes em uma amostra, seria necessário sequenciar e analisar todo o DNA bacteriano das fezes do doador.

Outra questão importante é que, apesar dos avanços no estudo da microbiota humana, muitas espécies de microrganismos que habitam nosso intestino ainda permanecem pouco estudadas, e suas atividades metabólicas e interface com a saúde humana ainda NO BRASIL, A INFECÇÃO POR CLOSTRIDIOIDES DIFFICILE É O PRINCIPAL CAUSADOR DE DIARREIA ASSOCIADA AO USO DE ANTIMICROBIANOS NO AMBIENTE HOSPITALAR, E MUITOS PACIENTES SOFREM DE INFECÇÃO RECORRENTE; MAS, INFELIZMENTE, O TRANSPLANTE DE MICROBIOTA AINDA NÃO ESTÁ ESTABELECIDO EM NOSSOS HOSPITAIS

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são desconhecidas. Os benefícios do transplante de microbiota são promovidos pela transferência de uma comunidade saudável, ou seja, a mistura exata da quantidade de cada espécie de microrganismo ali presente. A grande questão é que nós ainda não sabemos ao certo qual é a receita dessa mistura e, para piorar, não parece existir uma receita universal que contemple toda a diversidade humana.

Para algumas doenças, o transplante funciona muito bem, independentemente da composição da comunidade microbiana das fezes do doador. Esse é o caso da infecção recorrente para C. difficile: basta que o doador seja um indivíduo saudável para que o método atinja altas taxas de remissão.

Para outras doenças, como a síndrome metabólica e a encefalopatia hepática, a composição da comunidade da microbiota do doador é um fator importante. Parece ser necessário que haja compatibilidade entre a microbiota do doador e do receptor. No futuro, técnicas avançadas de sequenciamento de DNA deverão ser utilizadas para selecionar a melhor combinação possível entre a microbiota do doador e do receptor.

Existem muitas outras questões a serem respondidas para que esse tipo de transplante se torne uma prática universal. Por exemplo, os cientistas estão começando a entender o impacto dos vírus e fungos presentes no intestino para a saúde humana, assim como as consequências dessa transferência no sistema imune do receptor. Também é necessária uma padronização dos critérios de seleção dos doadores, e até um registro universal e criação de um banco de doadores, otimizado para diferentes tipos de doenças, e que permita o acompanhamento em longo prazo da saúde do doador.

Muitos cientistas acreditam que, no futuro, doenças crônicas e sem tratamento definido e que hoje afligem milhões de pessoas poderão ser tratadas com a ingestão de uma simples cápsula, recheada de microrganismos que um dia habitaram o intestino de alguém. g

LEIA +

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/ pmc/articles/PMC5479392/

https://www.scielo.br/j/ag/a/ Rm6nW4JMwJhgHy5RCMCLV5 K/?lang=en&format=pdf

https://schaechter.asmblog.org/ schaechter/2013/05/ fecal-transplants-in-the-goodold-days.html

https://www.scielo.br/j/eins/a/ pqSs343FWB9nybPvHW4JPYs/ ?lang=en

https://www.nature.com/ articles/s41591-019-0600-6

https://www.sciencedirect. com/science/article/pii/ S0929664618305552#bib16

O DESAFIO DA INCLUSÃO SOCIAL NOS MUSEUS DE CIÊNCIAS

Com ingressos gratuitos ou de baixo custo, centros e museus de ciência brasileiros estão abertos a todos, não importa a renda, a escolaridade ou a região em que habitam, certo? Pesquisas feitas nas últimas décadas mostram que não é bem assim: a inclusão social ainda é um enorme desafio para esses espaços, e não basta estar de portas abertas para atrair, agradar e satisfazer públicos mais diversos. Mas, afinal, como esses espaços de educação não formal podem exercer o seu papel social de difusão de conhecimento?

Débora Teixeira dos Santos e Menezes

Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia Universidade Federal do Rio de Janeiro

Diego Vaz Bevilaqua

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

Douglas Falcão Silva

Museu de Astronomia e Ciências Afins

Os centros e museus de ciência são reconhecidos espaços para a divulgação científica, capazes de proporcionar diversas experiências, que podem ser interativas, divertidas, sociais e afetivas. Esse leque de atividades e vivências estimula a curiosidade, e, claro, o aprendizado e o interesse por ciência e tecnologia em diferentes contextos. Por outro lado, esses espaços têm enfrentado um desafio de difícil superação: a inclusão social. O perfil de seus frequentadores não representa a maior parte da população brasileira, em termos de renda e nível educacional. No Brasil, a maioria do público tem origem nas visitas escolares, mas a chamada audiência de visitação espontânea (em geral, famílias e poucos adultos) vem, principalmente, de camadas privilegiadas da sociedade. Ainda que a inclusão nos espaços museológicos seja debatida e buscada há mais de quatro décadas, essa é uma realidade persistente, que reflete a estrutura social desigual da sociedade brasileira.

