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O futuro da defesa europeia: qual o papel de Portugal?

O FUTURO DA DEFESA EUROPEIA:

QUAL O PAPEL DE PORTUGAL?

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Resumo

O futuro da Defesa Europeia e, particularmente, o papel que Portugal poderá assumir na sua consolidação é, no atual contexto, um enorme desafio. Estamos a ser confrontados desde o dia 24 de fevereiro de 2022 com, provavelmente, a maior ameaça à segurança Europeia, desde o término da II Guerra Mundial1. É, por isso, bastante difícil antecipar possíveis cenários sobre a Defesa Europeia e qual o contributo que Portugal poderá assumir na atual conjuntura. Ainda assim, é objectivo deste artigo mapear o trajeto de Portugal no quadro da arquitetura de segurança europeia, bem como a participação de Portugal, através das Forças Nacionais Destacadas para a segurança europeia, apresentando, por fim os desafios que se colocam à Defesa Europeia e a Portugal, num ambiente de segurança profundamente alterado.

Palavras-Chave: Defesa Europeia, PCSD, Portugal

Liliana Reis

Professora auxiliar da Universidade da Beira Interior e da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia. Investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais.

Introdução

Com os mais recentes desenvolvimentos no âmbito do contexto de segurança europeia ficou, definitivamente, encerrada a semântica simplificadora da narrativa que a Defesa Europeia se reduzia à Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) e se inscrevia apenas na órbitra da União Europeia. Ora, nem a Defesa Europeia se pode limitar à PCSD, nem o percurso português na Defesa do espaço europeu pode ser circunscrito à integração no projeto europeu. Na verdade, o contributo português para a arquitetura de segurança europeia é anterior à sua transição democrática e, posterior, adesão às então Comunidades Económicas Europeias em 1986. Portugal é membro fundador da Aliança Atlântica em 1948 e, nessa qualidade, contribuiu, logo após a II Guerra Mundial, para a arquitetura de segurança europeia. Mas a adesão ao projeto europeu foi acompanhado da adesão formal à União da Europa Ocidental (UEO), em 1990. Por esta altura, a defesa europeia estava, ainda, consubstanciada à NATO e à UEO2. Com o Tratado de Maastricht, surge a capacidade europeia de defesa, prevista somente no caso de uma “eventualidade” (artigo J. 4), O Tratado de Amesterdão veio alterar esta possibilidade para a tornar um instrumento de fato da União e possibilitar o seu desenvolvimento (art. 18º) avançando com a, ainda gestante, Identidade Europeia de Segurança e Defesa

2  Portugal tinha lançado, a nível interno, a primeira lei de programação militar em 1987 (Lei 15/87 de 31 de março).

(IESD) e confirmaria a UEO como o braço armado ao serviço da União Europeia para instrumentalizar toda a gama de Missões de Petersberg. Portugal que era, agora, estado-membro da UE e da UEO, continuava a recear um afastamento do eixo Atlântico da Defesa europeia. Seria, depois, de Portugal assumir a segunda Presidência do Conselho da União Europeia, em 2000, um ano após a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão e depois da Conferência de Saint Malo que marcaria uma viragem da UE no domínio da Defesa, mas afastaria também as incertezas de Portugal. Na Cimeira de Saint Malo, realizada a 4 de dezembro de 1998, o primeiro-ministro britânico Tony Blair e o presidente francês Jacques Chirac reconhecem que a “União deve ter capacidade de ação autónoma dotada de forças militares suficientes” (British-French Summit St Malo, dezembro, 1998).

Evolução do compromisso de Portugal com a PCSD

A Defesa Europeia estava, depois da reconciliação entre o pilar Atlântico e Europeu, nos principais eixos do multilateralismo português e foi sendo visível também a nível interno. Portugal aprovaria em 2003 o novo Conceito Estratégico Militar (CEM)3, segundo o qual identificava e orientava os esforços de aprontamento e emprego das capacidades militares, definindo vários níveis de ambição para planeamento estratégico de forças, de acordo com cenários prováveis. A capacidade de empreender campanhas conjuntas e combinadas constituía uma resposta aos desafios do ambiente estratégico do novo milénio, por isso, tornava-se premente capacitar o país para a sua participação em missões de paz, humanitárias e ações de cooperação. Com efeito, em Dezembro de 2004 já depois do término do Euro 2004, Portugal empenharia 246 militares na Operação ALTHEA, naquele que seria um teste à capacidade operacional da PESD, e naturalmente à capacidade de Portugal assegurar a coordenação estratégica entre UE e a NATO tendo em conta a falta de recursos e os constrangimentos orçamentais4 .

A terceira presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, em 2007 assumiria um papel fundamental na definição da defesa europeia. O Tratado de Lisboa, com o objetivo de alcançar uma política de defesa comum, alterou a própria semântica desta Política de Política Europeia de Segurança e Defesa para Política Comum de Segurança e Defesa, constituindo parte integrante da Política Externa de Segurança. Assim, e no seguimento do que Portugal tinha herdado, no âmbito do desenvolvimento de capacidades da Política Europeia de Segurança e Defesa, o Catálogo de Progressos de 2007 seria também aprovado, sob o seu mandato. Também no domínio das capacidades civis, seria concluído o Civilian Headline Goal 2008

3  Resolução do Conselho de Ministros n.º 6/2003, publicado em Diário da República n.º 16/2003, Série I-B de 20 de janeiro de 2003.

4  Apesar de ser uma operação militar europeia, a UE socorreuse das capacidades da NATO para a conseguir lançar, no seguimento do acordo - Berlim Plus. Esta missão tinha a particularidade de se ter efectuado uma transição das forças da NATO/SFOR para as forças europeias, tendo por isso o apoio da NATO. e apresentado um novo documento com redobrada ambição para 2010 (Headline Goal 2010). O Conceito Estratégico de Defesa Nacional seria revisto em 2013, após a participação portuguesa em dez missões europeias, mas também depois da aprovação do Novo Conceito Estratégico da NATO em 2010, devido ao surgimento de novas condicionantes nomeadamente a crise económico-financeira que afectou a Europa. Não seria, pois, surpreendente que o novo documento sublinhasse a necessidade do “dispositivo das Forças Armadas deve[sse] ser racionalizado de acordo com o princípio orientador da concentração, visando a economia de meios, rentabilizando o apoio logístico e limitando o número de infraestruturas, aproveitando ao máximo as que se mostrarem mais adequadas” (PRESIDÊNCIA DO CONSELHO DE MINISTROS, 2013, pp.36-37). Também o equipamento das forças armadas para a sua adequação ao novo ambiente de segurança com o agora parceiro de defesa europeu seria objecto de revisão através da Lei de Programação Militar de 2001 e logo depois em 2003, onde pela primeira vez o Exército apresentou o seu planeamento por capacidades, embora em anexo à Lei, tinha igualmente algumas inovações dignas de nota como a definição da prioridade para os programas que deveriam ser objecto de revisão procurando, assim, dar maior estabilidade, continuidade e previsibilidade às opções em matéria de reequipamento para o Exército. Portugal preparavase a nível interno para assumir os seus compromissos europeus, acompanhando a sua política de defesa com os interesses ao nível da política externa. Da avaliação feita à participação portuguesa em missões/operações no âmbito da PCSD, observa-se um claro predomínio pelo Continente Africano, depois da projeção inicial de forças nacionais para a Ex-Jugoslávia, onde se concentraram as missões iniciais da UE. Depois do empenhamento de um militar português na missão EUSEC RD Congo, Portugal enviaria logo no ano seguinte uma força nacional de 51 militares para o mesmo país e um militar para o Sudão, no âmbito de missões europeias. Seguir-se-ia a projeção de forças nacionais destacadas para as missões da UE no Chade, Guiné e Etiópia e Somália até 2009. Relativamente a este último país, Portugal tem estado empenhado com as forças da UE até hoje, quer relativamente à missão ATALANTA, que assumiu o comando no ano de 2021, quer relativamente à missão EUTM Somália, tendo sido destacados 840 militares até hoje. Depois de 2013, a presença portuguesa em missões europeias no continente africano manter-se-ia e estender-seia ao Mali, totalizando 116 militares empenhados até 2021. Na RCA, 304 militares entre as missões EUMAM/ RCA e EUTM RCA. A propósito desta última operação cumpre sublinhar que Portugal assumiu o seu comando no ano de 2020 que se estendeu até 2021. Também em 2021, assumiria o comando da missão europeia EUTM Mozambique e destacaria 60 militares. Da análise ao compromisso operacional português com a defesa europeia destaca-se, claramente, a importância que se reveste o continente africano na política externa, ultrapassando mesmo a dimensão da lusofonia. Este

indicador é revelador também das idiossincrasias geopolíticas nacionais e da proximidade geográfica com o norte de África e o Mediterrâneo. Na verdade, o outro elemento que se destaca aquando da análise da participação portuguesa em missões da UE é o mar e as missões navais. Com efeito, além da missão ATALANTA, Portugal destacou, entre 2016 e 2020, 355 militares para a operação EUNAVFORMED – SOPHIA, a Força Naval da União Europeia no Mediterrâneo5, entre 2020 e 2021, 41 militares para a operação EUNAVFORMED – IRINI6. Ademais, Portugal assumiu o maior compromisso com a Frontex e com a Frontex Polícia Marítima, para as quais estiveram empenhadas 876 e 701 forças nacionais destacadas desde 2016 e 2019 até 2021, respectivamente.