Neste artigo, são apresentadas algumas perspectivas, pesquisas e iniciativas como inspiração de caminhos na direção da construção de museus mais inclusivos e estruturados para expandir seus benefícios científicoculturais a parcelas mais amplas da população. Informação científica: por que é importante? Desde março de 2020, a pandemia de covid19 revelou o quanto os cuidados com a saúde individual dependem, também, da comunicação e da compreensão pública da ciência. Em paralelo, foi notório o papel da desigualdade social na crise sanitária: a doença atingiu mais duramente as camadas mais vulneráveis da população e, apesar da mobilização para ações emergenciais, ficou claro que mudanças estruturais demandam medidas mais consistentes.

CRÉDITO: JEFERSON MENDONÇA/FIOCRUZ A necessária “cidadania tecnocientífica” O professor de Sociologia da Universidade Federal de Minas Gerais Yurij Castelfranchi desenvolveu o conceito de “cidadania tecnocientífica”. Ele defende que a ciência contemporânea está altamente entremeada nos processos sociais da atualidade. Portanto, precisamos de um novo conceito de cidadania, que inclua a participação da população nas questões técnicas e científicas, território muitas vezes considerado exclusivo de especialistas.

Capital da ciência? Entenda o conceito

No Reino Unido, um grupo de pesquisadores liderados por Louise Archer, da University College London, tem proposto uma adaptação do conceito de capital do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002) aplicado ao papel da ciência na sociedade contemporânea. Bourdieu descreve as formas de capital – econômico, social, cultural ou simbólico – e como estas produzem as relações de privilégio ou subordinação na sociedade.

Para o grupo britânico, a ciência constitui um importante ativo na reprodução ou superação de privilégios dentro da sociedade contemporânea, e sua distribuição equitativa dentro de uma sociedade é fundamental para superar desigualdades sociais como um processo reproduzido historicamente. Esse novo tipo de capital foi designado, pelo grupo, de “capital da ciência”, e a ampliação de seu acesso pode permitir maior equidade na sociedade, constituindo um veículo potencial para desmontar e reestruturar as atuais relações desiguais de poder.

Ainda que seja importante manter as ações direcionadas às crianças em idade escolar, a onipresença da ciência e tecnologia no cotidiano contemporâneo demanda que a educação em ciências não fique restrita à educação formal, na escola. Segundo relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e Conselho Internacional de Museus (ICOM, na sigla em inglês), os adultos representam 66% da população, portanto é relevante pensar na educação sob a dimensão da aprendizagem ao longo da vida, também buscando maior proporção do público adulto entre os visitantes.

Diferentemente de outros campos, como as artes e os esportes, a ciência dispõe de poucos espaços sociais onde adultos não apenas podem continuar aprendendo, mas discutindo seus resultados e métodos. A ciência do cotidiano, que amplia a consciência do indivíduo sobre o mundo de maneira crítica e contextualizada, encontra nos centros e museus de ciências um local-chave nesse caminho para reduzir desigualdades sociais ao longo de toda a vida.

Todo esse quadro reafirmou que uma parcela grande dos indivíduos está excluída do exercício dos direitos de cidadania não só em relação a serviços públicos básicos geridos pelo Estado, mas no acesso ao conhecimento científico. Ao longo dos primeiros dois anos da pandemia, foi possível presenciar continuamente o processo científico ao vivo, suscitando dúvidas e incertezas, simultaneamente à colaboração entre pesquisadores e suas novas descobertas. A falta de familiarização sobre o funcionamento dessa engrenagem da produção científica, suas incertezas e debates até a construção do consenso, propiciou um ambiente no qual muitos se tornaram vulneráveis aos discursos anticientíficos e às notícias falsas.

Mesmo fora dos momentos de emergência sanitária, o acesso ao conhecimento científico é importante, e a busca por ele pode ser motivada por outras necessidades: doença crônica na família, decisões sobre carreira, papel como consumidor, cuidados com crianças, ou a vontade de se atualizar sobre debates científicos envolvendo temas relevantes, como alimentos transgênicos, energia nuclear, astronomia, tecnologias etc. A comunicação da ciência pode, portanto, colaborar para maior participação social, além de fortalecer o cidadão para tomar melhores decisões na sua vida, participar, dialogar e agir.

Democratizar o acesso à comunicação científica, no entanto, não tem sido uma tarefa fácil, já que tantas discussões acontecem de maneira complexa e multidirecional, em especial no ambiente digital. Fazse necessário aos profissionais e pesquisadores negociar o conhecimento com os não profissionais, além de refletir sobre por que comunicar e, principalmente, estarem preparados para responder como e o que comunicar.

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