Prospectivas sobre a Defesa Europeia

A evolução normativa ao nível dos Tratados seria posteriormente acompanhada pelo lançamento de vários documentos estratégicos, como a Estratégia Europeia de Segurança de 2003, a Estratégia Global da União Europeia e mais, recentemente a Bússola Estratégica, lançada a 21 de março de 2022.

A invasão da Rússia à Ucrânia no dia 24 de fevereiro veio destapar as vulnerabilidades da segurança na vizinhança do espaço europeu. A ameaça russa, que fora sendo negligenciada devido à proliferação de novas ameaças como as alterações climáticas, as migrações, a cibersegurança e, mais recentemente, a pandemia Covid-19 pelo risco que constituiu para a saúde pública. Ainda assim, os esforços que foram feitos durante os últimos dois meses traduzem simultaneamente três questões que consideramos muito relevantes. Em primeiro lugar, a unidade da União Europeia no apoio humanitário e militar à Ucrânia. Em segundo lugar, a confirmação da necessidade de uma maior interoperabilidade entre a UE e a NATO, e por fim uma maior provável alteração ao processo de tomada de decisão, exclusivamente intergovernamental. Ora, estas três questões serão determinantes do futuro da Defesa Europeia.

1. A unidade dos estados-membros da UE foi provocada quer pela alteração da percepção da alteração da ameaça que a Rússia representa, mas sobretudo pelos valores que estão hoje ameaçados, como o respeito pela integridade territorial dos estados, presente no art. 2 (4) da

Carta das Nações Unidas, e direitos, liberdades e garantias, enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, confirmados pelo pacto dos Direitos Civis e Políticos e pela

5  Foi uma operação militar da União Europeia que seria criada como consequência dos naufrágios de migrantes na Líbia em abril de 2015 com o objetivo de neutralizar as rotas estabelecidas de contrabando de refugiados no Mediterrâneo.

6  A Operação IRINI da Força Naval da União Europeia no Mediterrâneo foi lançada em 31 de março de 2020 com a missão principal de fazer cumprir o embargo de armas das Nações Unidas à Líbia devido à Segunda Guerra Civil da Líbia.

A percepção da ameaça, mas também a compreensão das fragilidades que colocam o desinvestimento na defesa como elemento dissuasor deverá servir como catalisador para um maior investimento na Defesa dos estados-membros da UE.

Carta dos Direitos Humanos da União. Ora esses valores são partilhados quer pela União Europeia, quer pela NATO, segundo o regime internacional inaugurado pela Pax democrática e a ordem liberal ocidental. Com efeito, a defesa destes valores não se consegue apenas com instrumentos normativos de Direito Internacional Público que permitem uma regulação seletiva entre aqueles que os subscrevem. Face a uma ameaça convencional aos valores e à ordem defendida, instrumentos de cooptação, de atração e, preferencialmente, de diplomacia revelam-se, muitas vezes, ineficazes. A percepção da ameaça, mas também a compreensão das fragilidades que colocam o desinvestimento na defesa como elemento dissuasor deverá servir como catalisador para um maior investimento na Defesa dos estados-membros da UE. Por isso, assistimos nos últimos dois meses ao anúncio por parte de vários estados-membro da UE e da Aliança Atlântica no aumento substancial relativamente aos gastos com a defesa. Cumprenos sublinhar que a NATO já há muito que iniciara o debate sobre a necessidade estados membrosmembros para aumentarem o orçamento da defesa para os 2%.

2. A guerra que vivemos na Ucrânia teve, também, o engenho de unificar os estados-membros da UE e mostrar a validade da NATO depois de ter sido questionada a sua sobrevivência num quadro pós

Guerra Fria. O apelo desesperado do presidente

Ucraniano, Zelensky para uma ação sancionatória da UE e militar da NATO, revelou por um lado, a supremacia do poder económico e, por outro lado, o poder militar e o seu efeito dissuasor, respectivamente. Por isso, o futuro da Defesa

Europeia deverá necessariamente que incluir as

duas organizações, através de uma crescente interoperabilidade operacional entre ambas. A alteração do ambiente de segurança na Europa irá provocar, necessariamente uma transformação nas duas organizações internacionais e, desejavelmente o estabelecimento de novas parcerias e sinergias.

3. Josep Borrell, Alto Representante da UE para a Política-Externa, referiu que se iniciara o

“nascimento de uma Europa geopolítica”. É expectável que se assista a um reforço das capacidades, através de instrumentos mais comunitários e alocados na Agência Europeia de

Defesa e na Comissão Europeia, tradicionalmente inserido no quadro do Conselho. A tendência de geometria variável, introduzida pela Cooperação

Estruturada Permanente no Tratado de Lisboa através do artigo 42 (6) deverá ser reforçada numa lógica de desenvolvimento de capacidades, mas também de projeção de missões/operações.

Mas o que se começa a discutir e que, poderá ser, verdadeiramente surpreendente é a alteração do processo de tomada de decisão no quadro da

Política Comum de Segurança e Defesa.

Os atuais arranjos de política externa, que foram desenvolvidos em um ambiente internacional mais benigno, sofrem de uma série de problemas estruturais. A tomada de decisões com base na unanimidade, entre vinte e sete países diferentes, representa um claro constrangimento, que muitas vezes envolve atrasos e às vezes bloqueios. O debate sobre a votação por maioria qualificada é tão antigo quanto a própria Política Externa e de Segurança Comum da UE. Desde o início, ficou evidente que a necessidade de alcançar a unanimidade dentro de um grande grupo de países constituiria uma séria desvantagem para responder aos desafios internacionais. Na verdade, à medida que o ambiente internacional se deteriora, o trade-off entre o ideal de unidade e o alto custo da unanimidade em termos de eficácia é visto de forma mais crítica. Neste aspecto, é também de salientar o papel crescente que a comissão deverá assumir. Desde 2021, a comissão tem uma Direção-Geral da Indústria de Defesa e Espaço, que implementa o fundo de defesa da UE. Além disso, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, afirmou no início do mandato que pretendia liderar uma “comissão geopolítica”, não antecipando o que estaria para acontecer na periferia da UE. Mais importante ainda, a mudança do ambiente internacional exige uma reavaliação completa das relações internacionais da UE. Muitas políticas da UE, incluindo a política monetária, comercial, concorrência, energética, ambiental, investigação e desenvolvimento, evoluíram num clima internacional em que a cooperação é considerada uma situação vantajosa para todos. Agora, essas políticas precisam levar em conta a política de poder e, necessariamente adoptarem um perfil mais duro e flexível.

Qual o papel de Portugal no futuro da Defesa Europeia?

As soluções duradouras para qualquer conflito são aquelas que agregam todos os intervenientes locais, nacionais e globais com um interesse comum na paz. Portugal é, assumidamente, um país Atlântico e Europeu (e Lusófono). Por isso, deverá assumir-se como um interlocutor privilegiado entre as duas organizações internacionais, revelando a clara necessidade de coesão entre os Aliados e os Estados-membros da UE e assumindo como prioritária: - A Cibersegurança e o desenvolvimento de capacidades entre a NATO e os Projetos PESCO em que participa “Cyber Threats and Incident Response Information Sharing Platform” e “EU Cyber Academia and Innovation Hub (EU CAIH)”. A ameaça de ataques cibernéticos multi-vector aumentou exponencialmente com a digitalização do sector público e privado dos Estados Membros depois da Pandemia Covid-19 e da Guerra na Ucrânia. - Desenvolvimento de uma Estratégia Marítima conjunta que não responda apenas ao Mediterrâneo, mas também ao Mar Negro e ao Ártico e associe a NATO e a UE, nomeadamente entre os seguintes projectos PESCO: “Maritime Unmanned Anti-Submarine System (MUSAS)”, “Harbour & Maritime Surveillance and Protection (HARMSPRO)” e “Maritime (semi-) Autonomous Systems for Mine Countermeasures (MAS MCM)”. A NATO é uma aliança entre Estados unidos por um Oceano! - Fomentar a interoperabilidade dos exercícios conjuntos da Aliança e da UE, através dos projetos PESCO de mobilidade Militar e padronização através do “European Union Training Mission Competence Centre (EU TMCC)”.

Consideramos, pois, que no atual momento de incerteza, o relacionamento entre a NATO e a UE poderá ocorrer entre Estados-participantes em projetos PESCO e Estados-membros da NATO, desde que reconheçam vantagens na cooperação mais técnica e especializada em diferentes domínios.

PARTE 2

25 ANOS DO CTOE EM APOIO À PAZ

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